Poucas pessoas na polícia judiciária sabem o nome de batismo do comissário Laranjeira. Lara sabe: Lourenço.
— O teu problema — disse-lhe Lara uma vez — é que te transformaste inteiramente no comissário Laranjeira. Devias tentar ser Lourenço mais vezes.
Naquela época, o comissário Laranjeira ainda conseguia ser Lourenço algumas vezes – pelo menos com ela. Depois perdeu a prática. Tinha cinquenta anos e uma barba de três dias, muito branca, que contrastava com o cabelo inteiramente negro. Os inimigos (que eram muitos) insinuavam que ele pintava o cabelo. O comissário remexeu os papéis na escrivaninha. Estava um caos. A sua vida estava um caos. Lara, em pé, não escondia a impaciência.
— Despacha-te. Esperam-me no serviço. Se fico muito tempo, vão pensar que me sequestraste…
— Não me importaria…
Uma velha televisão, presa à parede, um pouco acima deles, transmitia as notícias. Uma locutora muito loira, muito pálida, comentava o rescaldo de uma onda de seis atentados simultâneos, em Londres, Paris, Amsterdã, Bruxelas, Roma e Madri, contra embaixadas e consulados dos Estados Unidos e empresas ligadas ao país, confirmando a morte de sessenta pessoas, a maioria das quais diplomatas norte-americanos. As forças de segurança nacionais e internacionais encontravam-se em estado de alerta máximo. Nesse momento, apareceu a imagem do comissário Laranjeira sentado, muito direito, diante da locutora loira.
— Ao lado dessa mulher, és quase preto — diz Lara. — Quase preto e quase bonito, tenho de confessar.
— E quase inteligente… — acrescenta o comissário.
— Temos conosco o comissário Laranjeira, da polícia judiciária — apresenta a jornalista. — Sabemos que, à mesma hora em que ocorriam os atentados na Europa, foi preso um homem, na placa do aeroporto de Lisboa, quando se dirigia para um avião da United Airlines, a segunda mais importante companhia aérea norte-americana. Confirma essa prisão?
— Confirmo. Foi preso um terrorista de origem angolana que combateu na Síria ao lado do Estado Islâmico. Estamos em vias de desmantelar toda a rede à qual o indivíduo estava ligado. A situação encontra-se sob controle, e rapidamente anunciaremos os resultados desta investigação.
— Que grande mentiroso — troça Lara, na delegacia. — Nunca aprenderei a mentir como vocês.
— Pode confirmar a informação de que agentes norte-americanos se encontram em Lisboa colaborando com a Polícia Judiciária e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras? — continua a jornalista.
— Estamos a colaborar com as autoridades de vários países — responde o comissário. — Mas é importante dizer que Portugal dispõe de um dos melhores serviços de investigação do mundo. Os portugueses podem ficar sossegados.
— Claro, claro, estamos todos muito sossegados…
— Porra, Lara! Podes calar-te um instante?
— Confirma que a CIA manifestou interesse em extraditar o prisioneiro para os Estados Unidos?
— Não confirmo e não há motivos para que isso se verifique.
O comissário levanta-se e desliga a televisão. Lara aplaude:
— Não estiveste nada mal, não, senhor. Há pessoas que ficam melhor na televisão do que na vida real.
— Devia ter levado uma outra gravata…
— Para a próxima vez, aconselha-te com o nosso prisioneiro. Ele entende de gravatas.
Um telefone toca. O comissário o procura no meio dos papéis. Finalmente encontra o aparelho.
— É a americana. A gaja da CIA.
— Atende…
— Atendo? Odeio americanos. Acham que são donos do mundo. Pelo menos esta fala português. O prisioneiro é nosso! Nosso, ouviste! Não vamos entregá-lo.
— Não ficaste de apanhá-la no aeroporto?
— Caralho! Tens razão. Esqueci…
O comissário atende ao telefone:
— Sim, Maggie, peço mil desculpas… Ah, já está no hotel?! Vou buscá-la daqui a pouco…
Desliga o telefone, guarda-o no bolso das calças e volta-se para Lara, preocupado:
— Viste a foto dela?
— Não. Por quê?
— Lara, a gaja é preta. Preta! Como o nosso terrorista.
Lara olha-o com irritação:
— É afro-americana?! E daí?
— Vai ficar do lado dele. Os escarumbas apoiam-se uns aos outros. Como é possível mandarem-nos uma gaja preta? Já não há brancos nos Estados Unidos?
— Não suporto esse teu discurso racista. Fico com o estômago a arder só de te ouvir. Dá-me os papéis e vou-me embora.
— Não os encontro, a sério.
Volta a procurar no meio dos documentos. Alguns caem ao chão. Finalmente tira de um envelope um cartão de visita e entrega-o a Lara.
— Não encontro os teus papéis. Mas olha para isto, chegaste a ver isto? Estava na mochila do maldito grunho…
Lara estuda o cartão, interessada:
— É um cartão de visita. Que maravilha! — Lê alto: — “Charles Poitier Bentinho, poeta romântico e mestre em espíritos”.
— Maravilha?! O gajo sabe é muito. Mestre em espíritos? Mestre em disfarces, isso sim…
— O que queres dizer? É só um cartão de visita. Adoro a moldura de flores…
— A quatro cores! Já pensaste no dinheiro que isso custou? E a maneira como o sacana se veste. Só roupa de marca.
— Ele é muito elegante…
— Eu quero é saber onde o malandro arranja dinheiro para se vestir tão bem.
***
Charles Poitier Bentinho está sozinho na sua cela. Sentado no chão, olha para o desenho de um pássaro numa das paredes. Passa o dedo pelo contorno do desenho, com cuidado, com carinho, como se alisasse as penas de uma ave viva.
— Há quanto tempo estás aqui, amigo? Eu cheguei agora. Apanharam-me quando estava pronto, prontinho para voar. Afinal, o que fiz eu? Só segui as vossas instruções. É o que venho fazendo. Saí de Luanda seguindo as vossas instruções. Fui para Paris seguindo as vossas instruções. Fui para a Síria seguindo as vossas instruções. — Cala-se. Olha com atenção para a parede. — Sim, concordo, na Síria fiz merda. — Volta a ficar calado um longo momento.
— Aquela mulher polícia que me veio ver, gosto dela. Boas pernas, uma bunda de rainha. E acho que ela gosta de mim.
***
Os dedos do comissário passeiam pelos papéis que atulham a sua escrivaninha. Pega um documento e logo o abandona. Pega outro, fingindo interesse. Bentinho sorri diante dele. Está instalado na cadeira como num trono. A camisa de seda negra, salpicada de estrelas, brilha, como uma noite legítima. Na gravata estreita, azul-escura, voam pequenos aviões prateados. Sobre a camisa usa um blazer leve, preto como a camisa. Traz na cabeça um chapéu-coco, que nele, em vez de ridículo, parece inevitável. Maggie está sentada a outra escrivaninha, enquanto Lara permanece de pé, atrás do prisioneiro.
— Começo eu? — pergunta Maggie.
O comissário apruma-se. Solta os papéis.
— Não, minha senhora. Começo eu.
Bentinho sorri largamente. No seu peito, a noite parece sorrir também.
— Se quiserem, começamos nós.
— Você se acha engraçado? — grita Maggie. — Diga-me lá o seu verdadeiro nome!
— Charles Poitier Bentinho, cara senhora. Todos os nossos nomes são muito verdadeiros.
O comissário Laranjeira debruça-se sobre a mesa. As grandes mãos dele avançam por entre os papéis.
— Olha lá, ó, turra, eu conheço-vos a todos. Estive na tua terra.
— Em Angola?! — A voz de Bentinho é quente e plácida. — Chefe Laranjeira, o senhor pode me servir um cafezinho?
— Não queres mais nada, não? Sim, eu conheço-vos bem, os pretos de Luanda, com a mania de que são superiores a toda a gente. Mesmo no tempo colonial achavam-se melhores do que os brancos. Eu conheci Angola quando aquilo ainda estava em condições.
Lara levanta-se.
— Nada, colega, esqueça. Não disse nada.
— Vamos com calma. — Lara coloca-se entre os dois policiais. Depois volta-se para o prisioneiro. Sorri para ele. — Explica-te melhor. Tens de compreender uma coisa. A acusação que pesa sobre ti é muito, muito grave. És suspeito de ligações a uma organização terrorista. Entendes?
Maggie agita um passaporte preto.
— Temos aqui o seu passaporte, senhor Bentinho. Está tudo aqui. Esteve na Síria durante dois meses. O que foi fazer na Síria?
Bentinho baixa os olhos.
— Recebemos instruções.
— Ah, agora, sim — exulta o comissário. — Agora começamos a nos entender. E recebeste instruções de quem?
Bentinho aponta para uma janela.
— Deles!
Maggie retira uma fotografia de um dossiê. Mostra-a ao prisioneiro.
— Estás a falar desta mulher?
— Conheces esta mulher?! — grita o comissário.
***
Na sua cela, Bentinho encosta o ouvido à parede, junto ao desenho do pássaro.
— Não ouço. Não ouço nada.
Silêncio.
— Aquela mulher?! Se eu conheço aquela mulher? Alguém pode dizer que conhece uma mulher? Eu a vi pela primeira vez em Paris, estava saindo da loja Yves Saint Laurent, onde comprei esta minha bela camisa, e dei com aqueles olhos. Aqueles olhos me enlouqueceram. Todo o corpo dela estava nos olhos. Até esse dia, eu olhava para uma mulher e só lhe via a bunda, só lhe via as pernas, só lhe via as mamas. Com a Faíza foi diferente. Eu só lhe vi os olhos, na verdade, porque não conseguia ver mais nada. Eram os olhos e a burca. A burca e os olhos.
Novo silêncio.
— Ela também olhou para mim. Mas não demorou o olhar, como é costume suceder. As mulheres gostam de mim. Tenho suégue, Deus sabe como tenho suégue! Tenho bué de banga. Sou angolano! Não preciso dos remédios que vendo aos meus clientes. Tem esse de muito efeito… o migosta. A gente também lhe chama perfume da domação. Nunca usei, não preciso. Agora, com aquela dama aburquesada… Aiuê, fiquei meio abuamado, sabes como é? Quanto mais ela me ignorava, mais eu me animava. Ela foi subindo a avenida, e eu atrás. Até que chegou à mesquita. Entrou. Eu nunca tinha visto uma mesquita. Fui embora. Na manhã seguinte, voltei. Vi que as pessoas se descalçavam para entrar. Hesitei. Então eu ia deixar os meus estilosos sapatos Louis Vuitton na má companhia daqueles outros calçados vagabundos?! Quando voltasse, quem sabe já não estavam lá. Nem o Louis nem o Vuitton. Fui embora. Um dia mais tarde, estava com uns cambas a comemorar o Dia de África, era noite, e vi uma mulher sentada a uma mesa próxima. Vi uma mulher! Quero dizer, vi uns olhos. E eram aqueles olhos. Era ela! Antes que eu tivesse tempo de pensar, ela levantou-se e dirigiu-se a mim. E aí começamos uma conversa sobre Deus e ela me perguntou se eu era crente. E eu respondi: “Moça, sou um crente irregular”. Faíza ficou desiludida. E eu percebi: para conquistar aquela dama, eu precisava me converter ao Islã. E me converti.
***
— Responde! — grita Maggie. — Conheces esta mulher?!
Bentinho hesita:
— É a Faíza.
— Faíza al Garbh!
— Exatamente.
— Faíza al Garbh, irmã do Abdelrahman al Garbh, dirigente do Estado Islâmico.
— Exatamente.
— Que tipo de relação tinhas tu com ela? — pergunta o comissário.
Bentinho volta-se para o agente, chocado:
— Relação, chefe Laranjeira?! De vários tipos, mas sempre com proteção.
— Proteção? Que tipo de proteção?
— Camisinha, sempre com camisinha. Sou um homem sério.
Maggie desaba, vencida, numa das cadeiras.
— De que é que ele está a falar?
Lara esconde o riso com as mãos. Parece muito jovem quando ri e sabe disso. Anos antes, Lourenço advertira-a: “Perdes toda a autoridade quando ris. Uma agente da autoridade não pode rir”. O riso, porém, é como a água: se tapamos a boca, ele sai pelos olhos. O riso de Lara fica a flutuar na sala, como uma luz subversiva. A jovem agente olha para o rosto fechado do comissário Laranjeira e faz um esforço para recuperar a compostura.
— Acho que sei do que ele está a falar — diz. — Não sei é do que nós estamos a falar.
— Camisinha! — insiste o prisioneiro, fazendo o gesto de colocar uma camisinha num pênis imaginário, um pau enorme. — Não é o que dizem as campanhas?
O comissário grita:
— Ah! Meu cabrão, preto filho da puta!
Maggie grita em cima do grito do comissário:
— Racismo, não! Eu apresento queixa contra o senhor…
— Queixa?! Queixa a quem?! Estamos em Portugal. Eu não trabalho para a senhora.
Bentinho ergue as mãos, sereno e elegante. É um príncipe, é o próprio papa.
— Por favor, meus senhores, queridos amigos, vamos ter calma! Estamos a conversar. Somos todos pessoas urbanas e civilizadas.
— Estão a ver isto?! — O comissário aponta para Bentinho. — Eu é que conheço estes cabrões, acham que são reis. Deixem-me lá conduzir isto.
— Exatamente! — concorda o prisioneiro.
— Exatamente! Exatamente! Estou farto dos teus “exatamentes”! Se dizes mais um “exatamente”, palavra de honra que te mato! — O comissário levanta-se e chuta a cadeira, que cai com estrondo. Volta a erguê-la. Respira com dificuldade. — Tu só falas quando eu te perguntar alguma coisa! Entendeste? Parece que estás numa passarela. Afinal, quantas gravatas tens?
— Trinta e uma, chefe Laranjeira! Uma para cada dia do mês. Nunca repito. A maioria comprada em Paris. O meu pai, Ngola Ndongo, sempre me dizia: “Filho, o respeito começa na gravata”. O senhor comissário, por exemplo, sem ofensa, é um homem bonito, bem-apessoado, ficaria muito bem com este meu terno. Se quiser, apresento-o ao meu alfaite, o senhor Almeida, o melhor alfaiate de Lisboa. Em Paris compro os meus trajes nas marcas mais conceituadas. Em Lisboa, mando o Almeida fazer.
— Não me dês conversa. O que eu quero saber é onde é que tu arranjas dinheiro para te vestires dessa forma.
— O negócio dos milagres corre bem. Quanto mais crise, mais demônios. Por exemplo, aqui em Lisboa, você pega o Correio da Manhã. Cada vez tem mais anúncios de quimbandeiros. Já há mais quimbandeiros do que meretrizes.
Maggie interrompe, agressiva, mostrando uma fotografia:
— Voltemos à Faíza. E com este, o irmão dela, o Abdelrahman, chegaste a ter alguma relação?
— Desculpe, colega, mas esta é a minha casa. Sou eu quem faz as perguntas — interrompe o comissário.
— E com este, o Abdelrahman, chegaste a ter alguma relação?
Bentinho olha para os três, desconcertado. Cobre o rosto com as mãos.
— Como descobriram? Eh pá, as pessoas falam bué, falam demais, falam à toa. Aquilo foi um terrível equívoco…
— Um equívoco?! — diz Lara.
— É que lá tem aquela moda estúpida, homens e mulheres andam todos de vestidos compridos. Um gajo fica confuso, fica ansioso, e um dia dei por mim a olhar com interesse para a bunda do meu cunhado. O que querem? Um homem não é de ferro. Aconteceu.
***
Na sua cela, voltado para a parede, de pé, Bentinho fala com o pássaro.
— Fazem-me falta um caderno e uma caneta para escrever aqueles meus versos. Os poemas são os meus remédios. Até me dava jeito agora, com aquelas duas policiais, fazer deslizar um charme. A portuga gosta de mim, já vi. A outra, a mulata, vai gostar. Vai ficar minha refém.
Silêncio. Bentinho aproxima-se do pássaro. Baixa a voz:
— Esse comissário Laranjeira, ele me lembra um dos meus pacientes. Um atormentado. Um antigo combatente. Um homem muitíssimo raivoso. Veio-nos consultar, Charles Poitier Bentinho, filho do grande quimbanda Ngola Ndongo, neto do príncipe do Congo, Nicolau Ndongo. Esse homem, o antigo combatente, estava com problemas no emprego. Até certo dia, todos lhe obedeciam. Ele nem precisava dizer uma palavra. Comandava o departamento só com a autoridade do olhar, tipo mocho. Então, de um dia para o outro, isso acabou: por mais que ele gritasse, ninguém lhe obedecia. Nem o espelho lhe obedecia. Era uma sombra. Deu-me muito trabalho trancar todos os demônios, uma legião deles. Esse comissário Laranjeira tem demônios muito, muito antigos, mas os meus poderes são ainda mais antigos. Descobri esses poderes quando tinha doze anos. Uma noite, recebi um sonho. Um pássaro me disse: “Nós, os pássaros, seremos a voz que te conduzirá. Voarás conosco, mas terás de aprender a escutar. O próximo mês dormirás nos cemitérios. No mês seguinte, dormirás nos sonhos de mulheres virgens. Farás assim até que elas despertem nos teus braços. Ensinar-te-emos a trancar demônios. Os pequenos demônios da inveja. Os demônios cintilantes da ambição. Os demônios frios da impotência. Os demônios úmidos da luxúria. Os tristes demônios de asas quebradas que nos falam como se fossem anjos”.
Bentinho cala-se um momento. Acaricia o pássaro.
— E assim me tornei mestre em espíritos, domador de demônios e dragões. Abri um consultório, com anúncio no Jornal de Angola. Tornei-me um missionário de sucesso. Os pacientes se multiplicaram como estrelas num céu sem nuvens: ministros, generais, futebolistas, cantores de muita fama. Um dia, estando doente em casa, mandei pedir uma pizza. Quando a pizza chegou, tive uma iluminação: por que não vender milagres a domicílio? Foi o que fiz e fiz muito bem.
Nova pausa. Bentinho parece escutar algo, encosta o ouvido à parede. Permanece imóvel, sacudindo a cabeça.
— Entendi. É essa a minha missão? Cada um desses policiais tem os seus demônios, todos estão possuídos, todos andam no meio de pedras afogueadas. Sim, meus pássaros, vou trancar esses demônios.
***
Lara entra no escritório da Polícia Judiciária. Está vazio. A jovem agente dirige-se para a escrivaninha do comissário Laranjeira e vai remexendo em papéis e objetos.
— Olhe para isto, tudo desarrumado. Esse homem não mudou…
Alguma coisa lhe chama atenção. É uma fotografia.
— Ele ainda tem esta foto? Meu Deus! Eu era tão menina e tão ingênua. Como pude acreditar que daria certo?
O comissário Laranjeira entra neste momento, segurando uma xícara de café. Detém-se, surpreso. Sorri:
— A mexer nas coisas dos outros?
Lara pousa a fotografia na mesa. Olha-o com ternura.
— E não é isso que fazemos, comissário?
— Há coisas nas quais é melhor não mexer.
— A sério?
— É melhor não acordar o passado.
Lara senta-se. Entristeceu.
— O passado é o meu presente. Já te disse que todas as noites sonho com aquilo?
— Lara, Lara, foi um acidente…
Lourenço Laranjeira ajoelha-se diante dela, vai para abraçá-la, mas a mulher recua o tronco, as mãos espalmadas. Maggie entra.
— Interrompo?
— Não, não! — diz Lara. — Não interrompe nada. Vamos trabalhar. Há um homem preso, talvez injustamente.
— Alguma culpa ele tem. Este homem não é inocente. Era amante e amigo de terroristas. Esteve na Síria. Saltou a vedação para a placa do aeroporto com uma bomba num saco…
— Uma bomba, Maggie?! — Lara olha irritada para a americana. — Eram garrafas de vinagre.
— Sabes o que se pode fazer com vinagre?
— Salada?
— Maggie tem razão — diz o comissário. — Tu faltaste às aulas de química.
— Cala-te! Vai buscar o Bentinho!
O comissário Laranjeira sai contrariado. Maggie estuda Lara com curiosidade.
— Passa-se alguma coisa entre vocês?
— Não.
— Há quanto tempo se conhecem?
— Há demasiado tempo. Sabe, gostaria de ser como esse Bentinho, um mentiroso compulsivo, um inventor de histórias. Quem sabe eu inventasse um outro passado para mim.
— Bentinho mente tão bem que todos acreditam nele. Recebi nesta manhã, da minha agência, os resultados de uma investigação com pessoas que o consultaram, em Angola. Não vai acreditar. São só elogios. Sujeitos que encontraram cura para os problemas mais diversos.
— As pessoas querem ser enganadas.
— Tem razão, as pessoas pagam para ser enganadas. Mas, diga-me, do que não gosta no seu passado?
— Este caso lembra-me um outro. Prefiro não falar sobre isso.
— Para mim é como um regresso à África. O meu pai era pastor protestante. Quando eu tinha quatro anos, fomos para Moçambique. Vivemos lá até os meus quinze anos. Depois fomos para o Sudão, e aí aconteceu uma coisa terrível. Homens armados assaltaram a missão e mataram o meu pai à catanada. Escondida num armário, não vi nada, mas ouvi tudo. Naquele quarto, a uns metros de mim, a minha mãe foi violada. As milícias saíram e eu continuei ali, fechada, até a minha mãe me ir buscar. Nunca mais a consegui olhar nos olhos…
— Nem sei o que dizer…
— Agora veja a ironia: um homem que sempre se preocupou com as suas origens, que sempre sonhou em visitar a África para encontrar os seus antepassados e levar-lhes a palavra de Deus, acaba assassinado de forma tão cruel.
— É uma história terrível. E a sua mãe?
— Voltou à África. Não compreendo.
— Eu posso entender. Por vezes precisamos revisitar o lugar onde nos feriram. Além disso, pelo que me conta, os seus pais tinham essa ligação profunda com a África. Você não tem?
— Não me interessa. Sou americana, nunca senti esse drama da identidade. Sinto uma outra carência. O meu pai no princípio visitava-me em sonhos. Agora já nem isso. Não imagina como me dói, a pessoa mais importante na minha vida desapareceu duas vezes.
— Você quer lembrar, eu só quero esquecer.
— E o que tanto quer esquecer, Lara?
— Quero esquecer certas pessoas!
— O comissário Laranjeira?
— Trabalhamos juntos. O meu primeiro posto foi na Polícia Judiciária. O Laranjeira era meu chefe. Eu era muito jovem, tinha vinte anos. E o Lourenço… O Laranjeira… era um homem bonito, com muita vida atrás. Apaixonei-me loucamente por ele.
— Estranho. Vocês parecem tão diferentes.
— Não imagina o quanto. Mas eu o admirava muito. Já àquela altura o Laranjeira era uma lenda na Polícia Judiciária. Eu não queria ver o que estava à vista de todos. Achava que a amargura dele, o racismo dele, tinham a ver com o trauma da guerra em Angola. Achava que, com a minha ajuda, ele conseguiria superar isso.
— Ninguém transforma ninguém.
— Eu achava que sim. Um dia acompanhei-o no interrogatório a um jovem rapper negro, acusado de ligação com uma gangue. Lembro-me muito bem desse jovem, era um miúdo alto, bonito, com aquela arrogância própria da idade. Troçava de nós. O Laranjeira enlouqueceu. Esbofeteou-o. Empurrou-o. O miúdo caiu para trás e bateu com a cabeça numa esquina.
Neste momento entra o comissário Laranjeira, assobiando. Detém-se, olha para as duas mulheres, percebendo a tensão.
— O que se passa aqui?
— Vou fumar. Volto já.
— Posso saber o que se passa, Lara?
— Vou fumar também.
— Mas tu não fumas!
— Comecei agora.
***
Sentado à sua escrivaninha, o comissário Laranjeira finge ler um relatório. Guarda os documentos e abre outra pasta. Bentinho, sentado diante dele, sorri com bonomia.
— Onde estão as nossas damas?
— Foram fumar.
— Pensei que a agente Lara não fumasse.
— Começou agora.
Lara e Maggie entram juntas.
— Vamos ao trabalho — ordena Maggie.
Lara tira um caderno da sua pasta e mostra-o ao prisioneiro:
— Podes dizer-nos o que é isto?
— É o meu caderno.
— “Caderno dos segredos e das revelações”.
— Exatamente.
— Algumas passagens deste teu livro deixaram-nos intrigados. Por exemplo, na página trinta e dois, está escrito: “Hoje recebi as instruções do Seven Power”.
— Sim, agora diga: que organização é essa, Seven Power? —questiona o comissário.
— Desconheço.
— Desconheces?! — O comissário levanta-se. — Como podes desconhecer se recebes instruções deles?
— A Lara iniciou este interrogatório — diz Maggie. — Deixemos que seja ela a continuar.
— Exatamente. — Bentinho sorri.
— Já disse que quem manda aqui sou eu. — grita o comissário. — Estamos na PJ!
Maggie encolhe os ombros:
— Por favor, Lara, continue.
— Disseste que desconheces a organização. Como assim? — pergunta Lara.
— Desconheço mesmo. Eu apenas recebo o produto.
— Que produto?
— Esse pó que vem da Nigéria. Aplica-se em lavagens.
— Que lavagens?
— Dos atormentados.
— Atormentados?
— Atormentados. Pessoas que sofrem de demônios. Faz-se um banho com esse pó, e essas pessoas são lavadas sete vezes e, desse modo, ficam salvas.
— Estamos a perder tempo. — O comissário suspira. — Assim não vamos a lado nenhum.
— O que sugeres?
— Passa-me esse caderno! — exige o comissário. Lara passa-lhe o caderno. — Página dez, página doze, página vinte e quatro… Sempre isto: “Hoje recebi instruções”. Afinal, quem te passa essas instruções? Quem é que te diz para ires para ali ou para acolá?
Bentinho abre os braços como se fosse voar.
— Os pássaros!
— Um bom pássaro me saíste tu! Isto agora é uma conversa de homens.
— Exatamente!
— Mas que “exatamente”, porra! Limita-te a responder às minhas perguntas. Responde então a esta: para que era o vinagre? Tinhas cinco litros contigo no aeroporto, e lá na pensão onde estavas alojado, a pensão Andorinha, encontramos mais de cinquenta litros. Para que querias tu tanto vinagre?
— Como já expliquei, eu executo voos noturnos. Preciso de muito combustível.
Maggie levanta-se. Esfrega os olhos. Parece exausta.
— Por favor, preciso ficar um momento a sós com este senhor.
— A sós com ele?! — O comissário a olha, irritado. — Para quê?
— Porque eu quero!
— Por mim acho muito bem — diz Bentinho. — Também preciso ficar a sós com ela.
— Venha comigo, comissário. — Lara estende a mão ao comissário. — Vamos os dois fumar um cigarro.
Saem os dois. Maggie senta-se na cadeira do comissário, voltando-se a Bentinho:
— Vou ser direta, não temos muito tempo. Esse seu discurso ofende-me! Ofende-nos a todos nós, negros! É isto que racistas como este comissário querem ouvir.
— O senhor comissário não tem culpa. São os demônios que falam pela boca dele.
— Basta! Basta! Sabe por que não acredito em si? Porque o senhor não parece uma pessoa, é uma caricatura!
— Já lhe disseram que você fica linda quando se exalta?
Maggie levanta-se, abanando a cabeça, e sai para chamar os outros dois.
***
Lara, Maggie e o comissário Laranjeira conversam uns com os outros. A cadeira em que se sentou Bentinho permanece vazia. Contudo, é como se ele ainda estivesse lá.
— Isto não está a correr bem — fala o comissário, voltado para Maggie. — Houve uma falha na linha de comando, o gajo percebeu e está a gozar conosco.
— Não é nada disso — contesta Lara. — Precisamos ter a abertura de espírito para aceitar a possibilidade de que o tipo seja inocente. Eu acho que ele é inocente. Parece-me um pobre homem, apanhado por acidente nas malhas de um processo que o ultrapassa.
— Não sei, não — opõe-se Maggie, mordendo os lábios. — No meio da mentira e do delírio, há ali fragmentos de verdade. Por exemplo, aquilo que ele contou, que teve relações sexuais com o Abdelrahman al Garbh.
O comissário Laranjeira ri livremente:
— Por equívoco, diz o gajo. Por equívoco.
— Por equívoco ou não. A confissão coincide com um relatório que recebi hoje, segundo o qual o Abdelrahman foi executado pelo Isis como sodomita.
Lara ergue as sobrancelhas:
— Os sodomitas são executados de forma particular?
— Sim. Esmagam-nos derrubando um muro sobre eles. Ele foi morto assim. Se isso aconteceu, então talvez seja verdade o que o Bentinho conta, que teve de se esconder e fugir da Síria por estar a ser perseguido pelo Estado Islâmico.
— E o que aconteceu à mulher? — pergunta Lara.
— Desconheço. Desapareceu.
— Vocês duas veem muitos filmes. É isso que ele quer que nós pensemos, que é um pobre louco que estava na hora errada no lugar errado… Desculpem, o meu telefone… Tenho uma chamada… Preciso mesmo atender. É o ministro.
O comissário atende ao telefone. Levanta-se, faz uma pequena mesura. Afina a voz:
— Bom dia, senhor ministro, muito bom dia… Sim, sim, vi as notícias, mais um homem-bomba. O mundo enlouqueceu, senhor ministro. Não se fala noutra coisa… Sim, eu sei, eu sei, estamos a apertar com ele… Com certeza, senhor ministro, pode ficar descansado. Eu ligo para o senhor. Muito bom dia.
Lourenço Laranjeira desliga o telefone e atira-o para cima da escrivaninha. Volta a sentar-se. Encara as duas mulheres com uns olhos assustados:
— Perceberam? Não estamos aqui para discutir a antropologia dos terroristas. Eles querem resultados. Já!
— Seria melhor se quisessem justiça! — rosna Lara.
— Todos nós queremos justiça, Lara — diz Maggie. — Também os meus chefes estão inquietos.
O comissário debruça-se sobre a escrivaninha. É um homem grande e assustado.
— Estamos em guerra, uma guerra global. Aquela gente quer acabar com a civilização ocidental. Uma pessoa prestes a ser mordida por uma cobra manda vir um biólogo para avaliar se esta é venenosa ou corta-lhe logo a cabeça à catanada?
Lara abana a cabeça. Também ela está assustada.
— Então o que pretendes é fabricar um terrorista!
— Por que é que não foste para freira?
Lara levanta-se. Grita:
— Vai-te foder! — Ela sai batendo a porta.
O comissário ergue-se, faz menção de segui-la, mas volta atrás:
— Ouça, Maggie. Peço-lhe desculpa. No outro dia, não queria magoá-la. Eu não sou racista. Em Angola era o único branco no meu batalhão. Fiz amigos. Chamavam-me Papá Alauka, que no dialecto dos gajos significa “homem verdadeiro”. Amigos morreram-me nos braços. Até hoje recebo cartas de antigos companheiros…
Maggie interrompe-o:
— Não quero ouvir as suas explicações. Não gosto do senhor. Não vou gostar nunca. Mas não é isso que está em discussão. Temos uma missão a cumprir.
— Tens razão. Deixe-me só concluir. O que se passa é que este Bentinho lembra-me os outros turras, aqueles que mataram os meus companheiros.
— Você acaba de receber uma chamada do seu ministro. Eu tenho o meu chefe à perna todos os dias. Temos de acabar depressa com isso. Deixem-me levar o homem. Você sabe que foi para isso que eu vim.
— Isso não pode ser. O que temos não chega. Arranje algo que convença a Lara.
***
Anoitece. Na sua cela, enquanto as sombras avançam, Charles Poitier Bentinho conversa com o pássaro.
— Tenho andado a observar-te, meu pássaro. É verdade que estás muito prisioneiro. Mas antes preso a um muro do que morto debaixo dele. Eu escapei desse destino. Foram dias de muito medo, cercado de demônios. Sou mestre em espíritos, domador de dragões, isso veio-me a ser útil lá na Síria. Um dos comandantes me chamou um dia, muito secretamente, porque sofria de um mau desempenho, o armamento dele não funcionava, e ouvira falar dos meus talentos. Implorou-me ajuda. Resolvi o problema. Quando começaram a me perseguir, me lembrei dele. Não regateou. Me ajudou a sair do país, direto para a França, com risco da própria vida.
***
Num dos escritórios da Polícia Judiciária, o comissário Laranjeira, Lara e Maggie estão de novo juntos. O comissário cortou o cabelo. Parece mais novo. Parece ainda mais novo quando fala:
— Tenho uma boa notícia e uma má notícia. A boa notícia é que recebemos ontem uma denúncia anônima indicando que a Faíza al Garbh estaria alojada numa pensão no bairro dos Prazeres, chamada A Flor dos Prazeres.
— Faz sentido — diz Maggie. — Temos informações de que ela teria saído da Síria com o Bentinho.
— Apanharam-na? — pergunta Lara.
— Não — diz o comissário. — Essa é a má notícia. Quando chegamos à pensão, ela já se tinha evaporado. Nem sinais. Mas a proprietária da pensão reconheceu a fotografia.
— Para compensar, eu tenho uma boa notícia — interrompe Maggie. — Mais uma prova de que estamos diante de um terrorista. Eis aqui a transcrição de uma conversa telefônica entre o prisioneiro e a Faíza, pouco depois de eles terem se conhecido.
Maggie exibe um papel que entrega ao comissário.
O comissário lê em voz alta:
Bentinho: Bom dia, minha pérola do Oriente.
Faíza: Salaam Aleikum, meu amigo.
Bentinho: Quero oferecer-te o meu livro, Minas
& armadilhas. Interessa-te?
Faíza: Interessa muito, mas esta não é uma
conversa que se possa ter ao telefone. Vem a
minha casa esta noite.
Bentinho: Lá estarei.
Lara estende a mão:
— Posso ver isso? — Lê em silêncio. — Onde está o livro?
— Ainda não o conseguimos encontrar — diz Maggie.
— Para que queres o livro? — pergunta o comissário. — Não te basta esta transcrição? O homem combateu durante cinco anos no Exército angolano. É perito em explosivos. Escreve um livro chamado Minas & armadilhas. Achas que o livro trata de quê? Poesia?
— Vamos interrogá-lo sobre isso.
— Por amor de Deus, Lara, não sejas teimosa. Estamos a perder tempo. Está aqui o formulário para a transferência do prisioneiro. Eu já assinei. Assina tu.
— Quero falar com o preso.
***
Charles Pontier Bentinho está deitado no chão da sua cela. Um fio de luz cai do alto, iluminando-lhe os olhos.
— Sabes o que é o amor, meu pássaro? Muitos julgam que sabem, mas nem o perfume lhe distinguem. Eu mesmo, que conheci mais de mil mulheres, quantas amei na verdade? Eu, mestre de espíritos, domador de dragões, tratei um sem-fim de gente. As pessoas se queixavam de dores diversas, incompetências sexuais, agonias e desesperos, rugas e verrugas, invejas, rancores e maus odores, mas, vendo bem, quase todas sofriam era de falta de amor. E, de tanto tratar os outros, não me dei conta de que também eu vinha sofrendo do mesmo mal. Percebi isso no instante em que, lá em Paris, tropecei nos grandes olhos de Faíza. Ah, meu amigo, olhos como oceanos. Como se toda a luz do mundo nascesse daqueles olhos. Não me converti ao Islã, não! Me converti a ela.
***
Bentinho está sentado diante da escrivaninha do comissário, na presença deste, de Maggie e de Lara. O comissário encara-o triunfante:
— Com que então escreveste um livro, Minas & armadilhas?
— Exatamente, chefe Laranjeira.
— E o que nos podes dizer sobre essas minas? Ao longo da tua vida, quantas minas montaste?
— Chê, mais-velho, difícil dizer ao certo. Montei bué: muitas, muitas, muitas. Mais de mil.
— Mais de mil?!
— Palavra da minha honra! Mais de mil. Só na época em que fui taxista, porque eu fui taxista, naquela época eu tinha uma mina em cada bairro. Até mais do que uma. No Sambila, umas cinco, nacionais. No Rangel, uma soviética.
— Soviética?
— Ucraniana, melhor dizendo. Grandes pernas.
— “Pernas”?! — espanta-se Maggie.
— Não é para me gabar. Nessa época fiz muita mulher feliz!
Lara não se consegue conter e irrompe em gargalhadas. O comissário imita-a.
— Este gajo é uma comédia!
Maggie olha para todos, desorientada:
— Desculpem, para ver se eu entendo: de que trata esse livro?
— É um livro de poemas, agente Maggie. Eu sou um poeta romântico de muito sucesso. O meu livro está em grandes bibliotecas internacionais. Obama tem o meu livro. Sei que gostou muito. O Papa Francisco tem o meu livro. Adorou. Mia Couto me escreveu pedindo a honra de um prefácio.
— E as “minas”? As “armadilhas”? — pergunta Maggie.
— Todas as minas são armadilhas. Nem há melhor armadilha que o jardim secreto de uma mulher.
Lara, chorando de rir:
— Jardim secreto?!
— Taça perfumada, o repouso do varão, as portas do céu…
O comissário interrompe-o:
— Ok. Ok. Já entendemos. Vou levar-te de volta à cela.
O comissário Laranjeira sai com o preso.
Lara fala a Maggie:
— Depois disto, ainda acha que temos um caso? O homem é completamente tonto.
— Ou faz-se de tonto — diz Maggie. — É um bom ator.
— Não cheguei a contar-lhe como terminou o episódio com o rapper. O que se está a passar lembra-me muito isso.
— O que aconteceu?
— O jovem morreu. O Laranjeira alegou legítima defesa e pediu-me que confirmasse a versão dele.
— E, claro, você confirmou.
Lara, agora em lágrimas, não responde.
O comissário Laranjeira reentra no escritório.
— O que se passa aqui?
Lara diz, tentando secar as lágrimas com as mãos:
— Sabes muito bem o que se passa.
— O que quer que seja — diz Maggie —, não é para aqui chamado. Somos policiais. Temos um caso em mãos. Vamos tratar deste caso.
— Exatamente! — concorda o comissário.
— Este caso tem a ver com o outro — diz Lara. — Vocês querem colocar-me na mesma situação.
— “Vocês”?! — pergunta Maggie.
— Não sei do que estás a falar — acrescenta o comissário Laranjeira.
— Então eu explico-te.
— Tratem dos vossos assuntos fora daqui. São assuntos pessoais.
Lara exalta-se. Grita:
— Não são assuntos pessoais!
— Acalma-te, porra. — O comissário dá um soco na mesa. — Estás naquela altura do mês?
— Comissário, pelo amor de Deus! — diz Maggie.
Lara chora, em desespero:
— Odeio-te! Odeio-te! Odeio-me por aquilo que me obrigaste a fazer.
— Obriguei?! O que foi que te obriguei a fazer?
— Eu sei o que foi. Aqui, todos sabemos.
— Não sei lidar com mulheres histéricas!
— Mulheres histéricas?! — pergunta Maggie.
— Sim, histéricas. Nunca deviam ter deixado as mulheres entrarem sem para a polícia. Vocês não sabem lidar com situações de tensão. Choram por qualquer coisa.
— Eu não estou a chorar.
— Pois espera que já choras, sua afro-americana de merda!
— Do que foi que me chamou?
— Afro-americana. Ou prefere que lhe chame preta?
Maggie levanta-se. Endireita a saia.
— Acabou-se. Vou apresentar queixa contra o senhor.
— Apresente. Quero lá saber.
Maggie sai. Lara e o comissário trocam um olhar pesado. Lara baixa os olhos. O comissário sorri tristemente.
— Não sei que história lhe contaste, Lara. Eu vou ter de contar a verdade a ela.
***
O comissário visita Bentinho na sua cela. O angolano, sentado na cama, mostra-lhe o lugar vazio ao seu lado.
— Vai ficar em pé, mais-velho? Sente-se aqui.
— Prefiro ficar de pé.
— Parece preocupado. O que se passa?
— Por que é que vocês, pretos, têm problemas quando vos chamam pretos? A mim, podem chamar-me branco que eu não me ofendo.
— Conte-me lá o que se passa. Problemas?
— Aquela cabra, a americana, fez queixa de mim.
— Tente entender, mais-velho. A dona Maggie está atormentada por fortes demônios.
O comissário senta-se na cama, ao lado de Bentinho.
— O meu chefe chamou-me. Não só querem retirar-me deste caso, como ameaçam mover-me um processo e expulsar-me da polícia.
— Não tenha receio de se abrir comigo. Estou aqui para ajudar.
— Sempre fui polícia. Não sei ser outra coisa. O meu pai tinha uma pequena mercearia, ali no Alto da Cova da Moura. Um dia um preto – sem ofensa! – assaltou a loja e deu-lhe uma navalhada. O meu pai não morreu, mas perdeu a vontade de viver. Eu era muito miúdo. Aquilo marcou-me. Decidi entrar para a polícia para ajudar as pessoas.
— Para o seu caso, sugiro uma lavagem com o Seven Power. Você tem o produto consigo. Toma o primeiro banho às seis da manhã, em jejum. O segundo uma hora depois, e assim sucessivamente. Durante esse tempo, você não pode comer nem ter relações sexuais. Entendeu?
— Foram o quê, quarenta anos de carreira? Uma vida. Uma vida inteira. Olha, ó rapaz, não tens aí o número desse teu alfaiate?
— O senhor Almeida? Vocês tiraram-me o meu telemóvel.
O comissário entrega-lhe o telefone.
— Aqui tens.
— É melhor ligar para ele. Não recebe toda a gente. Um momento… Alô, senhor Almeida? Ah, você reconheceu-me, o prazer é meu… Onde estou? Estou num salão de repouso, aqui mesmo, em Lisboa. Estou com um amigo, um irmão mais-velho, que está muitíssimo necessitado dos serviços de um bom alfaiate. Eu disse-lhe que você é o melhor alfaiate de Lisboa. O meu amigo é da Polícia Judiciária, comissário Laranjeira… Um momento… Em que dia lhe dá jeito, mais-velho?
— …Sexta-feira?
— Sexta-feira… Trate-o bem. Vai da minha parte. Abraço, energia positiva.
O comissário arranca-lhe o telefone das mãos e levanta-se.
— Dá-me lá essa merda. Não penses que te safas. Vamos mandar-te para Guantánamo.
***
O comissário Laranjeira anda de um lado para o outro, no seu escritório, em largas passadas nervosas. Está muito elegante, num terno escuro, camisa de seda azul, fina gravata às riscas. Fala alto enquanto caminha:
— Preciso dar a volta a isto, nem que tenha de lixar o preto. Seja como for, o gajo já está lixado. Até me dá pena, nem me parece mau tipo, mas agora é ele ou eu.
Maggie espreita na porta. Tosse para chamar a atenção do outro.
— Espero que tenha alguma coisa realmente importante para me dizer.
— Muito mais do que podes imaginar. Tenho algo que resolve este caso.
— Muito bem. Mostre-me.
— Você retira a queixa, deixa-me trabalhar e daqui a dois dias eu entrego-lhe uma confissão. Você leva o homem e nunca mais nos vemos.
— Confissão? Ambos sabemos que o pobre diabo é inocente.
— Ninguém é tão inocente que não possa parecer culpado. O Bentinho vai confessar.
— E onde fica a verdade?
— Verdade?! Não nos pagam para encontrar a verdade. Temos um crime, precisamos de culpados. E assim tranquilizamos as multidões. Não é isso que querem os seus chefes?
— Certo. Dois dias. Dou-lhe dois dias.
— E quanto à queixa?
— Foi um equívoco, o meu conhecimento da língua portuguesa é um pouco elementar.
— Exatamente! Exatamente! Então estamos conversados. Não diga nada à Lara.
***
Bentinho recebe nova visita do comissário Laranjeira. Está sentado num pequeno banco, sob o desenho do pássaro. O comissário permanece de pé, junto à porta.
— Conheces a pensão A Flor dos Prazeres, no Bairro dos Prazeres? — pergunta o comissário Laranjeira.
— Não me faça isso, comissário, somos amigos.
— Não somos amigos. Noutra vida poderíamos ter sido amigos.
— Não, isso não, comissário. A Faíza, não!
— Estás apaixonado, não é? As mulheres é que nos destroem.
— O que fizeram com ela?
— Para já, nada. Por enquanto só eu sei onde a tua amada se esconde. Agora depende de ti.
— O que você quer?
— Quero uma confissão tua.
— E o que devo confessar?
— Que recebeste treinamento do Estado Islâmico na Síria e que foste enviado a Lisboa para explodir um avião americano.
— Como é que eu sei que depois a deixam em paz?
— Não sabes. Terás de confiar em mim. Dou-te a minha palavra que não a prendemos, não a prenderemos.
— Acredito no senhor. E a mim? O que me irá acontecer?
— Vais para a América. Não é assim tão mau.
— Sabendo que Faíza é livre, não estarei preso. Não tenho medo de prisões.
— Começo a acreditar nisso. Neste momento sou eu mais prisioneiro do que tu.
— Exatamente. Eu assino.
— Compreendes que, para garantir a segurança da Faíza, esta conversa nunca poderá sair daqui? Nunca aconteceu.
— Exatamente.
O comissário estende-lhe a mão:
— Exatamente!
***
O comissário está à sua escrivaninha, tomando notas num laptop, quando Lara entra. A mulher detém-se. Sorri, espantada:
— Estás muito bem-vestido. Bela gravata.
O comissário levanta-se e abraça-a.
— O respeito começa na gravata.
Lara se solta.
— Mas não estamos aqui para falar na tua nova roupa, não é assim?
— É verdade. Este caso do Bentinho chegou ao fim. Ele confessou. Aqui tens a confissão, assinada por ele.
— Não acredito. — Lê. Perde o sorriso. Encara o comissário com raiva. — Não acredito! Não pode ser! Não acredito nisto!
— Não acreditas em quê?
— Não acredito em nada disto! Não acredito em ti!
Levanta-se e atira os papéis ao chão, pisa-os.
O comissário afasta-a, recolhe os documentos.
— Calma! Se não acreditas em mim, tudo bem, fala com ele!
Lara senta-se, desanimada:
— O que fizeste?
— Fiz o meu trabalho, Lara. Investiguei. Confrontei o prisioneiro com novos dados. Ele cedeu. Fim da história. Tenho aqui os papéis para a extradição. Só falta a tua assinatura.
— Não vou assinar. Quero falar com o Bentinho. Quero ouvir da boca dele.
***
Lara entra na cela de Bentinho. A cela tem agora uma pequena mesa coberta por um pano africano. Sobre o tampo da mesa há um conjunto de búzios e pequenos ossos. O angolano levanta-se ao vê-la.
— Bem-vinda ao meu humilde consultório, agente Lara.
Lara agita os papéis da confissão.
— Podes dizer-me o que é isto?
Bentinho lê as primeiras linhas. Devolve os papéis.
— É a minha confissão!
— Como foi que tu assinaste esta coisa?
Bentinho volta a sentar-se. Joga os búzios.
— Dona Lara, diga-me lá, qual é a data do seu nascimento?
— O quê?
— Você é de março, não é?
— Como sabes?
— Isso é fácil. O que eu não consigo saber é o dia. Deixe-me lançar de novo os búzios.
— Não quero.
Bentinho volta a lançar os búzios.
— Diz aqui: você vive com um morto.
— Não gosto desta conversa.
— Você tem de deixá-lo ir embora. O morto já perdoou.
— Não sei do que estás a falar.
— Você é uma boa pessoa. Esse menino, o morto, quer ir embora. Mas você não deixa.
Volta a jogar os búzios.
— Para com isso — pede Lara.
— Dona Lara, dói-me tanto vê-la assim, infeliz. A culpa é a pior das prisões.
— O que posso fazer? Meu Deus, o que posso fazer? Não consigo esquecer. Sempre que fecho os olhos, vejo o rosto dele. Durmo e sonho com ele. Acordo e ali está ele, estendido na minha cama, o sangue espalhado nos lençóis.
— Dona Lara, escute: não foi você que o matou. Ele estava no fim. Ele caiu aqui, neste lugar, exatamente aqui. Mas tropeçou muito tempo antes. Você não conhece a história dele?
— Sim, sim, acho que tens razão.
— Vá, dona Lara, vá em paz. Não há culpado que não mereça ser inocente.
Lara sai, esquecendo-se dos papéis. Bentinho chama-a.
— Não esqueça isto. Eu sei por que assinei estes papéis. Teve de ser.
Breve silêncio. Lara sai.
Bentinho continua a falar, como se não tivesse dado pela saída da mulher:
— Por onde eu vou vocês não podem ir. Como eu vos amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso saberão que são meus discípulos.
***
Lara senta-se diante do comissário Laranjeira. O homem folheia um livro, distraído.
— Então, falaste com o Bentinho? Estás satisfeita?
— Ainda não sei o que lhe fizeste. Alguma coisa fizeste.
O comissário ergue os olhos.
— Ele disse que eu lhe fiz alguma coisa?
— Vão mandá-lo para Guantánamo?
— Isso já não é um assunto nosso.
— Não é justo, não é justo. Não posso assinar.
— Podes, sim. Se não assinares isto, a Maggie mantém a queixa e eu serei expulso da polícia.
— Problema teu…
— Problema meu?! Arrisquei a minha carreira por ti. Salvei-te a pele… Contaste a história ao contrário à Maggie, não foi?
— Não devia ter feito isso. Desculpa. Tenho muita vergonha.
— Eu amava-te muito. Como eu te amava.
Ficam os dois em silêncio. Escuta-se, vindo do pátio, um pássaro a cantar. O comissário ergue o olhar, subitamente alerta.
— Ouves?! Estás a ouvir o pássaro? Nos últimos dias, as árvores, lá fora, encheram-se de pássaros.
— Perdoas-me?
O comissário olha-a com ternura. Passa-lhe um documento.
— Vá, assina!
Lara assina.
***
O comissário está sozinho no seu escritório, vestido de forma ainda mais elegante e ousada. Tem auriculares nos ouvidos e dá uns passos de dança enquanto canta em lingala um tema de Papa Wemba. Lara entra. Fica a vê-lo dançar.
— A dançar?! Já nem sei quem tu és!
O comissário Laranjeira, de costas para Lara, de olhos fechados, não a escuta. Continua a dançar, cada vez com mais entusiasmo. Dança bem, como se tivesse dançado a vida inteira. Lara senta-se, apreciando o espectáculo. Finalmente, o comissário abre os olhos e dá com ela.
— Estou impressionada — suspira Lara. — Não sabia que dançavas tão bem. Quando estavas comigo não gostavas de dançar.
— Agora gosto.
— E o Bentinho? Ele está pronto? Só vim aqui para me despedir.
— Está na cela, com a Maggie.
— O que estavas a ouvir?
— Papa Wemba, um músico congolês que o Bentinho me recomendou. Tenho ouvido muita música africana ultimamente. Descobri uma discoteca angolana perto da tua casa. É sexta-feira. Queres ir dançar comigo logo à noite?
— Se dançares como há pouco, quero muito. Sabes que eu adoro dançar.
***
Bentinho está na sua cela vestido com um uniforme laranja. Maggie, diante dele, olha-o envergonhada.
— Não vou conseguir estar outra vez consigo a sós. Por isso pedi para lhe falar agora. Sei por que assinou a confissão. Está a proteger a Faíza. Levei algum tempo a entender por que decidiu sacrificar-se por ela. Você tem consciência de que esse gesto o atira para um futuro difícil, não tem? Você atirou-se para o precipício.
— Quando alguém está apaixonado, os abismos são como prados.
Ocorre um breve silêncio. Maggie, sentada à pequena mesa, cobre o rosto com as mãos.
— A sua generosidade surpreendeu-me, tenho de confessar. Fez-me pensar. Acho que, de certo modo, me transformou.
— É essa a minha missão. Sou um agente transformador. Transformo a dor em esperança.
Maggie olha-o, entre comovida e irritada:
— Não me interrompa… Não sou africana… Eu odiava a África. Tinha razões para isso, achava que tinha razões para isso. O que sucedeu com a minha família cegou-me. Eu olhava para a África e só via o horror. Não conseguia ver a beleza. Você surgiu, com essas falas de palhaço, e foi a confirmação de todos os meus preconceitos. Percebo agora que estava errada. Peço-lhe desculpa.
— Está muitíssimo desculpada. Queria pedir-lhe um favor. É que esta roupa…
— Um momento. Ainda não terminei. Você é importante para nós porque esteve na Síria, ao lado do Isis, combatendo ou não. Viu muita coisa. Ouviu muita coisa. Por que pensa que está vestido de laranja? Vão espremê-lo como a uma laranja.
— Exatamente… Mas ao menos para esta viagem não posso ir vestido com as minhas roupas? Uma boa gravata… A senhora sabe, o respeito… Depois podem me espremer…
— Já sei, já sei, o respeito começa na gravata. Não, não pode ser. São as regras. Vou deixá-lo a sós. Daqui a pouco voltarei para buscá-lo.
***
Bentinho, sozinho na sua cela, raspa com as unhas o desenho do pássaro e recolhe o pó para uma caixinha. Faz isso lenta e minuciosamente enquanto canta. Terminado o trabalho, lança o pó para a luz, através das grades da cela.
— Vai, meu amigo, meu pássaro. Vai e voa, livre, de volta ao céu. Enquanto houver pássaros no céu, ninguém me poderá prender.
***
Bentinho surge algemado no escritório do comissário, ladeado por dois agentes americanos, fardados e armados. O comissário o abraça.
— Ficas bem de laranja.
Lara dá dois passos.
— Também quero dar-te um abraço. Sei que estás inocente. Continuarei a lutar por ti.
— Vamos embora — interrompe Maggie. — Temos um avião à nossa espera. Um longo voo pela frente.
Vindo do exterior escuta-se um amplo revoar de pássaros e o seu alegre pipilar. Bentinho olha para a janela que dá para o pátio. O comissário acompanha o olhar dele.
— Boa sorte, meu mano — diz o comissário. — Vais ter saudade dos pássaros.
— Fique tranquilo, comissário: em toda a terra há céu, e em todo o céu há pássaros.