quarta-feira, 28 de julho de 2021

O terrorista elegante. Mia Cuoto. Jose Eduardo Agualusa

 



Poucas pessoas na polícia judiciária sabem o nome de batismo do comissário Laranjeira. Lara sabe: Lourenço.

 — O teu problema — disse-lhe Lara uma vez — é que te transformaste inteiramente no comissário Laranjeira. Devias tentar ser Lourenço mais vezes.

 Naquela época, o comissário Laranjeira ainda conseguia ser Lourenço algumas vezes – pelo menos com ela. Depois perdeu a prática. Tinha cinquenta anos e uma barba de três dias, muito branca, que contrastava com o cabelo inteiramente negro. Os inimigos (que eram muitos) insinuavam que ele pintava o cabelo. O comissário remexeu os papéis na escrivaninha. Estava um caos. A sua vida estava um caos. Lara, em pé, não escondia a impaciência.

 — Despacha-te. Esperam-me no serviço. Se fico muito tempo, vão pensar que me sequestraste…

 — Não me importaria…

 Uma velha televisão, presa à parede, um pouco acima deles, transmitia as notícias. Uma locutora muito loira, muito pálida, comentava o rescaldo de uma onda de seis atentados simultâneos, em Londres, Paris, Amsterdã, Bruxelas, Roma e Madri, contra embaixadas e consulados dos Estados Unidos e empresas ligadas ao país, confirmando a morte de sessenta pessoas, a maioria das quais diplomatas norte-americanos. As forças de segurança nacionais e internacionais encontravam-se em estado de alerta máximo. Nesse momento, apareceu a imagem do comissário Laranjeira sentado, muito direito, diante da locutora loira.

 — Ao lado dessa mulher, és quase preto — diz Lara. — Quase preto e quase bonito, tenho de confessar.

 — E quase inteligente… — acrescenta o comissário.

 — Temos conosco o comissário Laranjeira, da polícia judiciária — apresenta a jornalista. — Sabemos que, à mesma hora em que ocorriam os atentados na Europa, foi preso um homem, na placa do aeroporto de Lisboa, quando se dirigia para um avião da United Airlines, a segunda mais importante companhia aérea norte-americana. Confirma essa prisão?

 — Confirmo. Foi preso um terrorista de origem angolana que combateu na Síria ao lado do Estado Islâmico. Estamos em vias de desmantelar toda a rede à qual o indivíduo estava ligado. A situação encontra-se sob controle, e rapidamente anunciaremos os resultados desta investigação.

 — Que grande mentiroso — troça Lara, na delegacia. — Nunca aprenderei a mentir como vocês.

 — Pode confirmar a informação de que agentes norte-americanos se encontram em Lisboa colaborando com a Polícia Judiciária e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras? — continua a jornalista.

 — Estamos a colaborar com as autoridades de vários países — responde o comissário. — Mas é importante dizer que Portugal dispõe de um dos melhores serviços de investigação do mundo. Os portugueses podem ficar sossegados.

— Claro, claro, estamos todos muito sossegados…

 — Porra, Lara! Podes calar-te um instante?

 — Confirma que a CIA manifestou interesse em extraditar o prisioneiro para os Estados Unidos?

 — Não confirmo e não há motivos para que isso se verifique.

 O comissário levanta-se e desliga a televisão. Lara aplaude:

 — Não estiveste nada mal, não, senhor. Há pessoas que ficam melhor na televisão do que na vida real.

 — Devia ter levado uma outra gravata…

 — Para a próxima vez, aconselha-te com o nosso prisioneiro. Ele entende de gravatas.

 Um telefone toca. O comissário o procura no meio dos papéis. Finalmente encontra o aparelho.

 — É a americana. A gaja da CIA.

 — Atende…

 — Atendo? Odeio americanos. Acham que são donos do mundo. Pelo menos esta fala português. O prisioneiro é nosso! Nosso, ouviste! Não vamos entregá-lo.

 — Não ficaste de apanhá-la no aeroporto?

 — Caralho! Tens razão. Esqueci…

 O comissário atende ao telefone:

 — Sim, Maggie, peço mil desculpas… Ah, já está no hotel?! Vou buscá-la daqui a pouco…

 Desliga o telefone, guarda-o no bolso das calças e volta-se para Lara, preocupado:

 — Viste a foto dela?

 — Não. Por quê?

 — Lara, a gaja é preta. Preta! Como o nosso terrorista.

 Lara olha-o com irritação:

 — É afro-americana?! E daí?

 — Vai ficar do lado dele. Os escarumbas apoiam-se uns aos outros. Como é possível mandarem-nos uma gaja preta? Já não há brancos nos Estados Unidos?

 — Não suporto esse teu discurso racista. Fico com o estômago a arder só de te ouvir. Dá-me os papéis e vou-me embora.

 — Não os encontro, a sério.

 Volta a procurar no meio dos documentos. Alguns caem ao chão. Finalmente tira de um envelope um cartão de visita e entrega-o a Lara.

 — Não encontro os teus papéis. Mas olha para isto, chegaste a ver isto? Estava na mochila do maldito grunho…

 Lara estuda o cartão, interessada:

 — É um cartão de visita. Que maravilha! — Lê alto: — “Charles Poitier Bentinho, poeta romântico e mestre em espíritos”.

 — Maravilha?! O gajo sabe é muito. Mestre em espíritos? Mestre em disfarces, isso sim…

 — O que queres dizer? É só um cartão de visita. Adoro a moldura de flores…

 — A quatro cores! Já pensaste no dinheiro que isso custou? E a maneira como o sacana se veste. Só roupa de marca.

 — Ele é muito elegante…

— Eu quero é saber onde o malandro arranja dinheiro para se vestir tão bem.

 *** 

 Charles Poitier Bentinho está sozinho na sua cela. Sentado no chão, olha para o desenho de um pássaro numa das paredes. Passa o dedo pelo contorno do desenho, com cuidado, com carinho, como se alisasse as penas de uma ave viva.

 — Há quanto tempo estás aqui, amigo? Eu cheguei agora. Apanharam-me quando estava pronto, prontinho para voar. Afinal, o que fiz eu? Só segui as vossas instruções. É o que venho fazendo. Saí de Luanda seguindo as vossas instruções. Fui para Paris seguindo as vossas instruções. Fui para a Síria seguindo as vossas instruções. — Cala-se. Olha com atenção para a parede. — Sim, concordo, na Síria fiz merda. — Volta a ficar calado um longo momento.

 — Aquela mulher polícia que me veio ver, gosto dela. Boas pernas, uma bunda de rainha. E acho que ela gosta de mim.

 *** 

 Os dedos do comissário passeiam pelos papéis que atulham a sua escrivaninha. Pega um documento e logo o abandona. Pega outro, fingindo interesse. Bentinho sorri diante dele. Está instalado na cadeira como num trono. A camisa de seda negra, salpicada de estrelas, brilha, como uma noite legítima. Na gravata estreita, azul-escura, voam pequenos aviões prateados. Sobre a camisa usa um blazer leve, preto como a camisa. Traz na cabeça um chapéu-coco, que nele, em vez de ridículo, parece inevitável. Maggie está sentada a outra escrivaninha, enquanto Lara permanece de pé, atrás do prisioneiro.

 — Começo eu? — pergunta Maggie.

 O comissário apruma-se. Solta os papéis.

 — Não, minha senhora. Começo eu.

 Bentinho sorri largamente. No seu peito, a noite parece sorrir também.

 — Se quiserem, começamos nós.

 — Você se acha engraçado? — grita Maggie. — Diga-me lá o seu verdadeiro nome!

 — Charles Poitier Bentinho, cara senhora. Todos os nossos nomes são muito verdadeiros.

 O comissário Laranjeira debruça-se sobre a mesa. As grandes mãos dele avançam por entre os papéis.

 — Olha lá, ó, turra, eu conheço-vos a todos. Estive na tua terra.

 — Em Angola?! — A voz de Bentinho é quente e plácida. — Chefe Laranjeira, o senhor pode me servir um cafezinho?

 — Não queres mais nada, não? Sim, eu conheço-vos bem, os pretos de Luanda, com a mania de que são superiores a toda a gente. Mesmo no tempo colonial achavam-se melhores do que os brancos. Eu conheci Angola quando aquilo ainda estava em condições.

 Lara levanta-se.

— Nada, colega, esqueça. Não disse nada.

 — Vamos com calma. — Lara coloca-se entre os dois policiais. Depois volta-se para o prisioneiro. Sorri para ele. — Explica-te melhor. Tens de compreender uma coisa. A acusação que pesa sobre ti é muito, muito grave. És suspeito de ligações a uma organização terrorista. Entendes?

 Maggie agita um passaporte preto.

 — Temos aqui o seu passaporte, senhor Bentinho. Está tudo aqui. Esteve na Síria durante dois meses. O que foi fazer na Síria?

 Bentinho baixa os olhos.

 — Recebemos instruções.

 — Ah, agora, sim — exulta o comissário. — Agora começamos a nos entender. E recebeste instruções de quem?

 Bentinho aponta para uma janela.

 — Deles!

 Maggie retira uma fotografia de um dossiê. Mostra-a ao prisioneiro.

 — Estás a falar desta mulher?

 — Conheces esta mulher?! — grita o comissário.

 *** 

 Na sua cela, Bentinho encosta o ouvido à parede, junto ao desenho do pássaro.

 — Não ouço. Não ouço nada.

 Silêncio.

 — Aquela mulher?! Se eu conheço aquela mulher? Alguém pode dizer que conhece uma mulher? Eu a vi pela primeira vez em Paris, estava saindo da loja Yves Saint Laurent, onde comprei esta minha bela camisa, e dei com aqueles olhos. Aqueles olhos me enlouqueceram. Todo o corpo dela estava nos olhos. Até esse dia, eu olhava para uma mulher e só lhe via a bunda, só lhe via as pernas, só lhe via as mamas. Com a Faíza foi diferente. Eu só lhe vi os olhos, na verdade, porque não conseguia ver mais nada. Eram os olhos e a burca. A burca e os olhos.

 Novo silêncio.

 — Ela também olhou para mim. Mas não demorou o olhar, como é costume suceder. As mulheres gostam de mim. Tenho suégue, Deus sabe como tenho suégue! Tenho bué de banga. Sou angolano! Não preciso dos remédios que vendo aos meus clientes. Tem esse de muito efeito… o migosta. A gente também lhe chama perfume da domação. Nunca usei, não preciso. Agora, com aquela dama aburquesada… Aiuê, fiquei meio abuamado, sabes como é? Quanto mais ela me ignorava, mais eu me animava. Ela foi subindo a avenida, e eu atrás. Até que chegou à mesquita. Entrou. Eu nunca tinha visto uma mesquita. Fui embora. Na manhã seguinte, voltei. Vi que as pessoas se descalçavam para entrar. Hesitei. Então eu ia deixar os meus estilosos sapatos Louis Vuitton na má companhia daqueles outros calçados vagabundos?! Quando voltasse, quem sabe já não estavam lá. Nem o Louis nem o Vuitton. Fui embora. Um dia mais tarde, estava com uns cambas a comemorar o Dia de África, era noite, e vi uma mulher sentada a uma mesa próxima. Vi uma mulher! Quero dizer, vi uns olhos. E eram aqueles olhos. Era ela! Antes que eu tivesse tempo de pensar, ela levantou-se e dirigiu-se a mim. E aí começamos uma conversa sobre Deus e ela me perguntou se eu era crente. E eu respondi: “Moça, sou um crente irregular”. Faíza ficou desiludida. E eu percebi: para conquistar aquela dama, eu precisava me converter ao Islã. E me converti.

 *** 

 — Responde! — grita Maggie. — Conheces esta mulher?!

 Bentinho hesita:

 — É a Faíza.

 — Faíza al Garbh!

 — Exatamente.

 — Faíza al Garbh, irmã do Abdelrahman al Garbh, dirigente do Estado Islâmico.

 — Exatamente.

 — Que tipo de relação tinhas tu com ela? — pergunta o comissário.

 Bentinho volta-se para o agente, chocado:

 — Relação, chefe Laranjeira?! De vários tipos, mas sempre com proteção.

 — Proteção? Que tipo de proteção?

 — Camisinha, sempre com camisinha. Sou um homem sério.

 Maggie desaba, vencida, numa das cadeiras.

 — De que é que ele está a falar?

 Lara esconde o riso com as mãos. Parece muito jovem quando ri e sabe disso. Anos antes, Lourenço advertira-a: “Perdes toda a autoridade quando ris. Uma agente da autoridade não pode rir”. O riso, porém, é como a água: se tapamos a boca, ele sai pelos olhos. O riso de Lara fica a flutuar na sala, como uma luz subversiva. A jovem agente olha para o rosto fechado do comissário Laranjeira e faz um esforço para recuperar a compostura.

 — Acho que sei do que ele está a falar — diz. — Não sei é do que nós estamos a falar.

 — Camisinha! — insiste o prisioneiro, fazendo o gesto de colocar uma camisinha num pênis imaginário, um pau enorme. — Não é o que dizem as campanhas?

 O comissário grita:

 — Ah! Meu cabrão, preto filho da puta!

 Maggie grita em cima do grito do comissário:

 — Racismo, não! Eu apresento queixa contra o senhor…

 — Queixa?! Queixa a quem?! Estamos em Portugal. Eu não trabalho para a senhora.

 Bentinho ergue as mãos, sereno e elegante. É um príncipe, é o próprio papa.

 — Por favor, meus senhores, queridos amigos, vamos ter calma! Estamos a conversar. Somos todos pessoas urbanas e civilizadas.

 — Estão a ver isto?! — O comissário aponta para Bentinho. — Eu é que conheço estes cabrões, acham que são reis. Deixem-me lá conduzir isto.

 — Exatamente! — concorda o prisioneiro.

 — Exatamente! Exatamente! Estou farto dos teus “exatamentes”! Se dizes mais um “exatamente”, palavra de honra que te mato! — O comissário levanta-se e chuta a cadeira, que cai com estrondo. Volta a erguê-la. Respira com dificuldade. — Tu só falas quando eu te perguntar alguma coisa! Entendeste? Parece que estás numa passarela. Afinal, quantas gravatas tens?

 — Trinta e uma, chefe Laranjeira! Uma para cada dia do mês. Nunca repito. A maioria comprada em Paris. O meu pai, Ngola Ndongo, sempre me dizia: “Filho, o respeito começa na gravata”. O senhor comissário, por exemplo, sem ofensa, é um homem bonito, bem-apessoado, ficaria muito bem com este meu terno. Se quiser, apresento-o ao meu alfaite, o senhor Almeida, o melhor alfaiate de Lisboa. Em Paris compro os meus trajes nas marcas mais conceituadas. Em Lisboa, mando o Almeida fazer.

 — Não me dês conversa. O que eu quero saber é onde é que tu arranjas dinheiro para te vestires dessa forma.

 — O negócio dos milagres corre bem. Quanto mais crise, mais demônios. Por exemplo, aqui em Lisboa, você pega o Correio da Manhã. Cada vez tem mais anúncios de quimbandeiros. Já há mais quimbandeiros do que meretrizes.

 Maggie interrompe, agressiva, mostrando uma fotografia:

 — Voltemos à Faíza. E com este, o irmão dela, o Abdelrahman, chegaste a ter alguma relação?

 — Desculpe, colega, mas esta é a minha casa. Sou eu quem faz as perguntas — interrompe o comissário. 

 — E com este, o Abdelrahman, chegaste a ter alguma relação?

 Bentinho olha para os três, desconcertado. Cobre o rosto com as mãos.

 — Como descobriram? Eh pá, as pessoas falam bué, falam demais, falam à toa. Aquilo foi um terrível equívoco…

 — Um equívoco?! — diz Lara.

 — É que lá tem aquela moda estúpida, homens e mulheres andam todos de vestidos compridos. Um gajo fica confuso, fica ansioso, e um dia dei por mim a olhar com interesse para a bunda do meu cunhado. O que querem? Um homem não é de ferro. Aconteceu.

 *** 

 Na sua cela, voltado para a parede, de pé, Bentinho fala com o pássaro.

 — Fazem-me falta um caderno e uma caneta para escrever aqueles meus versos. Os poemas são os meus remédios. Até me dava jeito agora, com aquelas duas policiais, fazer deslizar um charme. A portuga gosta de mim, já vi. A outra, a mulata, vai gostar. Vai ficar minha refém.

 Silêncio. Bentinho aproxima-se do pássaro. Baixa a voz:

 — Esse comissário Laranjeira, ele me lembra um dos meus pacientes. Um atormentado. Um antigo combatente. Um homem muitíssimo raivoso. Veio-nos consultar, Charles Poitier Bentinho, filho do grande quimbanda Ngola Ndongo, neto do príncipe do Congo, Nicolau Ndongo. Esse homem, o antigo combatente, estava com problemas no emprego. Até certo dia, todos lhe obedeciam. Ele nem precisava dizer uma palavra. Comandava o departamento só com a autoridade do olhar, tipo mocho. Então, de um dia para o outro, isso acabou: por mais que ele gritasse, ninguém lhe obedecia. Nem o espelho lhe obedecia. Era uma sombra. Deu-me muito trabalho trancar todos os demônios, uma legião deles. Esse comissário Laranjeira tem demônios muito, muito antigos, mas os meus poderes são ainda mais antigos. Descobri esses poderes quando tinha doze anos. Uma noite, recebi um sonho. Um pássaro me disse: “Nós, os pássaros, seremos a voz que te conduzirá. Voarás conosco, mas terás de aprender a escutar. O próximo mês dormirás nos cemitérios. No mês seguinte, dormirás nos sonhos de mulheres virgens. Farás assim até que elas despertem nos teus braços. Ensinar-te-emos a trancar demônios. Os pequenos demônios da inveja. Os demônios cintilantes da ambição. Os demônios frios da impotência. Os demônios úmidos da luxúria. Os tristes demônios de asas quebradas que nos falam como se fossem anjos”.

 Bentinho cala-se um momento. Acaricia o pássaro.

 — E assim me tornei mestre em espíritos, domador de demônios e dragões. Abri um consultório, com anúncio no Jornal de Angola. Tornei-me um missionário de sucesso. Os pacientes se multiplicaram como estrelas num céu sem nuvens: ministros, generais, futebolistas, cantores de muita fama. Um dia, estando doente em casa, mandei pedir uma pizza. Quando a pizza chegou, tive uma iluminação: por que não vender milagres a domicílio? Foi o que fiz e fiz muito bem.

 Nova pausa. Bentinho parece escutar algo, encosta o ouvido à parede. Permanece imóvel, sacudindo a cabeça.

 — Entendi. É essa a minha missão? Cada um desses policiais tem os seus demônios, todos estão possuídos, todos andam no meio de pedras afogueadas. Sim, meus pássaros, vou trancar esses demônios.

 *** 

 Lara entra no escritório da Polícia Judiciária. Está vazio. A jovem agente dirige-se para a escrivaninha do comissário Laranjeira e vai remexendo em papéis e objetos.

 — Olhe para isto, tudo desarrumado. Esse homem não mudou…

 Alguma coisa lhe chama atenção. É uma fotografia.

 — Ele ainda tem esta foto? Meu Deus! Eu era tão menina e tão ingênua. Como pude acreditar que daria certo?

 O comissário Laranjeira entra neste momento, segurando uma xícara de café. Detém-se, surpreso. Sorri:

 — A mexer nas coisas dos outros?

 Lara pousa a fotografia na mesa. Olha-o com ternura.

 — E não é isso que fazemos, comissário?

 — Há coisas nas quais é melhor não mexer.

 — A sério?

 — É melhor não acordar o passado.

 Lara senta-se. Entristeceu.

 — O passado é o meu presente. Já te disse que todas as noites sonho com aquilo?

 — Lara, Lara, foi um acidente…

 Lourenço Laranjeira ajoelha-se diante dela, vai para abraçá-la, mas a mulher recua o tronco, as mãos espalmadas. Maggie entra.

 — Interrompo?

 — Não, não! — diz Lara. — Não interrompe nada. Vamos trabalhar. Há um homem preso, talvez injustamente.

 — Alguma culpa ele tem. Este homem não é inocente. Era amante e amigo de terroristas. Esteve na Síria. Saltou a vedação para a placa do aeroporto com uma bomba num saco…

 — Uma bomba, Maggie?! — Lara olha irritada para a americana. — Eram garrafas de vinagre.

 — Sabes o que se pode fazer com vinagre?

 — Salada?

 — Maggie tem razão — diz o comissário. — Tu faltaste às aulas de química.

 — Cala-te! Vai buscar o Bentinho!

 O comissário Laranjeira sai contrariado. Maggie estuda Lara com curiosidade.

 — Passa-se alguma coisa entre vocês?

 — Não.

 — Há quanto tempo se conhecem?

 — Há demasiado tempo. Sabe, gostaria de ser como esse Bentinho, um mentiroso compulsivo, um inventor de histórias. Quem sabe eu inventasse um outro passado para mim.

 — Bentinho mente tão bem que todos acreditam nele. Recebi nesta manhã, da minha agência, os resultados de uma investigação com pessoas que o consultaram, em Angola. Não vai acreditar. São só elogios. Sujeitos que encontraram cura para os problemas mais diversos.

 — As pessoas querem ser enganadas.

 — Tem razão, as pessoas pagam para ser enganadas. Mas, diga-me, do que não gosta no seu passado?

 — Este caso lembra-me um outro. Prefiro não falar sobre isso.

 — Para mim é como um regresso à África. O meu pai era pastor protestante. Quando eu tinha quatro anos, fomos para Moçambique. Vivemos lá até os meus quinze anos. Depois fomos para o Sudão, e aí aconteceu uma coisa terrível. Homens armados assaltaram a missão e mataram o meu pai à catanada. Escondida num armário, não vi nada, mas ouvi tudo. Naquele quarto, a uns metros de mim, a minha mãe foi violada. As milícias saíram e eu continuei ali, fechada, até a minha mãe me ir buscar. Nunca mais a consegui olhar nos olhos…

 — Nem sei o que dizer…

 — Agora veja a ironia: um homem que sempre se preocupou com as suas origens, que sempre sonhou em visitar a África para encontrar os seus antepassados e levar-lhes a palavra de Deus, acaba assassinado de forma tão cruel.

 — É uma história terrível. E a sua mãe?

 — Voltou à África. Não compreendo.

 — Eu posso entender. Por vezes precisamos revisitar o lugar onde nos feriram. Além disso, pelo que me conta, os seus pais tinham essa ligação profunda com a África. Você não tem?

 — Não me interessa. Sou americana, nunca senti esse drama da identidade. Sinto uma outra carência. O meu pai no princípio visitava-me em sonhos. Agora já nem isso. Não imagina como me dói, a pessoa mais importante na minha vida desapareceu duas vezes.

 — Você quer lembrar, eu só quero esquecer.

 — E o que tanto quer esquecer, Lara?

 — Quero esquecer certas pessoas!

 — O comissário Laranjeira?

 — Trabalhamos juntos. O meu primeiro posto foi na Polícia Judiciária. O Laranjeira era meu chefe. Eu era muito jovem, tinha vinte anos. E o Lourenço… O Laranjeira… era um homem bonito, com muita vida atrás. Apaixonei-me loucamente por ele.

 — Estranho. Vocês parecem tão diferentes.

 — Não imagina o quanto. Mas eu o admirava muito. Já àquela altura o Laranjeira era uma lenda na Polícia Judiciária. Eu não queria ver o que estava à vista de todos. Achava que a amargura dele, o racismo dele, tinham a ver com o trauma da guerra em Angola. Achava que, com a minha ajuda, ele conseguiria superar isso.

 — Ninguém transforma ninguém.

 — Eu achava que sim. Um dia acompanhei-o no interrogatório a um jovem rapper negro, acusado de ligação com uma gangue. Lembro-me muito bem desse jovem, era um miúdo alto, bonito, com aquela arrogância própria da idade. Troçava de nós. O Laranjeira enlouqueceu. Esbofeteou-o. Empurrou-o. O miúdo caiu para trás e bateu com a cabeça numa esquina.

 Neste momento entra o comissário Laranjeira, assobiando. Detém-se, olha para as duas mulheres, percebendo a tensão.

 — O que se passa aqui?

 — Vou fumar. Volto já.

 — Posso saber o que se passa, Lara?

 — Vou fumar também.

 — Mas tu não fumas!

 — Comecei agora.

 *** 

 Sentado à sua escrivaninha, o comissário Laranjeira finge ler um relatório. Guarda os documentos e abre outra pasta. Bentinho, sentado diante dele, sorri com bonomia.

 — Onde estão as nossas damas?

 — Foram fumar.

 — Pensei que a agente Lara não fumasse.

 — Começou agora.

 Lara e Maggie entram juntas.

 — Vamos ao trabalho — ordena Maggie.

 Lara tira um caderno da sua pasta e mostra-o ao prisioneiro:

 — Podes dizer-nos o que é isto?

 — É o meu caderno.

 — “Caderno dos segredos e das revelações”.

 — Exatamente.

 — Algumas passagens deste teu livro deixaram-nos intrigados. Por exemplo, na página trinta e dois, está escrito: “Hoje recebi as instruções do Seven Power”.

 — Sim, agora diga: que organização é essa, Seven Power? —questiona o comissário.

 — Desconheço.

 — Desconheces?! — O comissário levanta-se. — Como podes desconhecer se recebes instruções deles?

 — A Lara iniciou este interrogatório — diz Maggie. — Deixemos que seja ela a continuar.

 — Exatamente. — Bentinho sorri.

 — Já disse que quem manda aqui sou eu. — grita o comissário. — Estamos na PJ!

 Maggie encolhe os ombros:

 — Por favor, Lara, continue.

 — Disseste que desconheces a organização. Como assim? — pergunta Lara.

 — Desconheço mesmo. Eu apenas recebo o produto.

 — Que produto?

 — Esse pó que vem da Nigéria. Aplica-se em lavagens.

 — Que lavagens?

 — Dos atormentados.

 — Atormentados?

 — Atormentados. Pessoas que sofrem de demônios. Faz-se um banho com esse pó, e essas pessoas são lavadas sete vezes e, desse modo, ficam salvas.

 — Estamos a perder tempo. — O comissário suspira. — Assim não vamos a lado nenhum.

 — O que sugeres?

 — Passa-me esse caderno! — exige o comissário. Lara passa-lhe o caderno. — Página dez, página doze, página vinte e quatro… Sempre isto: “Hoje recebi instruções”. Afinal, quem te passa essas instruções? Quem é que te diz para ires para ali ou para acolá?

 Bentinho abre os braços como se fosse voar.

 — Os pássaros!

 — Um bom pássaro me saíste tu! Isto agora é uma conversa de homens.

 — Exatamente!

 — Mas que “exatamente”, porra! Limita-te a responder às minhas perguntas. Responde então a esta: para que era o vinagre? Tinhas cinco litros contigo no aeroporto, e lá na pensão onde estavas alojado, a pensão Andorinha, encontramos mais de cinquenta litros. Para que querias tu tanto vinagre?

 — Como já expliquei, eu executo voos noturnos. Preciso de muito combustível.

 Maggie levanta-se. Esfrega os olhos. Parece exausta.

 — Por favor, preciso ficar um momento a sós com este senhor.

 — A sós com ele?! — O comissário a olha, irritado. — Para quê?

 — Porque eu quero!

 — Por mim acho muito bem — diz Bentinho. — Também preciso ficar a sós com ela.

 — Venha comigo, comissário. — Lara estende a mão ao comissário. — Vamos os dois fumar um cigarro.

 Saem os dois. Maggie senta-se na cadeira do comissário, voltando-se a Bentinho:

 — Vou ser direta, não temos muito tempo. Esse seu discurso ofende-me! Ofende-nos a todos nós, negros! É isto que racistas como este comissário querem ouvir.

 — O senhor comissário não tem culpa. São os demônios que falam pela boca dele.

 — Basta! Basta! Sabe por que não acredito em si? Porque o senhor não parece uma pessoa, é uma caricatura!

 — Já lhe disseram que você fica linda quando se exalta?

 Maggie levanta-se, abanando a cabeça, e sai para chamar os outros dois.

 *** 

 Lara, Maggie e o comissário Laranjeira conversam uns com os outros. A cadeira em que se sentou Bentinho permanece vazia. Contudo, é como se ele ainda estivesse lá.

 — Isto não está a correr bem — fala o comissário, voltado para Maggie. — Houve uma falha na linha de comando, o gajo percebeu e está a gozar conosco.

 — Não é nada disso — contesta Lara. — Precisamos ter a abertura de espírito para aceitar a possibilidade de que o tipo seja inocente. Eu acho que ele é inocente. Parece-me um pobre homem, apanhado por acidente nas malhas de um processo que o ultrapassa.

 — Não sei, não — opõe-se Maggie, mordendo os lábios. — No meio da mentira e do delírio, há ali fragmentos de verdade. Por exemplo, aquilo que ele contou, que teve relações sexuais com o Abdelrahman al Garbh.

 O comissário Laranjeira ri livremente:

 — Por equívoco, diz o gajo. Por equívoco.

 — Por equívoco ou não. A confissão coincide com um relatório que recebi hoje, segundo o qual o Abdelrahman foi executado pelo Isis como sodomita.

 Lara ergue as sobrancelhas:

 — Os sodomitas são executados de forma particular?

 — Sim. Esmagam-nos derrubando um muro sobre eles. Ele foi morto assim. Se isso aconteceu, então talvez seja verdade o que o Bentinho conta, que teve de se esconder e fugir da Síria por estar a ser perseguido pelo Estado Islâmico.

 — E o que aconteceu à mulher? — pergunta Lara.

 — Desconheço. Desapareceu.

 — Vocês duas veem muitos filmes. É isso que ele quer que nós pensemos, que é um pobre louco que estava na hora errada no lugar errado… Desculpem, o meu telefone… Tenho uma chamada… Preciso mesmo atender. É o ministro.

 O comissário atende ao telefone. Levanta-se, faz uma pequena mesura. Afina a voz:

 — Bom dia, senhor ministro, muito bom dia… Sim, sim, vi as notícias, mais um homem-bomba. O mundo enlouqueceu, senhor ministro. Não se fala noutra coisa… Sim, eu sei, eu sei, estamos a apertar com ele… Com certeza, senhor ministro, pode ficar descansado. Eu ligo para o senhor. Muito bom dia.

 Lourenço Laranjeira desliga o telefone e atira-o para cima da escrivaninha. Volta a sentar-se. Encara as duas mulheres com uns olhos assustados:

— Perceberam? Não estamos aqui para discutir a antropologia dos terroristas. Eles querem resultados. Já!

 — Seria melhor se quisessem justiça! — rosna Lara.

 — Todos nós queremos justiça, Lara — diz Maggie. — Também os meus chefes estão inquietos.

 O comissário debruça-se sobre a escrivaninha. É um homem grande e assustado.

 — Estamos em guerra, uma guerra global. Aquela gente quer acabar com a civilização ocidental. Uma pessoa prestes a ser mordida por uma cobra manda vir um biólogo para avaliar se esta é venenosa ou corta-lhe logo a cabeça à catanada?

 Lara abana a cabeça. Também ela está assustada.

 — Então o que pretendes é fabricar um terrorista!

 — Por que é que não foste para freira?

 Lara levanta-se. Grita:

 — Vai-te foder! — Ela sai batendo a porta.

 O comissário ergue-se, faz menção de segui-la, mas volta atrás:

 — Ouça, Maggie. Peço-lhe desculpa. No outro dia, não queria magoá-la. Eu não sou racista. Em Angola era o único branco no meu batalhão. Fiz amigos. Chamavam-me Papá Alauka, que no dialecto dos gajos significa “homem verdadeiro”. Amigos morreram-me nos braços. Até hoje recebo cartas de antigos companheiros…

 Maggie interrompe-o:

 — Não quero ouvir as suas explicações. Não gosto do senhor. Não vou gostar nunca. Mas não é isso que está em discussão. Temos uma missão a cumprir.

 — Tens razão. Deixe-me só concluir. O que se passa é que este Bentinho lembra-me os outros turras, aqueles que mataram os meus companheiros.

 — Você acaba de receber uma chamada do seu ministro. Eu tenho o meu chefe à perna todos os dias. Temos de acabar depressa com isso. Deixem-me levar o homem. Você sabe que foi para isso que eu vim.

 — Isso não pode ser. O que temos não chega. Arranje algo que convença a Lara.

 *** 

 Anoitece. Na sua cela, enquanto as sombras avançam, Charles Poitier Bentinho conversa com o pássaro.

 — Tenho andado a observar-te, meu pássaro. É verdade que estás muito prisioneiro. Mas antes preso a um muro do que morto debaixo dele. Eu escapei desse destino. Foram dias de muito medo, cercado de demônios. Sou mestre em espíritos, domador de dragões, isso veio-me a ser útil lá na Síria. Um dos comandantes me chamou um dia, muito secretamente, porque sofria de um mau desempenho, o armamento dele não funcionava, e ouvira falar dos meus talentos. Implorou-me ajuda. Resolvi o problema. Quando começaram a me perseguir, me lembrei dele. Não regateou. Me ajudou a sair do país, direto para a França, com risco da própria vida.

*** 

 Num dos escritórios da Polícia Judiciária, o comissário Laranjeira, Lara e Maggie estão de novo juntos. O comissário cortou o cabelo. Parece mais novo. Parece ainda mais novo quando fala:

 — Tenho uma boa notícia e uma má notícia. A boa notícia é que recebemos ontem uma denúncia anônima indicando que a Faíza al Garbh estaria alojada numa pensão no bairro dos Prazeres, chamada A Flor dos Prazeres.

 — Faz sentido — diz Maggie. — Temos informações de que ela teria saído da Síria com o Bentinho.

 — Apanharam-na? — pergunta Lara.

 — Não — diz o comissário. — Essa é a má notícia. Quando chegamos à pensão, ela já se tinha evaporado. Nem sinais. Mas a proprietária da pensão reconheceu a fotografia.

 — Para compensar, eu tenho uma boa notícia — interrompe Maggie. — Mais uma prova de que estamos diante de um terrorista. Eis aqui a transcrição de uma conversa telefônica entre o prisioneiro e a Faíza, pouco depois de eles terem se conhecido.

 Maggie exibe um papel que entrega ao comissário.

 O comissário lê em voz alta:

 Bentinho: Bom dia, minha pérola do Oriente.

 Faíza: Salaam Aleikum, meu amigo.

 Bentinho: Quero oferecer-te o meu livro, Minas

 & armadilhas. Interessa-te?

 Faíza: Interessa muito, mas esta não é uma

 conversa que se possa ter ao telefone. Vem a

 minha casa esta noite.

 Bentinho: Lá estarei.

 Lara estende a mão:

 — Posso ver isso? — Lê em silêncio. — Onde está o livro?

 — Ainda não o conseguimos encontrar — diz Maggie.

 — Para que queres o livro? — pergunta o comissário. — Não te basta esta transcrição? O homem combateu durante cinco anos no Exército angolano. É perito em explosivos. Escreve um livro chamado Minas & armadilhas. Achas que o livro trata de quê? Poesia?

 — Vamos interrogá-lo sobre isso.

 — Por amor de Deus, Lara, não sejas teimosa. Estamos a perder tempo. Está aqui o formulário para a transferência do prisioneiro. Eu já assinei. Assina tu.

 — Quero falar com o preso.

 *** 

 Charles Pontier Bentinho está deitado no chão da sua cela. Um fio de luz cai do alto, iluminando-lhe os olhos.

 — Sabes o que é o amor, meu pássaro? Muitos julgam que sabem, mas nem o perfume lhe distinguem. Eu mesmo, que conheci mais de mil mulheres, quantas amei na verdade? Eu, mestre de espíritos, domador de dragões, tratei um sem-fim de gente. As pessoas se queixavam de dores diversas, incompetências sexuais, agonias e desesperos, rugas e verrugas, invejas, rancores e maus odores, mas, vendo bem, quase todas sofriam era de falta de amor. E, de tanto tratar os outros, não me dei conta de que também eu vinha sofrendo do mesmo mal. Percebi isso no instante em que, lá em Paris, tropecei nos grandes olhos de Faíza. Ah, meu amigo, olhos como oceanos. Como se toda a luz do mundo nascesse daqueles olhos. Não me converti ao Islã, não! Me converti a ela.

 *** 

 Bentinho está sentado diante da escrivaninha do comissário, na presença deste, de Maggie e de Lara. O comissário encara-o triunfante:

 — Com que então escreveste um livro, Minas & armadilhas?

 — Exatamente, chefe Laranjeira.

 — E o que nos podes dizer sobre essas minas? Ao longo da tua vida, quantas minas montaste?

 — Chê, mais-velho, difícil dizer ao certo. Montei bué: muitas, muitas, muitas. Mais de mil.

 — Mais de mil?!

 — Palavra da minha honra! Mais de mil. Só na época em que fui taxista, porque eu fui taxista, naquela época eu tinha uma mina em cada bairro. Até mais do que uma. No Sambila, umas cinco, nacionais. No Rangel, uma soviética.

 — Soviética?

 — Ucraniana, melhor dizendo. Grandes pernas.

 — “Pernas”?! — espanta-se Maggie.

 — Não é para me gabar. Nessa época fiz muita mulher feliz!

 Lara não se consegue conter e irrompe em gargalhadas. O comissário imita-a.

 — Este gajo é uma comédia!

 Maggie olha para todos, desorientada:

 — Desculpem, para ver se eu entendo: de que trata esse livro?

 — É um livro de poemas, agente Maggie. Eu sou um poeta romântico de muito sucesso. O meu livro está em grandes bibliotecas internacionais. Obama tem o meu livro. Sei que gostou muito. O Papa Francisco tem o meu livro. Adorou. Mia Couto me escreveu pedindo a honra de um prefácio.

 — E as “minas”? As “armadilhas”? — pergunta Maggie.

 — Todas as minas são armadilhas. Nem há melhor armadilha que o jardim secreto de uma mulher.

 Lara, chorando de rir:

 — Jardim secreto?!

 — Taça perfumada, o repouso do varão, as portas do céu…

 O comissário interrompe-o:

 — Ok. Ok. Já entendemos. Vou levar-te de volta à cela.

 O comissário Laranjeira sai com o preso.

 Lara fala a Maggie:

 — Depois disto, ainda acha que temos um caso? O homem é completamente tonto.

 — Ou faz-se de tonto — diz Maggie. — É um bom ator.

 — Não cheguei a contar-lhe como terminou o episódio com o rapper. O que se está a passar lembra-me muito isso.

— O que aconteceu?

 — O jovem morreu. O Laranjeira alegou legítima defesa e pediu-me que confirmasse a versão dele.

 — E, claro, você confirmou.

 Lara, agora em lágrimas, não responde.

 O comissário Laranjeira reentra no escritório.

 — O que se passa aqui?

 Lara diz, tentando secar as lágrimas com as mãos:

 — Sabes muito bem o que se passa.

 — O que quer que seja — diz Maggie —, não é para aqui chamado. Somos policiais. Temos um caso em mãos. Vamos tratar deste caso.

 — Exatamente! — concorda o comissário.

 — Este caso tem a ver com o outro — diz Lara. — Vocês querem colocar-me na mesma situação.

 — “Vocês”?! — pergunta Maggie.

 — Não sei do que estás a falar — acrescenta o comissário Laranjeira.

 — Então eu explico-te.

 — Tratem dos vossos assuntos fora daqui. São assuntos pessoais.

 Lara exalta-se. Grita:

 — Não são assuntos pessoais!

 — Acalma-te, porra. — O comissário dá um soco na mesa. — Estás naquela altura do mês?

 — Comissário, pelo amor de Deus! — diz Maggie.

 Lara chora, em desespero:

 — Odeio-te! Odeio-te! Odeio-me por aquilo que me obrigaste a fazer.

 — Obriguei?! O que foi que te obriguei a fazer?

 — Eu sei o que foi. Aqui, todos sabemos.

 — Não sei lidar com mulheres histéricas!

 — Mulheres histéricas?! — pergunta Maggie.

 — Sim, histéricas. Nunca deviam ter deixado as mulheres entrarem sem para a polícia. Vocês não sabem lidar com situações de tensão. Choram por qualquer coisa.

 — Eu não estou a chorar.

 — Pois espera que já choras, sua afro-americana de merda!

 — Do que foi que me chamou?

 — Afro-americana. Ou prefere que lhe chame preta?

 Maggie levanta-se. Endireita a saia.

 — Acabou-se. Vou apresentar queixa contra o senhor.

 — Apresente. Quero lá saber.

 Maggie sai. Lara e o comissário trocam um olhar pesado. Lara baixa os olhos. O comissário sorri tristemente.

 — Não sei que história lhe contaste, Lara. Eu vou ter de contar a verdade a ela.

 *** 

 O comissário visita Bentinho na sua cela. O angolano, sentado na cama, mostra-lhe o lugar vazio ao seu lado.

 — Vai ficar em pé, mais-velho? Sente-se aqui.

 — Prefiro ficar de pé.

— Parece preocupado. O que se passa?

 — Por que é que vocês, pretos, têm problemas quando vos chamam pretos? A mim, podem chamar-me branco que eu não me ofendo.

 — Conte-me lá o que se passa. Problemas?

 — Aquela cabra, a americana, fez queixa de mim.

 — Tente entender, mais-velho. A dona Maggie está atormentada por fortes demônios.

 O comissário senta-se na cama, ao lado de Bentinho.

 — O meu chefe chamou-me. Não só querem retirar-me deste caso, como ameaçam mover-me um processo e expulsar-me da polícia.

 — Não tenha receio de se abrir comigo. Estou aqui para ajudar.

 — Sempre fui polícia. Não sei ser outra coisa. O meu pai tinha uma pequena mercearia, ali no Alto da Cova da Moura. Um dia um preto – sem ofensa! – assaltou a loja e deu-lhe uma navalhada. O meu pai não morreu, mas perdeu a vontade de viver. Eu era muito miúdo. Aquilo marcou-me. Decidi entrar para a polícia para ajudar as pessoas.

 — Para o seu caso, sugiro uma lavagem com o Seven Power. Você tem o produto consigo. Toma o primeiro banho às seis da manhã, em jejum. O segundo uma hora depois, e assim sucessivamente. Durante esse tempo, você não pode comer nem ter relações sexuais. Entendeu?

 — Foram o quê, quarenta anos de carreira? Uma vida. Uma vida inteira. Olha, ó rapaz, não tens aí o número desse teu alfaiate?

 — O senhor Almeida? Vocês tiraram-me o meu telemóvel.

 O comissário entrega-lhe o telefone.

 — Aqui tens.

 — É melhor ligar para ele. Não recebe toda a gente. Um momento… Alô, senhor Almeida? Ah, você reconheceu-me, o prazer é meu… Onde estou? Estou num salão de repouso, aqui mesmo, em Lisboa. Estou com um amigo, um irmão mais-velho, que está muitíssimo necessitado dos serviços de um bom alfaiate. Eu disse-lhe que você é o melhor alfaiate de Lisboa. O meu amigo é da Polícia Judiciária, comissário Laranjeira… Um momento… Em que dia lhe dá jeito, mais-velho?

 — …Sexta-feira?

 — Sexta-feira… Trate-o bem. Vai da minha parte. Abraço, energia positiva.

 O comissário arranca-lhe o telefone das mãos e levanta-se.

 — Dá-me lá essa merda. Não penses que te safas. Vamos mandar-te para Guantánamo.

 *** 

 O comissário Laranjeira anda de um lado para o outro, no seu escritório, em largas passadas nervosas. Está muito elegante, num terno escuro, camisa de seda azul, fina gravata às riscas. Fala alto enquanto caminha:

 — Preciso dar a volta a isto, nem que tenha de lixar o preto. Seja como for, o gajo já está lixado. Até me dá pena, nem me parece mau tipo, mas agora é ele ou eu.

 Maggie espreita na porta. Tosse para chamar a atenção do outro.

 — Espero que tenha alguma coisa realmente importante para me dizer.

 — Muito mais do que podes imaginar. Tenho algo que resolve este caso.

 — Muito bem. Mostre-me.

 — Você retira a queixa, deixa-me trabalhar e daqui a dois dias eu entrego-lhe uma confissão. Você leva o homem e nunca mais nos vemos.

 — Confissão? Ambos sabemos que o pobre diabo é inocente.

 — Ninguém é tão inocente que não possa parecer culpado. O Bentinho vai confessar.

 — E onde fica a verdade?

 — Verdade?! Não nos pagam para encontrar a verdade. Temos um crime, precisamos de culpados. E assim tranquilizamos as multidões. Não é isso que querem os seus chefes?

 — Certo. Dois dias. Dou-lhe dois dias.

 — E quanto à queixa?

 — Foi um equívoco, o meu conhecimento da língua portuguesa é um pouco elementar.

 — Exatamente! Exatamente! Então estamos conversados. Não diga nada à Lara.

 *** 

 Bentinho recebe nova visita do comissário Laranjeira. Está sentado num pequeno banco, sob o desenho do pássaro. O comissário permanece de pé, junto à porta.

 — Conheces a pensão A Flor dos Prazeres, no Bairro dos Prazeres? — pergunta o comissário Laranjeira.

 — Não me faça isso, comissário, somos amigos.

 — Não somos amigos. Noutra vida poderíamos ter sido amigos.

 — Não, isso não, comissário. A Faíza, não!

 — Estás apaixonado, não é? As mulheres é que nos destroem.

 — O que fizeram com ela?

 — Para já, nada. Por enquanto só eu sei onde a tua amada se esconde. Agora depende de ti.

 — O que você quer?

 — Quero uma confissão tua.

 — E o que devo confessar?

 — Que recebeste treinamento do Estado Islâmico na Síria e que foste enviado a Lisboa para explodir um avião americano.

 — Como é que eu sei que depois a deixam em paz?

 — Não sabes. Terás de confiar em mim. Dou-te a minha palavra que não a prendemos, não a prenderemos.

 — Acredito no senhor. E a mim? O que me irá acontecer?

 — Vais para a América. Não é assim tão mau.

 — Sabendo que Faíza é livre, não estarei preso. Não tenho medo de prisões.

 — Começo a acreditar nisso. Neste momento sou eu mais prisioneiro do que tu.

— Exatamente. Eu assino.

 — Compreendes que, para garantir a segurança da Faíza, esta conversa nunca poderá sair daqui? Nunca aconteceu.

 — Exatamente.

 O comissário estende-lhe a mão:

 — Exatamente!

 *** 

 O comissário está à sua escrivaninha, tomando notas num laptop, quando Lara entra. A mulher detém-se. Sorri, espantada:

 — Estás muito bem-vestido. Bela gravata.

 O comissário levanta-se e abraça-a.

 — O respeito começa na gravata.

 Lara se solta.

 — Mas não estamos aqui para falar na tua nova roupa, não é assim?

 — É verdade. Este caso do Bentinho chegou ao fim. Ele confessou. Aqui tens a confissão, assinada por ele.

 — Não acredito. — Lê. Perde o sorriso. Encara o comissário com raiva. — Não acredito! Não pode ser! Não acredito nisto!

 — Não acreditas em quê?

 — Não acredito em nada disto! Não acredito em ti!

 Levanta-se e atira os papéis ao chão, pisa-os.

 O comissário afasta-a, recolhe os documentos.

 — Calma! Se não acreditas em mim, tudo bem, fala com ele!

 Lara senta-se, desanimada:

 — O que fizeste?

 — Fiz o meu trabalho, Lara. Investiguei. Confrontei o prisioneiro com novos dados. Ele cedeu. Fim da história. Tenho aqui os papéis para a extradição. Só falta a tua assinatura.

 — Não vou assinar. Quero falar com o Bentinho. Quero ouvir da boca dele.

 *** 

 Lara entra na cela de Bentinho. A cela tem agora uma pequena mesa coberta por um pano africano. Sobre o tampo da mesa há um conjunto de búzios e pequenos ossos. O angolano levanta-se ao vê-la.

 — Bem-vinda ao meu humilde consultório, agente Lara.

 Lara agita os papéis da confissão.

 — Podes dizer-me o que é isto?

 Bentinho lê as primeiras linhas. Devolve os papéis.

 — É a minha confissão!

 — Como foi que tu assinaste esta coisa?

 Bentinho volta a sentar-se. Joga os búzios.

 — Dona Lara, diga-me lá, qual é a data do seu nascimento?

 — O quê?

 — Você é de março, não é?

 — Como sabes?

 — Isso é fácil. O que eu não consigo saber é o dia. Deixe-me lançar de novo os búzios.

 — Não quero.

Bentinho volta a lançar os búzios.

 — Diz aqui: você vive com um morto.

 — Não gosto desta conversa.

 — Você tem de deixá-lo ir embora. O morto já perdoou.

 — Não sei do que estás a falar.

 — Você é uma boa pessoa. Esse menino, o morto, quer ir embora. Mas você não deixa.

 Volta a jogar os búzios.

 — Para com isso — pede Lara.

 — Dona Lara, dói-me tanto vê-la assim, infeliz. A culpa é a pior das prisões.

 — O que posso fazer? Meu Deus, o que posso fazer? Não consigo esquecer. Sempre que fecho os olhos, vejo o rosto dele. Durmo e sonho com ele. Acordo e ali está ele, estendido na minha cama, o sangue espalhado nos lençóis.

 — Dona Lara, escute: não foi você que o matou. Ele estava no fim. Ele caiu aqui, neste lugar, exatamente aqui. Mas tropeçou muito tempo antes. Você não conhece a história dele?

 — Sim, sim, acho que tens razão.

 — Vá, dona Lara, vá em paz. Não há culpado que não mereça ser inocente.

 Lara sai, esquecendo-se dos papéis. Bentinho chama-a.

 — Não esqueça isto. Eu sei por que assinei estes papéis. Teve de ser.

 Breve silêncio. Lara sai.

 Bentinho continua a falar, como se não tivesse dado pela saída da mulher:

 — Por onde eu vou vocês não podem ir. Como eu vos amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso saberão que são meus discípulos.

 *** 

 Lara senta-se diante do comissário Laranjeira. O homem folheia um livro, distraído.

 — Então, falaste com o Bentinho? Estás satisfeita?

 — Ainda não sei o que lhe fizeste. Alguma coisa fizeste.

 O comissário ergue os olhos.

 — Ele disse que eu lhe fiz alguma coisa?

 — Vão mandá-lo para Guantánamo?

 — Isso já não é um assunto nosso.

 — Não é justo, não é justo. Não posso assinar.

 — Podes, sim. Se não assinares isto, a Maggie mantém a queixa e eu serei expulso da polícia.

 — Problema teu…

 — Problema meu?! Arrisquei a minha carreira por ti. Salvei-te a pele… Contaste a história ao contrário à Maggie, não foi?

 — Não devia ter feito isso. Desculpa. Tenho muita vergonha.

 — Eu amava-te muito. Como eu te amava.

 Ficam os dois em silêncio. Escuta-se, vindo do pátio, um pássaro a cantar. O comissário ergue o olhar, subitamente alerta.

 — Ouves?! Estás a ouvir o pássaro? Nos últimos dias, as árvores, lá fora, encheram-se de pássaros.

 — Perdoas-me?

O comissário olha-a com ternura. Passa-lhe um documento.

 — Vá, assina!

 Lara assina.

 *** 

 O comissário está sozinho no seu escritório, vestido de forma ainda mais elegante e ousada. Tem auriculares nos ouvidos e dá uns passos de dança enquanto canta em lingala um tema de Papa Wemba. Lara entra. Fica a vê-lo dançar.

 — A dançar?! Já nem sei quem tu és!

 O comissário Laranjeira, de costas para Lara, de olhos fechados, não a escuta. Continua a dançar, cada vez com mais entusiasmo. Dança bem, como se tivesse dançado a vida inteira. Lara senta-se, apreciando o espectáculo. Finalmente, o comissário abre os olhos e dá com ela.

 — Estou impressionada — suspira Lara. — Não sabia que dançavas tão bem. Quando estavas comigo não gostavas de dançar.

 — Agora gosto.

 — E o Bentinho? Ele está pronto? Só vim aqui para me despedir.

 — Está na cela, com a Maggie.

 — O que estavas a ouvir?

 — Papa Wemba, um músico congolês que o Bentinho me recomendou. Tenho ouvido muita música africana ultimamente. Descobri uma discoteca angolana perto da tua casa. É sexta-feira. Queres ir dançar comigo logo à noite?

 — Se dançares como há pouco, quero muito. Sabes que eu adoro dançar.

 *** 

 Bentinho está na sua cela vestido com um uniforme laranja. Maggie, diante dele, olha-o envergonhada.

 — Não vou conseguir estar outra vez consigo a sós. Por isso pedi para lhe falar agora. Sei por que assinou a confissão. Está a proteger a Faíza. Levei algum tempo a entender por que decidiu sacrificar-se por ela. Você tem consciência de que esse gesto o atira para um futuro difícil, não tem? Você atirou-se para o precipício.

 — Quando alguém está apaixonado, os abismos são como prados.

 Ocorre um breve silêncio. Maggie, sentada à pequena mesa, cobre o rosto com as mãos.

 — A sua generosidade surpreendeu-me, tenho de confessar. Fez-me pensar. Acho que, de certo modo, me transformou.

 — É essa a minha missão. Sou um agente transformador. Transformo a dor em esperança.

 Maggie olha-o, entre comovida e irritada:

 — Não me interrompa… Não sou africana… Eu odiava a África. Tinha razões para isso, achava que tinha razões para isso. O que sucedeu com a minha família cegou-me. Eu olhava para a África e só via o horror. Não conseguia ver a beleza. Você surgiu, com essas falas de palhaço, e foi a confirmação de todos os meus preconceitos. Percebo agora que estava errada. Peço-lhe desculpa.

 — Está muitíssimo desculpada. Queria pedir-lhe um favor. É que esta roupa…

 — Um momento. Ainda não terminei. Você é importante para nós porque esteve na Síria, ao lado do Isis, combatendo ou não. Viu muita coisa. Ouviu muita coisa. Por que pensa que está vestido de laranja? Vão espremê-lo como a uma laranja.

 — Exatamente… Mas ao menos para esta viagem não posso ir vestido com as minhas roupas? Uma boa gravata… A senhora sabe, o respeito… Depois podem me espremer…

 — Já sei, já sei, o respeito começa na gravata. Não, não pode ser. São as regras. Vou deixá-lo a sós. Daqui a pouco voltarei para buscá-lo.

 *** 

 Bentinho, sozinho na sua cela, raspa com as unhas o desenho do pássaro e recolhe o pó para uma caixinha. Faz isso lenta e minuciosamente enquanto canta. Terminado o trabalho, lança o pó para a luz, através das grades da cela.

 — Vai, meu amigo, meu pássaro. Vai e voa, livre, de volta ao céu. Enquanto houver pássaros no céu, ninguém me poderá prender.

 *** 

 Bentinho surge algemado no escritório do comissário, ladeado por dois agentes americanos, fardados e armados. O comissário o abraça.

 — Ficas bem de laranja.

 Lara dá dois passos.

 — Também quero dar-te um abraço. Sei que estás inocente. Continuarei a lutar por ti.

 — Vamos embora — interrompe Maggie. — Temos um avião à nossa espera. Um longo voo pela frente.

 Vindo do exterior escuta-se um amplo revoar de pássaros e o seu alegre pipilar. Bentinho olha para a janela que dá para o pátio. O comissário acompanha o olhar dele.

 — Boa sorte, meu mano — diz o comissário. — Vais ter saudade dos pássaros.

 — Fique tranquilo, comissário: em toda a terra há céu, e em todo o céu há pássaros.


segunda-feira, 26 de julho de 2021

Os amigos dos amigos. Henry James

                                     


   Descubro, como você tinha previsto, muita coisa que é interessante, mas pouca coisa que ajude a responder à delicada questão — a possibilidade de publicação. Os diários dessa mulher são menos sistemáticos do que eu esperava; ela apenas tinha o hábito consagrado de anotar e narrar. Resumia, arquivava; parece poucas vezes ter deixado passar uma boa história sem agarrá-la pelo braço. Refiro-me, é claro, não tanto a coisas que ela ouviu como a coisas que ouviu e sentiu. Escreve algumas vezes sobre ela mesma, algumas vezes sobre outros, algumas vezes sobre combinação de ambos. É nesta última rubrica que ela se torna, o mais das vezes, mais vivida. Mas, você vai entender, não é sempre que ela é mais vivida que ela se torna mais publicável. Para dizer a verdade, ela é assustadoramente indiscreta; ou pelo menos tem todo o material para me fazer sentir indiscreto. Veja por exemplo o fragmento que lhe envio, depois de dividi-lo, para sua conveniência, em vários capítulos pequenos. É o conteúdo de um pequeno caderno de folhas não pautadas, que copiei e que tem o mérito de se aproximar bastante de uma coisa pronta, um todo inteligível. Essas páginas datam evidentemente de anos atrás. Li com a mais viva admiração o testemunho que elas dão com tantas circunstâncias, e fiz o meu melhor para aceitar o fato prodigioso que dão a entender. Essas coisas seriam surpreendentes — não seriam? — para qualquer leitor, mas será que você poderia imaginar por um momento que eu me dispusesse a apresentar esse documento aos olhos do mundo, mesmo que ela própria, como se tivesse desejado oferecer ao mundo esse presente, não teria dado a seus amigos nem nomes, nem iniciais? Você tem alguma espécie de pista para a identidade deles? Dou agora a palavra a ela.


   Sei perfeitamente, é claro, que desencadeei tudo isso sobre mim mesma, mas isso não torna nada melhor o que aconteceu. Fui a primeira a falar dela para ele — ele nunca tinha nem ouvido falar dela. Mesmo se não tivesse acontecido de eu falar, alguma outra pessoa iria mencioná-la a ele: tentei depois achar consolo nessa reflexão. Mas o consolo das reflexões é tênue: o único consolo que conta na vida é não ter sido uma tola. Essa é uma beatitude da qual eu, sem dúvida, nunca vou gozar. "Ora, você deveria vê-la e falar com ela", é o que eu disse imediatamente. "Vocês são da mesma turma." Eu disse a ele quem ela era e que eles eram da mesma turma porque, se ele tinha passado na juventude por uma estranha aventura, ela passara por coisa semelhante por volta da mesma época. Isso era bem sabido dos amigos dela — um caso que ela era freqüentemente chamada a contar. Ela era encantadora, inteligente, bonita, infeliz; mas a situação por que passara era, apesar de tudo, aquilo a que ela devia originalmente a sua reputação.

Aos dezoito anos, estando em algum lugar no estrangeiro, com uma tia, ela tivera uma visão de um de seus pais no momento da morte. A pessoa estava na Inglaterra, a centenas de milhas de distância, e, tanto quanto ela sabia, não estava moribunda, nem tinha morrido. Foi em um dia claro, no museu de alguma grande cidade estrangeira. Tinha ido sozinha, antes de seus acompanhantes, a uma saleta que abrigava alguma obra de arte famosa e estava ocupada naquele momento por duas outras pessoas. Uma delas era um velho guarda; o outro, antes de examiná-lo mais detidamente, ela achou que era um desconhecido, um turista. Ela mal se deu conta de que ele estava sem chapéu e sentado em um banco. No instante em que os olhos dela pousaram nele, no entanto, ela viu com surpresa o próprio pai, que, como se estivesse havia muito tempo esperando por ela, olhou para ela com uma aparência singular de mal-estar, com uma impaciência que era próxima da repreensão. Ela correu para ele, com um grito de surpresa: "Papai, o que está acontecendo?", mas isso foi seguido da exibição de uma sensação ainda mais viva, quando, diante do movimento dela, ele simplesmente desapareceu, fazendo com que o guarda e os parentes dela, que estavam logo atrás, a rodeassem com preocupação. Essas pessoas, o guarda, a tia, os primos, eram portanto, de certo modo, testemunhas do fato — pelo menos do fato da impressão que a ela fora causada; e havia o testemunho adicional do médico que estava atendendo algum dos turistas e ao qual o caso foi comunicado em seguida. Ele lhe deu um remédio para histeria, mas disse em particular à tia: Preste atenção se alguma coisa acontece em casa". Algo tinha acontecido — o pobre pai, tendo sofrido um ataque repentino e violento, tinha morrido naquela manhã. A tia, irmã da mãe, recebeu antes do fim do dia um telegrama anunciando o acontecimento e pedindo a ela que preparasse a sobrinha para a notícia. A sobrinha já estava preparada, e se tornou naturalmente indelével a sensação que essa visita havia proporcionado à moça. Todos, como seus amigos, havíamos sido informados disso e tínhamos falado disso discretamente um ao outro. Doze anos tinham se passado e, como mulher que tivera um casamento infeliz e vivia separada do marido, ela se tornara interessante por outras razões; mas como o nome que ela usava agora era um nome muito comum, e como, além disso, sua separação judicial, do jeito que as coisas estavam indo, dificilmente poderia ser considerada uma distinção, tornou-se usual chamá-la de "aquela, você sabe, que viu o fantasma do pai".


   Quanto a ele, o meu querido, tinha visto o fantasma da mãe. Eu nunca tinha ouvido falar disso até aquela ocasião em que nossa aproximação mais íntima, mais agradável, o levou, por mudança do tema da nossa conversa, a mencionar o caso, e a mim, a me inspirar, ao ele fazer isso, o impulso de fazê-lo saber que ele tinha uma rival nesse campo — uma pessoa com a qual ele podia comparar lembranças. Mais tarde, a história dele se tornou, para ele próprio, talvez por causa de eu ficar repetindo-a indevidamente, como que uma conveniente etiqueta mundana; mas não tinha sido, um ano antes, a razão pela qual ele me fora apresentado. Ele tinha outros méritos, do mesmo modo que ela, pobrezinha!, também tinha. Posso dizer honestamente que eu estava bem a par desses méritos desde o início — eu os descobri antes que ele tivesse descoberto os meus. Lembro como me surpreendeu, mesmo na época em que aconteceu, que o sentimento dele em relação a mim tenha sido intensificado por eu ter sido capaz, embora não diretamente através da minha própria experiência, de me equiparar à sua curiosa história. Datava, essa história, como a dela, de uns doze anos antes — um ano em que, em Oxford, ele tinha por alguma razão ficado no dormitório do Long. Tinha ficado pelo rio naquela tarde de agosto. Voltando a seu quarto quando ainda era dia claro, viu sua mãe de pé como se seus olhos estivessem fixos na porta. Ele tinha recebido de manhã uma carta da mãe, vinda do País de Gales, onde ela estava com o seu pai. À vista dele ela deu um sorriso extraordinariamente radiante e lhe estendeu os braços, e então, quando ele se adiantou e alegremente abriu os próprios braços, ela desapareceu do lugar. Ele escreveu para ela naquela noite, contando-lhe o que havia acontecido; a carta tinha sido preservada cuidadosamente. Na manhã seguinte ele soube da morte da mãe. Ficou, por ocasião de nossa conversa, muito surpreendido com o pequeno prodígio que pude lhe contar. Nunca tinha encontrado outro caso. Eles precisavam ser apresentados um ao outro, minha amiga e ele; certamente teriam algo em comum. Eu iria arranjar o encontro, não iria? — se ela não se importasse; ele mesmo não se importava de modo nenhum. Eu prometi falar com ela sobre o assunto o mais cedo possível, e em uma semana fiz isso. Ela se "importou" tão pouco quanto ele; estava querendo conhecê-lo. E ainda assim não ocorreu encontro nenhum — pelo menos do modo como normalmente se entende a palavra "encontro".


    


   II


   Essa é bem a metade da minha história — o modo extraordinário como o encontro foi retardado. Isso foi causado por uma série de acidentes; mas os acidentes continuaram acontecendo durante anos e se tornaram, para mim e para outras pessoas, um motivo de piadas com cada uma das partes. Os acidentes foram de início bastante divertidos; depois passaram a se tornar cada vez mais um aborrecimento. O estranho é que as duas partes estavam dispostas a se encontrarem; não foi uma questão de estarem indiferentes, muito menos de estarem indispostos a se verem. Foi tudo um dos caprichos da sorte, ajudado, suponho, por alguma oposição entre os interesses e hábitos deles. Os interesses e hábitos dele estavam centrados em seu trabalho, em suas eternas inspetorias, que lhe deixavam pouco tempo de lazer, com ele constantemente sendo chamado para viajar, o que o levava a desmarcar encontros. Gostava de ficar em sociedade, mas a encontrava em toda parte e a tomava a seu gosto. Eu nunca sabia, a um dado momento, onde ele estava, e havia ocasiões em que por meses a fio eu nunca o via. Ela, de seu lado, era praticamente suburbana: morava em Richmond e nunca "saía". Era uma mulher distinta, mas não da moda, e sentia, como as pessoas diziam, a sua situação. Decididamente orgulhosa e um tanto caprichosa, vivia a vida como tinha planejado. Havia coisas que se podiam fazer com ela, mas não se podia esperar que ela viesse a festas. A gente aparecia lá um tanto mais do que lhe parecia conveniente; uma reunião conveniente para ela consistia de sua prima, de uma chávena de chá e da vista. O chá era bom, mas a visão era familiar, embora não de modo ofensivo, ao contrário da prima — uma solteirona desagradável que tinha feito parte do grupo no museu e com a qual ela morava agora. Essa ligação com uma parenta inferior, que tinha em parte um motivo econômico — ela proclamava que sua acompanhante era uma gerente maravilhosa —, era uma das pequenas maldades que tínhamos de perdoar a ela. Outra maldade era a sua avaliação de o que deveria ser o comportamento apropriado a partir de sua separação do marido. Essa avaliação era extremada — muitas pessoas a diziam até mesmo mórbida. Ela não se aproximava das pessoas; cultivava escrúpulos; ela suspeitava, ou devo talvez dizer, ela se lembrava de menosprezos; ela era uma das poucas mulheres que conheci que a carga da separação tinha tornado mais modesta do que ousada. Querida!, tinha uma certa delicadeza. Marcados de modo especial eram os limites que tinha estabelecido à atenção por parte de homens: sempre pensava que o marido estava esperando para aparecer. Desencorajava, quando não proibia, a visita de pessoas do sexo masculino que não fossem senis; dizia que nunca podia ser menos cuidadosa do que fazia questão de ser.


   Quando eu disse a ela, pela primeira vez, que tinha um amigo que o destino havia distinguido do mesmo modo estranho que a ela, deixei-lhe a liberdade de dizer: "Oh, traga-o aqui para eu conhecê-lo!". Eu poderia provavelmente levá-lo e se criaria uma situação perfeitamente inocente, ou, de qualquer modo, comparativamente simples. Mas ela não pronunciou uma frase como essa; apenas disse: "Certamente preciso conhecê-lo; sim, vou procurá-lo!". Isso causou o primeiro adiamento, e, enquanto isso, aconteceram várias coisas. Uma delas foi que, enquanto o tempo passava, ela conquistou, encantadora como era, mais e mais amigas, e o que regularmente acontecia é que essas amigas eram também amigas dele em grau suficiente para mencioná-lo nas conversas. Era estranho que, não pertencendo, como não pertenciam, ao mesmo mundo, ou, segundo esse termo horroroso, ao mesmo segmento, tivesse acontecido que meu espantado par, em tantos casos, se reunisse com as mesmas pessoas e as fizessem se reunir ao estranho coro. Tinha ela amigas que não se conheciam umas às outras, mas inevitavelmente e pontualmente falavam dele. Tinha também o tipo de originalidade, o interesse intrínseco, que a levava a ser cuidada por parte de cada uma de nós como uma espécie de tesouro privado, cultivado ciosamente, mais ou menos em segredo, como uma pessoa que não se via em sociedade, que não era para todo mundo — que não era para o vulgo — se aproximar, e com a qual era particularmente difícil e particularmente precioso se encontrar. Nós a víamos separadamente, com horários marcados e condições, e descobrimos que, no geral, contribuía para a harmonia não falarmos umas com as outras sobre os encontros com ela. Alguém sempre recebia um bilhete dela ainda depois que todas. Havia uma mulher algo tola que, durante longo tempo, entre as desprivilegiadas, deveu a três simples visitas a Richmond a reputação de ser íntima de "montes de pessoas reclusas terrivelmente inteligentes".


   Todos tinham amigos que parecia uma boa idéia juntar, e todos lembram que as suas melhores idéias não se tornaram seus maiores sucessos; mas duvido que tenha havido alguma ocasião em que o fracasso estava em proporção direta com a quantidade de influência posta em ação. Realmente pode ser que, aqui, a quantidade de influência tenha sido mais notável. Minha dama e meu cavalheiro declararam cada um deles a mim e a outros que aquilo era como se fosse o tema de uma farsa divertida. A razão dada inicialmente tinha com o tempo saído do horizonte e cinqüenta razões melhores floresceram sobre ela. Eles eram tão por demais parecidos, tinham as mesmas idéias, truques e gostos, os mesmos preconceitos, superstições e heresias; diziam e às vezes faziam as mesmas coisas; gostavam e desgostavam das mesmas pessoas e lugares, dos mesmos livros, autores e estilos; qualquer um podia ver uma certa identidade mesmo nas suas aparências e nas suas feições. Isso estabeleceu grande parte do dito apropriado de que eles eram, no termo comum, igualmente "boas pessoas" e quase igualmente bonitos. Mas a grande semelhança, que gerava espanto e falação, era a sua rara esquisitice em relação a serem fotografados. Eram as únicas pessoas das quais jamais se ouvira falar que nunca tinham "posado" e que faziam objeção apaixonada a isso. Eles simplesmente não aceitariam ser fotografados, por nada que alguém pudesse dizer. Eu tinha me queixado abertamente disso; a ele, em particular, eu desejara, tão-somente em vão, ser capaz de mostrar na minha chaminé na sala de visitas, numa moldura da chique rua Bond. Isso tudo era, de qualquer modo, a razão verdadeiramente mais forte de todas pelas quais eles deviam se conhecer — todas as fortes razões reduzidas a nada pela estranha lei que os fazia bater tantas portas na cara um do outro, que os tornava os dois baldes no poço, as duas extremidades da gangorra, os dois partidos no Estado, de modo que, quando um estava em cima, o outro estava embaixo; enquanto um estava fora, o outro estava dentro; nenhum deles com nenhuma possibilidade de entrar numa casa antes que o outro dela tivesse saído, ou dela estivesse saindo, tudo isso sem saber, antes que o outro chegasse. Só chegavam quando se tinha desistido deles, que era também quando partiam. Eram numa só palavra alternados e incompatíveis; deixavam o outro escapar de modo tão inveterado que só podia ser explicado por ter havido alguma combinação. No entanto, tudo isso estava tão longe de ser combinado que tinha acabado — após literalmente vários anos — por desapontá-los e desgostá-los. Não acho que tenham sido realmente mordidos pela curiosidade antes que esta se tivesse tornado completamente vã. Muita coisa foi feita, é claro, para ajudá-los, mas isso só lhes dava corda para se decepcionarem no fim. Para dar exemplos, eu devia ter tomado notas; mas acontece que lembro que nenhum deles pôde jamais jantar na ocasião certa. A ocasião certa para cada um era a ocasião que seria errada para o outro. Na ocasião errada eles eram pontualíssimos, e não houve senão ocasiões erradas. Os próprios elementos da natureza conspiravam contra a efetivação do encontro e a constituição do ser humano os reforçava. Um resfriado, uma dor de cabeça, uma aflição, uma tempestade, um nevoeiro, um terremoto, um cataclismo fatalmente intervinham. Toda a história estava além das possibilidades de uma piada.


   No entanto, a história ainda tinha de ser tomada como piada, embora não se pudesse impedir o sentimento de que a piada tinha tornado séria a situação, tinha produzido da parte de cada um deles uma consciência, um embaraço, positivamente um medo do último acidente possível, o único que ainda tinha algum frescor, o acidente que os colocaria frente a frente. O efeito final dos antecedentes tinha sido despertar esse instinto. Eles estavam um tanto envergonhados — talvez até mesmo um pouco um do outro. Tanta preparação, tanta frustração: para o que de bom poderia levar tudo aquilo? Um mero encontro seria mera vulgaridade. Poderia eu vê-los, ao fim de tantos anos, perguntavam muitas vezes, simplesmente — estupidamente, confrontados? Se estavam aborrecidos com a piada, eles podiam ficar ainda mais aborrecidos por alguma outra coisa. Faziam exatamente as mesmas reflexões, e cada um, de algum modo, tinha certeza de ouvir falar das reflexões do outro. Acho na verdade que foi essa desconfiança peculiar que finalmente impôs um controle à situação. Quero dizer que, se tinham falhado nos dois primeiros anos ou coisa assim, porque não podiam evitar que isso acontecesse, no fim mantiveram o hábito porque tinham ficado — como direi? — nervosos. Realmente era necessário um desejo sobrepairando a tudo para dar conta de algo tão absurdo.


    


   III


   Quando, para coroar nossa longa convivência, aceitei o pedido renovado dele de casamento, se disse como piada, eu sei, que eu tinha apresentado como condição a entrega por ele de sua fotografia. Isso era verdade até o ponto em que eu tinha recusado dar a ele a minha fotografia sem que ele me desse a sua. De to modo eu o tinha afinal, em sua alta distinção, pregado à chaminé, onde, no dia em que ela me visitou para me dar os parabéns, ficou mais próxima de vê-lo que nunca antes. Ele tinha dado a ela, ao ser fotografado, um exemplo que a convidei a seguir; ele tinha sacrificado sua esquisitice — ela não poderia sacrificar a sua própria? Ela também tinha de me dar um presente de noivado — não me daria a foto que acompanharia a dele? Ela riu e sacudiu a cabeça; dava sacudidelas à cabeça, cujo impulso parecia vir de tão longe quanto a brisa que faz mover uma flor. A foto que acompanharia o retrato de meu futuro marido seria o retrato de sua futura mulher. Ela tomara posição — não podia abandonar essa posição, do mesmo modo que não podia explicá-la. Era um preconceito, um entêtement, um voto — ela iria viver e morrer sem ser fotografada. Agora ela estava sozinha nessa situação: disso era o que ela gostava; a fazia sentir-se muito mais original. Ela se regozijava com a queda de seu ex-correligionário e contemplou longamente seu retrato, sobre o qual não fez nenhuma observação que valesse a pena lembrar, embora até o tivesse virado para ver atrás. A respeito de nosso noivado, foi encantadora — cheia de cordialidade e simpatia. "Você o conhece há mais tempo do que eu não o conheço", disse, "e isso parece muito tempo." Ela entendia agora como ele e eu tínhamos atravessado tantas coisas juntos e quão inevitável era que agora nos juntássemos de vez. Sou definitiva a respeito de tudo isso porque o que se seguiu foi tão estranho que é uma espécie de alívio para mim assinalar até que ponto nossas relações eram tão naturais como sempre foram. Fui eu que, num acesso súbito de loucura, alterei e destruí essas relações. Vejo agora que ela não me deu pretexto nenhum e que só achei um pretexto no modo como ela olhava o belo rosto na moldura da rua Bond. Como então eu queria que ela o tivesse olhado? O que eu queria desde o início era levá-la a se importar com ele. Bem, isso era o que eu ainda queria — até o momento em que ela me prometeu que ele iria, nessa ocasião, realmente ajudar-me a romper o tolo encantamento que os havia mantido separados. Eu tinha arranjado com ele para fazer a sua parte, se ela fizesse tão triunfalmente a parte dela própria. Eu estava numa situação diferente agora — estava na situação de responder por ele. Eu ia prometer positivamente que às cinco da tarde no sábado seguinte ele estaria naquele lugar. Ele estava fora da cidade num negócio urgente; mas tinha jurado manter a sua promessa ao pé da letra, de que voltaria expressamente para isso e com tempo de sobra. "Você tem certeza absoluta?", lembro que ela perguntou, com ar grave de meditação: achei que ela tinha ficado um tanto pálida. Estava cansada, estava indisposta; era uma pena que ele fosse vê-la ao fim de tudo num momento tão precário. Se apenas ele tivesse podido vê-la cinco anos antes! No entanto, respondi que desta vez eu tinha certeza e deste modo o êxito dependia simplesmente dela. Às cinco em ponto no sábado ela o iria descobrir numa cadeira específica para a qual eu apontei, a cadeira em que ele sentava costumeiramente e na qual — embora isso eu não tenha mencionado — ele estava sentado quando, na semana anterior, ele colocou a questão do nosso futuro no modo que tinha me tornado feliz. Ela olhou para a cadeira em silêncio, da mesma maneira que tinha olhado para a fotografia, enquanto eu repetia pela vigésima vez que era por demais sem sentido que não fosse de algum modo factível apresentar à sua melhor amiga o seu segundo eu. "Sou sua melhor amiga?", me perguntou com um sorriso que, por um momento, trouxe de volta sua beleza. Respondi apertando-a ao peito, depois do que ela disse: "Bem, vou estar aqui. Estou com um medo extraordinário, mas você pode contar comigo".


   Depois que ela saiu, comecei a imaginar do que é que ela tinha medo, pois tinha dito isso de um modo muito contundente. No dia seguinte, no fim da tarde, recebi três linhas dela: tinha visto, ao chegar em casa, o anúncio da morte de seu marido. Não o via fazia sete anos, mas queria que eu ficasse sabendo, pelo bilhete, antes que eu ouvisse falar disso por outra pessoa. No entanto, por mais estranho e triste que seja dizer isso, a morte do marido fazia tão pouca diferença na vida dela que ela iria manter escrupulosamente o seu compromisso conosco. Fiquei contente por causa dela — achei que faria pelo menos a diferença de que ela iria ficar com mais dinheiro; mas, mesmo com esse desvio de atenção, longe de esquecer que ela tinha dito que estava com medo, eu pensei vislumbrar uma razão para ela estar assim. O medo dela, à medida que a noite foi avançando, se tornou contagioso, e o contágio tomou no meu peito a forma de um pânico súbito. Não era ciúme — era o medo do ciúme. Chamei-me de tola por não ter ficado quieta até que fôssemos marido e mulher. Depois disso eu me sentiria de todo modo segura. Era apenas questão de esperar mais um mês — uma ninharia, certamente, para quem tinha esperado tanto. Tinha sido claro que ela ficara nervosa, e agora que estava livre não ficaria naturalmente menos nervosa. O que era o nervosismo dela, portanto, senão um pressentimento? Ela até agora tinha sido vítima da interferência, mas era bastante possível que daqui por diante ela se tornasse a fonte da interferência. A vítima nesse caso seria minha modesta pessoa. O que tinha sido a interferência senão o dedo da Providência apontando um perigo? O perigo era, é claro, para a pobre de mim. Tinha sido mantido inofensivo por uma série de acidentes sem precedentes em sua freqüência; mas o reinado do acidente estava agora visivelmente no fim. Eu tinha uma convicção íntima de que ambas as partes iam cumprir a combinação. Eu ficava cada vez mais impressionada com o fato de que eles estavam se aproximando, convergindo. Tínhamos falado sobre quebrar o encanto; bem, ele seria efetivamente quebrado — a não ser, na verdade, que fosse assumir meramente outra forma e fazer seus encontros tomarem proporções tão exageradas como as que tinham tomado os seus desencontros. Isso era algo em que eu não podia pensar e ficar quieta; isso me manteve acordada — à meia-noite eu estava cheia de inquietação. No fim senti que só havia uma maneira de exorcizar o fantasma. Se o reinado do acidente estava no fim, eu precisava apenas assumir a sucessão. Sentei e escrevi às pressas um bilhete que o encontraria a meio caminho e que, como os criados tinham ido dormir, levei, sem chapéu, em meio à rua vazia de gente e cheia de ventania, para enfiar na caixa de correio mais próxima. Dizia o bilhete que eu não poderia estar em casa à tarde, ao contrário do que esperara, e que ele precisava adiar sua visita até a hora do jantar. Isso implicava que ele iria me encontrar sozinha.


    


   IV


   Quando, de acordo com o combinado, ela se apresentou às cinco da tarde, eu naturalmente me senti falsa e má. Minha ação tinha sido uma loucura momentânea, mas pelo menos eu tinha de ser coerente. Ela ficou uma hora; ele, é claro, nunca apareceu; e eu apenas podia continuar em minha perfídia. Eu tinha achado melhor deixá-la vir, por mais que isso agora me pareça estranho. Ainda assim ela sentou ali tão visivelmente branca e preocupada, atingida por um sentido de tudo o que a morte do marido havia aberto para ela. Senti uma dor quase intolerável de piedade e remorso. Se não contei a ela na hora o que eu tinha feito foi porque estava por demais envergonhada. Fingi surpresa — fingi até o fim; protestei que, se alguma vez eu tivera confiança em que o encontro iria se realizar, era daquela vez. Enrubesço enquanto conto minha história — tomo isso como minha penitência. Não houve nada de indigno que eu não dissesse sobre ele; inventei suposições, atenuantes; admiti estupefata, à medida que os ponteiros do relógio andavam, que a sorte deles não tinha mudado. Ela sorriu diante dessa visão da "sorte" deles, mas parecia ansiosa — ela parecia diferente; a única coisa que me manteve firme foi o fato de que, de modo bastante inesperado, ela estava de luto — não luto fechado, mas simples e escrupulosamente de preto. Tinha na boina três pequenas penas pretas. Trazia um pequeno abrigo de astracã. Isso, com a ajuda de alguma aguda reflexão, deu-me um pouco de razão. Ela tinha me escrito que o súbito acontecimento não fazia nenhuma diferença para ela, mas aparentemente fez diferença a ponto de ela vestir luto. Se ela estivesse inclinada a cumprir as formalidades habituais, por que não observara a formalidade de não sair para o chá nos dois primeiros dias de luto ou coisa assim? Havia alguém a quem tanto desejava ver que não podia esperar até que o marido fosse enterrado. Uma demonstração assim de pressa me tornou dura e cruel o suficiente para insistir no meu engano odioso, embora, ao mesmo tempo, à medida que as horas iam se passando, eu tenha suspeitado de que nela havia algo ainda mais profundo do que o desapontamento e que ficava de algum modo menos bem escondido. Quero dizer que havia um estranho alívio por baixo de tudo, a respiração suave e pouco audível que ocorre quando um perigo deixou de ameaçar. O que aconteceu enquanto ela passava a hora inútil comigo foi que, no fim, ela desistiu dele. Ela o deixou ir para sempre. Fez a piada mais graciosa possível a respeito disso, a mais graciosa que eu vi ser feita a respeito de qualquer coisa; mas era, apesar de tudo, uma grande data em sua vida. Falou com amena alegria de todas as outras ocasiões perdidas, o prolongado jogo de esconde-esconde, a esquisitice sem precedentes de uma tal relação. Pois era, ou tinha sido, uma relação, não era, não tinha sido? Essa era exatamente a parte absurda do caso. Quando ela se levantou, eu lhe disse que a relação estava mais forte do que nunca, mas que eu não tinha cara, depois do que tinha acontecido, para propor a ela, por enquanto, outra oportunidade. Ficava claro que a única oportunidade válida seria a cerimônia de meu casamento. É claro que ela iria ao meu casamento? Devíamos mesmo ter a esperança de que ele iria.


   "Se eu for, ele não irá!", ela declarou, rindo. Admiti que podia haver alguma coisa nisso. A questão era, portanto, deixar-nos primeiro casar com segurança. "Isso não vai ajudar. Nada vai nos ajudar!", disse ela quando me deu um beijo de despedida. "Nunca, nunca o verei!" Foi com essas palavras que ela me deixou.


   Pude suportar o desapontamento dela, como chamei o seu sentimento; mas quando algumas horas depois o recebi no jantar, descobri que eu não podia suportar o desapontamento dele. O modo como minha manobra poderia afetá-lo não estivera particularmente presente à minha mente; mas o resultado da manobra foi a primeira palavra de repreensão que jamais tinha saído da sua boca. Digo "repreensão" porque essa expressão não é absolutamente forte demais para qualificar os termos com os quais ele me transmitiu sua surpresa de que, dentro daquelas circunstâncias extraordinárias, eu não tivesse achado algum meio de não privá-lo daquela ocasião. Eu poderia realmente ter feito as coisas de modo a ou não ser obrigada a sair, ou a fazer com que o encontro deles ocorresse de qualquer maneira. Eles provavelmente ficariam em minha sala de visitas sem mim. Diante disso, perdi o rumo — confessei minha maldade e a miserável razão dela. Eu não tinha adiado a vinda dela, nem tinha saído; ela tinha estado ali e, depois de esperar uma hora por ele, tinha partido acreditando que ele se ausentara por sua própria culpa.


   "Ela deve acreditar que sou um animal estúpido!", ele exclamou. "Ela disse de mim... aquilo que tinha direito de dizer?"


   "Asseguro a você que ela não disse nada que mostrasse o menor sentimento. Ela olhou para a sua fotografia, a virou mesmo para ver atrás, onde está escrito o seu endereço. Mesmo assim isso não provocou nela nenhuma demonstração. Ela não se importa muito com tudo isso."


   "Então por que você tem medo dela?"


   "Não era dela que eu tinha medo, era de você."


   "Você acha que eu iria me apaixonar por ela? Você nunca aludiu antes a essa possibilidade", continuou ele, enquanto eu ficava em silêncio. "Tão admirável quanto ela seja, tanto quanto você disse, esse não foi o modo como você a descreveu para mim."

Você quer dizer que, se eu tivesse falado nisso, você já teria arranjado as coisas de modo a vê-la? Eu não tinha medo das coisas então", acrescentei. "Eu não tinha a mesma razão."


   Ele, diante dessa frase, me beijou, e, quando lembrei que ela havia me beijado uma ou duas horas antes, senti por um instante como se ele estivesse tomando dos meus lábios a pressão real dos lábios dela. A despeito dos beijos, o incidente desencadeara certa frieza, e eu sofri horrivelmente com a idéia de que ele tinha me visto como culpada de uma fraude. Ele enxergara isso apenas através da minha confissão tão franca, mas eu me senti tão infeliz como se tivesse uma mancha em mim para apagar. Não pude suportar o olhar dele em minha direção quando falei da aparente indiferença dela ao fato de ele não ter vindo. Pela primeira vez desde que eu o conhecera ele parecia ter expressado uma dúvida a respeito de minha palavra. Antes que nos despedíssemos, disse a ele que iria contar a verdade a ela, a primeira coisa que eu iria fazer de manhã era partir para Richmond e comunicar a ela que ele não tinha tido culpa nenhuma. Nesse momento ele me beijou de novo. Eu ia expiar meu pecado, eu disse; iria me humilhar na poeira; iria confessar e pedir perdão. Nesse momento ele me beijou mais uma vez.


    


   V


   No trem, no dia seguinte, bateu-me de repente a idéia de que aquela era uma boa proposta para ele, a ponto de ele ter consentido; mas minha decisão era firme o bastante para eu a continuar executando. Subi o extenso morro até onde a vista começa, e então bati à porta dela. Fiquei um tanto encafifada porque suas janelas ainda estavam fechadas, pensando que se, na premência da minha compulsão, eu tinha chegado cedo, no entanto certamente era hora de as pessoas terem se levantado.


   "Em casa, senhora? Ela saiu de casa para sempre."


   Fiquei extraordinariamente espantada com esse anúncio da idosa empregada.


   "Ela foi embora?"


   "Ela está morta, senhora, por favor." Então, quando respirei fundo diante da palavra horrível, a empregada disse: "Ela morreu a noite passada".


   O grito agudo que saiu de mim soou, mesmo aos meus próprios ouvidos, como uma pesada violação da hora tão matinal. Senti por um momento como se eu a tivesse matado. Desmaiei e vi, através de uma vaga imagem, a mulher estendendo os braços para mim. Não tenho lembrança do que aconteceu em seguida, nem de nada a não ser da pobre e estúpida prima de minha amiga, numa sala escura, depois de um intervalo que suponho foi muito breve, soluçando para mim de um modo sufocado e acusatório. Não posso dizer quanto tempo levou para eu entender, acreditar e então tentar amenizar, com um esforço imenso, a sensação de responsabilidade que, supersticiosamente, insanamente, tinha sido de início quase tudo de que eu estivera consciente. O médico, depois de tudo, tinha sido mais do que sábio e claro: ele estava sabendo de uma fraqueza prolongada e latente do coração, originada provavelmente anos antes, pelas agitações e terrores aos quais o casamento dela a havia feito passar. Ela tivera naqueles dias cenas cruéis com seu marido, sentira medo de morrer. Toda emoção, tudo que fosse da natureza da ansiedade e do suspense, tivera depois disso de ser fortemente reprimido, para o qual, no seu marcante cultivo de uma vida sossegada, ela estava evidentemente bem preparada; mas quem poderia dizer que qualquer pessoa, especialmente uma "verdadeira dama", podia com êxito estar protegida de toda pequena preocupação? Ela recebera um ou dois dias antes a notícia da morte do marido; pois havia choques de todos os tipos, não apenas aqueles da tristeza e da surpresa. No que diz respeito a isso, ela nunca tinha sonhado com uma liberação tão súbita; tinha parecido, estranhamente, como se ele fosse viver tanto tempo quanto ela. Então, à noite, na cidade, ela tivera manifestamente outra preocupação; algo deve ter acontecido lá que parecia indispensável esclarecer o que tinha sido. Tinha voltado muito tarde — foi depois das onze da noite, e, ao ser encontrada no saguão por sua prima, que estava extremamente ansiosa, dissera que estava cansada e precisava descansar um momento antes de subir as escadas. Elas tinham passado juntas para a sala de jantar, sua acompanhante tendo proposto uma taça de vinho, e ido ao armário para providenciá-la. Isso levou apenas um momento e, quando minha informante voltou, nossa pobre amiga não tivera tempo de sentar-se. De repente, com um pequeno gemido que mal foi audível, ela caíra sobre o sofá. Estava morta. Que "pequena preocupação" desconhecida a teria atingido? Que choque, podia-se especular, teria ela sofrido na cidade? Mencionei imediatamente o único choque que eu podia imaginar — o fato de que ela não tinha conseguido encontrar em minha casa, para a qual por convite expressamente feito para isso ela tinha vindo às cinco da tarde, o cavalheiro com o qual eu estava para casar, que tinha sido acidentalmente retido longe de casa e o qual ela não conhecera de modo nenhum. Isso, obviamente, era pouca coisa, mas algo mais poderia fatalmente ter acontecido; nada nas ruas de Londres era mais possível do que um acidente, especialmente um acidente naquelas desesperadas charretes de aluguel. O que ela tinha feito, aonde teria ido após ter deixado minha casa? Eu dera por certo que ela tinha ido diretamente para sua própria casa. Ambas depois lembramos que, em suas excursões à cidade, ela algumas vezes, por conveniência, para se refazer, passava uma ou duas horas no Gentlewomen, o sossegado clube de damas, e prometi que seria de minha incumbência fazer naquele estabelecimento uma investigação exaustiva. Então entramos na escura e temível câmara em que ela estava deitada, presa na morte, e onde, pedindo depois de pouco tempo para ser deixada sozinha com ela, permaneci por meia hora. A morte a tornara, a tinha mantido bonita; mas senti acima de tudo, enquanto estava ajoelhada junto à sua cama, que a morte a tornara, a tinha mantido calada. Tinha trancado o segredo de algo que eu estava preocupada em saber.


   No meu retorno de Richmond, e após ter cumprido outra tarefa, eu me dirigi aos aposentos dele. Era a primeira vez, mas eu freqüentemente desejara conhecê-los. Como a casa continha vinte apartamentos, a escada era livre ao público; nela encontrei seu criado, que voltou comigo e me fez entrar. Ao som de minha entrada, ele apareceu à porta de uma sala interna e, no instante em que ficamos a sós, eu lhe dei minha informação: "Ela morreu!".


   "Morreu?"


   Estava tremendamente chocado e observei que não tivera necessidade de perguntar a quem, nesse modo abrupto, eu me referia.


   "Morreu na noite passada — logo depois de sair da minha casa."


   Ele me olhou com uma expressão das mais estranhas, seus olhos procurando os meus como se estivessem vislumbrando uma cilada. "A noite passada — depois de sair da sua casa?" Repetiu minhas palavras estupefato. Então foi a minha vez de ficar estupefata quando ele disse: "Impossível! Eu a vi".


   "Você a 'viu'?"


   "Neste lugar — onde você está."


   Isso me fez lembrar, depois de um instante, como para me ajudar a aceitar o que ele tinha dito, o grande milagre do "aviso" da juventude dele. "Na hora da morte — entendo: tão lindamente quanto você viu sua mãe."


   "Ah!, não como vi minha mãe — não daquele modo, não daquele modo!" Estava profundamente tocado por minha notícia — muito mais tocado, percebi, do que teria sido no dia anterior; isso me deu uma sensação vivida de que, como então eu dissera a mim mesma, havia realmente uma relação entre eles e ele estivera de verdade frente a frente com ela. Uma idéia assim, por sua reafirmação de seu extraordinário privilégio, o teria apresentado de súbito como dolorosamente anormal, não fosse ele ter insistido com tanta veemência na diferença. "Eu a vi viva — eu a vi e falei com ela — eu a vi como vejo você agora!"


   É notável que, por um momento, embora apenas por um momento, senti alívio diante do fato mais pessoal, como se queira, mas também do fato mais natural entre dois fatos estranhos. Em seguida, quando me dei conta dessa imagem de ela ter vindo vê-lo após me deixar, e de exatamente isso dar conta do tempo


   que ela tinha levado para chegar a sua própria casa, perguntei com uma sombra de dureza, da qual eu estava consciente:


   "Por que diabo ela veio?


Ele tivera um minuto para pensar — para se recuperar e para avaliar os efeitos; então, se foi ainda com olhos excitados que ele falou, mostrou um rubor consciente e fez uma tentativa inconseqüente de amenizar com um sorriso a gravidade de suas palavras.

   "Veio apenas me ver. Veio — depois do que aconteceu na sua casa — de modo que nós pudéssemos, afinal, nos encontrar de vez. O impulso me pareceu delicado, e esse foi o modo como o aceitei."

   Olhei em torno da sala em que ela tinha estado — em que ela tinha estado e eu nunca tinha estado.

   "E o modo como você o aceitou foi o modo como ela expressou o impulso?"

   "Ela apenas expressou o seu impulso ficando aí e me deixando olhar para ela. Isso foi o suficiente!", ele exclamou, com um riso estranho.

   Fiquei imaginando mais e mais. "Você quer dizer que ela não falou nada para você?"

   "Não disse nada. Apenas me olhou enquanto eu olhava para ela."

   "E você também não falou?"

   Ele me deu de novo seu doloroso sorriso. "Pensei em você. A situação era de todos os modos muito delicada. Usei o mais cuidadoso tato. Mas ela viu que tinha me agradado." Ele até repetiu seu riso dissonante.

   "Evidentemente que ela agradou a você!" Então pensei por um momento. "Quanto tempo ela ficou?"

   "Como posso dizer? Pareceram vinte minutos, mas provavelmente foi muito menos."

   "Vinte minutos de silêncio!" Comecei a ter minha opinião definida e agora, de fato, me agarrei a essa opinião. "Você sabe que está me contando uma história positivamente monstruosa?"

   Ele ficou de pé, dando as costas para o fogo; nesse momento, com um ar de quem pede clemência, veio em minha direção. “Apelo para que você, querida, aceite bondosamente o que aconteceu."

   Eu podia aceitar bondosamente, e sublinhei isso, mas de algum modo, quando ele abriu os seus braços um tanto desajeitadamente, não pude deixá-lo me levar para junto dele. Então caiu entre nós, por um tempo considerável, o desconforto de um grande silêncio.

    

   VI

   Ele depois interrompeu o silêncio dizendo: "Não há absolutamente dúvida nenhuma sobre a morte dela?".

   "Infelizmente nenhuma. Há pouco deixei de estar de joelhos ao lado da cama onde a deitaram."

   Ele olhou fixamente para o chão; então ergueu os olhos para mim:

   "Qual é a aparência dela?"

   "Ela parece — estar em paz."

   Ele se virou para o lado de novo, enquanto eu o observava; mas depois de um momento ele começou: “A que horas, então — ?".

   "Deve ter sido perto da meia-noite. Ela desmaiou quando chegou em casa — de uma afecção do coração que sabia ter e da qual seu médico sabia que ela sofria, mas de que, pacientemente, corajosamente, ela nunca me falou."

   Ele ouviu com atenção e, por um instante, foi incapaz de falar. No fim rompeu o silêncio com uma entonação cuja confiança quase infantil, cuja simplicidade realmente sublime, soa em meus ouvidos enquanto escrevo: "Não é que ela era maravilhosa?". Mesmo naquele momento fui capaz de fazer justiça a isso, o suficiente para afirmar, em resposta, que eu sempre tinha dito isso a ele; mas no instante seguinte, como após falar ele tivesse vislumbrado o que poderia ter me feito sentir, continuou rapidamente: "Você diz que, se ela não chegou em casa até a meia-noite —".

   Imediatamente eu vi o que ele queria dizer. "Houve tempo bastante para você a ver? Como isso", perguntei, "se você não saiu da minha casa até tarde da noite? Não lembro a hora certa — estava preocupada. Mas você sabe que, embora tenha dito que tinha muitas coisas para fazer, você ficou algum tempo após o jantar. Ela, por seu lado, ficou a noite inteira no Gentlewomen. Acabo de chegar de lá — confirmei. Tomou chá lá; ficou muito, muito tempo."

   "O que ela estava fazendo nesse tempo todo?"

   Vi que ele estava ansioso para desafiar a cada passo meu relato sobre o assunto; e quanto mais ele mostrava isso, mais eu me achava disposta a insistir nesse relato, a preferir com aparente maldade uma explicação que só aprofundava a estranheza e o mistério, mas a qual, dos dois fatos prodigiosos entre os quais se tinha de escolher, meu ciúme renascido achava mais fácil aceitar. Ele ficou lá argumentando, com uma candura que agora me parece linda, em favor de ter, a despeito da derrota suprema, conhecido a mulher viva, enquanto eu, com uma paixão que hoje me causa admiração, embora ainda brilhem algumas brasas entre as cinzas dessa paixão, podia apenas responder que, por meio de um estranho dom partilhado por ela com a mãe dele e do lado dela do mesmo modo hereditário, o milagre da juventude dele tinha sido renovado para ele, assim como o milagre vivido por ela tinha se repetido. E estivera presente diante dele — sim, e por um impulso tão encantador quanto ele quisesse; mas oh!, ela não estivera presente corporalmente. Era uma simples questão das evidências. Eu tivera, assegurei a ele, um testemunho definitivo sobre o que ela tinha feito — na maior parte do tempo — no pequeno clube. O lugar estava quase vazio, mas as atendentes a notaram. Ela se sentara, imóvel, numa poltrona funda ao lado do fogo no salão; tinha inclinado a cabeça, fechado os olhos, parecendo adormecer suavemente.

   "Sim. Mas até que horas?"

   "Aí", fui obrigada a responder, "as atendentes falham um pouco. A porteira em particular é, infelizmente, uma tola, embora seja supostamente uma dama. Ela esteve evidentemente nesse período da noite, sem uma substituta e contra os regulamentos, ausente por pouco tempo do guichê de onde é serviço dela observar as entradas e saídas. Ela está confusa, pois claramente prevarica no serviço; de modo que não posso positivamente, a partir da observação dela, dizer a você uma hora certa. Mas foi notado, lá pelas dez e meia da noite, que nossa pobre amiga não estava mais no clube."

   "Ela veio direto para cá; e daqui ela foi direto para o trem."

   "Ela não poderia ter corrido tanto", declarei. "Isso era uma coisa que particularmente ela nunca fez."

   "Não havia nenhuma necessidade de correr tanto, minha querida — ela tinha bastante tempo. A sua memória está falhando quando diz que eu saí tarde da sua casa. Deixei-a, de fato, bem mais cedo que o usual. Sinto muito que minha presença tenha lhe parecido longa, pois eu estava de volta aqui às dez da noite."

   "Para enfiar os chinelos", eu disse em seguida, "e dormir na sua poltrona. Você dormiu até de manhã — você a viu num sonho!" Ele me olhou em silêncio e com olhos sombrios — olhos que me indicavam que ele tinha que reprimir alguma irritação. Depois, continuei: "Você recebeu uma visita, numa hora incomum, de uma dama — soit: nada no mundo é mais provável. Mas há damas e damas. Como, em nome de Deus, se ela não foi anunciada e permaneceu em silêncio, e você por seu lado nunca tinha visto o menor retrato dela — como você pode identificar a pessoa sobre a qual estamos falando?"

   "Não a ouvi descrita até a saciedade? Vou descrevê-la para você em todos os aspectos."

   "Não faça isso!", exclamei com uma rapidez que o fez rir de novo. Ruborizei com isso. "O seu criado a anunciou?"

   "Não estava aqui — nunca está quando é preciso. Uma das características desse casarão é que, a partir da porta da rua, os vários andares são acessíveis praticamente sem vigilância. Meu criado faz amor com uma jovem empregada nos quartos acima destes, e teve muito tempo para isso na noite passada. Quando sai para esse negócio, deixa minha porta externa, na escadaria, aberta o suficiente para que possa voltar sem fazer barulho. A porta requer então apenas um empurrão. Ela a empurrou — isso simplesmente exigiu um pouco de coragem."

   "Um pouco? Exigiu toneladas! E exigiu todo tipo de cálculos impossíveis."
Bem, ela teve as toneladas de coragem — ela fez os cálculos. Note, não nego nem por um momento", ele acrescentou, "que foi muito, muito maravilhoso!"

   Alguma coisa no tom de voz dele me impediu por um tempo de confiar suficientemente em mim mesma para falar. No fim, eu disse: "Como é que ela sabia onde você morava?".

   "Lembrando o endereço na etiquetinha que o pessoal da loja, tranqüilamente, deixou colada na moldura que mandei fazer para minha fotografia."

   "E como ela estava vestida?"

   "De luto, minha querida. Não luto pesado, mas um preto simples e escrupuloso. Tinha na boina três pequenas penas pretas. Trazia um pequeno abrigo de astracã. Tem perto do olho esquerdo", ele continuou, "uma pequena cicatriz vertical —"

   Interrompi-o. "A marca de uma carícia de seu marido." Então acrescentei: "Quão perto você deve ter estado dela!". Ele não respondeu, e achei que ruborizou; observando isso, fiz menção imediata de ir embora. "Bem, adeus."

   "Você não vai ficar um pouco?" Ele veio em minha direção, de novo terna-mente, e dessa vez eu o aceitei. "A visita dela teve a sua beleza", ele murmurou enquanto me abraçava, "mas a sua tem uma beleza maior."

   Deixei-o me beijar, mas lembrei, como eu tinha lembrado no dia anterior, que o último beijo que ela tinha dado, como eu supunha, neste mundo, tinha sido para os lábios que ele tocava.

   "Sou a vida, você vê", respondi. "O que você viu na noite passada foi a morte."

   "Foi a vida — foi a vida!"

   Ele falou com uma espécie de teimosia amena, e eu me soltei dos braços dele. Ficamos olhando duramente um para o outro.

   "Você descreve a cena — se é que você a descreve — em termos que são incompreensíveis. Ela estava na sala antes que você soubesse disso?"

   "Eu estava escrevendo cartas e ergui os olhos — naquela mesa sob a lâmpada eu estava realmente absorto escrevendo as cartas — e ela estava de pé diante de mim."

   "Então o que você fez?"

   "Levantei subitamente e ela, com um sorriso, pôs o dedo, como se estivesse advertindo, mas com uma espécie de dignidade delicada, sobre os lábios. Eu sabia que isso queria dizer silêncio, mas o estranho foi que pareceu explicar imediatamente e justificar a presença dela. Nós de todo modo ficamos um tempo que, como eu disse a você, não posso calcular. Foi exatamente como nós estamos em frente um do outro agora."

   "Simplesmente olhando um para o outro?"

   Ele protestou com impaciência: 'Ah!, você e eu não estamos nos olhando!".

   "Sim, mas estamos falando."

   "Bem, ela e eu estávamos nos olhando — de certa maneira." Ele se perdeu na memória do que acontecera. "Foi, assim, amigável." Eu tinha na ponta da língua a pergunta se isso era suficiente como explicação, mas observei, em vez disso, que o que eles tinham realmente feito era se contemplar em mútua admiração. Então perguntei se ele a reconhecera imediatamente. "Não imediatamente", respondeu, "pois é claro que eu não a esperava; mas me veio à idéia de quem ela era bem antes que ela fosse embora — que só poderia ser ela."

   Pensei um pouco. "E como no fim ela foi embora?"

   "Do mesmo modo que chegou. A porta estava aberta atrás dela e ela saiu."

   "Foi depressa ou lentamente?"

   "Um tanto rapidamente. Mas, olhando para ela", acrescentou, com um sorriso, "eu a deixei ir, pois entendi perfeitamente que eu devia aceitar as coisas como ela queria."

   Percebi ter deixado escapar um suspiro prolongado e vago. "Bem, você precisa aceitar as coisas agora como eu quero — você precisa me deixar ir embora."

Diante disso, ele se aproximou de novo de mim, me detendo e me persuadindo, declarando todo galante que eu era outra questão. Eu teria dado qualquer coisa para ser capaz de perguntar se ele a tinha tocado, mas as palavras se recusaram a se formar: eu sabia muito bem quão horrorosas e vulgares iriam soar. Eu disse alguma outra coisa — esqueço exatamente o quê; era algo fragilmente tortuoso e com a intenção de fazê-lo me dizer se ele a havia tocado sem realmente eu perguntar isso. Mas ele não me contou, como se, a partir de um vislumbre da adequação do ato de me aliviar e de me consolar, o sentido da declaração de alguns minutos antes — a garantia de que ela era realmente delicada, como eu sempre tinha insistido — mas que eu era a amiga "real" dele e pertencia a ele para sempre. Isso me levou a reafirmar, no espírito da minha fala anterior, que eu tinha pelo menos o mérito de estar viva; o que, por sua vez, provocou nele o repente de contradição que eu temia. "Oh, ela estava viva! Estava, estava!"

   "Estava morta! Estava morta!", asseverei, com uma energia, uma determinação de que assim deveria ser, que me parecem agora quase grotescas. Mas o som da palavra, assim que ressoou em volta, me encheu subitamente de horror, e toda a emoção natural que o seu significado poderia ter evocado em outras condições se reuniu e arrebentou como uma inundação. Eu me dei conta de que aqui estava uma grande emoção preenchida e quanto eu a tinha amado e confiado nela. Tive uma visão, ao mesmo tempo, da beleza solitária do fim dela. "Ela se foi — está perdida para nós para sempre." Desatei em soluços.

   "É assim exatamente que eu me sinto", ele exclamou, falando com extrema bondade e me apertando ao seu encontro para me confortar. "Ela se foi; está perdida para nós para sempre: então o que isso importa agora?" Inclinou-se em minha direção, e, quando seu rosto tocou o meu, eu não sabia direito se seu rosto estava molhado com as minhas lágrimas ou com as dele próprio.

    

   VII

   Era minha teoria, minha convicção, e se tornou, como posso dizer, minha atitude, que eles não tinham nunca se "encontrado"; e foi justamente com base nisso que eu disse a mim mesma que seria generoso pedir a ele que ficasse ao meu lado junto ao túmulo dela. Ele fez isso com muita modéstia e ternura, e eu presumi, embora ele claramente não se importasse com esse perigo, que a solenidade da ocasião, com a ampla presença de pessoas que tinham conhecido a ambos e conheciam a piada sobre seus desencontros, iria privar suficientemente a sua presença de quaisquer associações levianas. Sobre a questão de o que tinha acontecido na noite de sua morte pouco mais foi falado entre nós; eu tinha sido tomada por um horror à questão das provas. Isso parecia, em qualquer hipótese, grosseria e bisbilhotagem. Ele, de seu lado, não tinha nada a fornecer, nada, pelo menos, senão uma afirmação de seu porteiro — segundo ele próprio uma personagem distraída e intermitente — que entre dez horas da noite e a meia-noite não menos de três damas de preto tinham entrado e saído do lugar. Isso se mostrou demasiado; nenhum de nós tinha nenhuma explicação para três. Ele sabia que eu considerava ter dado conta de todos os fragmentos do tempo dela, e deixamos o assunto como resolvido; nos abstivemos de mais discussão. O que eu sabia, porém, era que ele tinha se abstido disso para me agradar, mais do que por ter cedido às minhas razões. Ele não cedeu — foi apenas indulgente; agarrou-se à sua interpretação, porque a preferia. Ele a preferia, era minha opinião, porque a sua interpretação falava mais à sua vaidade. Isso, se eu estivesse na mesma situação, não teria efeito sobre mim, embora eu tivesse tanta vaidade quanto ele; mas essas são coisas do humor individual, de modo que nenhuma pessoa pode julgar por outra. Eu deveria ter suposto que era mais gratificante isso ser o tema de uma daquelas ocorrências inexplicáveis que são relatadas em livros eletrizantes e discutidas em reuniões de eruditos; eu não podia conceber, da parte de um ser recém-mergulhado no infinito e ainda vibrando com emoção humana, nada mais belo e puro, mais alto e nobre do que um tal impulso de reparação, de advertência ou mesmo de curiosidade. Isso era bonito, se alguém pensasse, e eu teria, no lugar dele, pensado isso, que era uma honra para ele mesmo ter sido assim distinguido. Era público que ele já havia, que ele já havia muito tempo antes sido distinguido, e o que era isso em si mesmo senão quase uma prova? Cada uma das ranhas visitas contribuía para estabelecer a outra. Ele tinha um sentimento diferente; mas tinha também, me apresso a acrescentar, um desejo inequívoco de não tornar isso uma questão ou, como dizem, um motivo de briga. Eu podia acreditar no que quisesse — mais ainda porque toda a história era de algum modo um mistério produzido por mim. Era um acontecimento da minha história, um enigma da minha consciência, não da dele; portanto ele aceitaria qualquer versão a respeito disso que me parecesse conveniente. Ambos, em todo caso, tínhamos outras coisas com que lidar; estávamos ocupados com os preparativos para o nosso casamento.

   Os meus preparativos eram, com certeza, urgentes, mas descobri, à medida que os dias se passavam, que acreditar no que eu "queria" era acreditar naquilo de que eu estava intimamente mais e mais convencida. Descobri também que eu não gostava tanto dessa hipótese quanto parecia, ou que o prazer, de todo modo, estava longe de ser a causa da minha convicção. Minha obsessão, tal como posso na verdade chamá-la, e tal como comecei a perceber, se recusava a ser posta de lado, ao contrário do que eu tinha esperado, por minha idéia da importância dos deveres que tinha pela frente. Se eu tinha muitas coisas para fazer, tinha mais coisas ainda em que pensar, e chegou o momento em que minhas ocupações foram gravemente ameaçadas por meus pensamentos. Vejo tudo isso agora, sinto isso, revivo isso. É terrivelmente vazio de alegria, está cheio na verdade de uma superabundância de amargura; e assim mesmo preciso fazer justiça a mim mesma — eu não podia ser diferente do que fui. As mesmas impressões estranhas, se eu as tivesse de sentir de novo, produziriam a mesma angústia profunda, as mesmas dúvidas agudas, as mesmas certezas mais agudas. Oh, é sempre tudo mais fácil de lembrar do que de escrever, mas mesmo que eu pudesse retraçar o assunto hora a hora, mesmo que eu pudesse achar termos para o inexprimível, a feiúra e a dor ainda rapidamente deteriam minha mão. Deixem-me então anotar bem simples e brevemente que, uma semana antes do dia do nosso casamento, três semanas após a morte dela, eu me tornei plenamente consciente de que eu tinha algo muito sério para encarar e que, se eu devia me dar a esse esforço, eu precisava fazê-lo naquele lugar e antes que passasse uma hora. Meu ciúme inextinguível — essa era a máscara de Medusa. Não tinha morrido com sua morte; tinha sobrevivido lividamente, e era alimentado por suspeitas nefandas. Elas seriam nefandas hoje, isto é, se eu não tivesse sentido necessidade aguda de expressá-las naquela ocasião. Essa necessidade se apossou de mim — para me salvar, ao que parecia, do destino. Quando afinal essa necessidade se apossou de mim, eu vi — na urgência do caso, nas poucas horas que faltavam e no intervalo que se reduzia — somente uma questão, a de absoluta urgência e franqueza. Eu podia pelo menos não fazer a ele a afronta de atrasar mais um dia; eu podia pelo menos tratar minha dificuldade como delicada demais para um subterfúgio. Portanto, com bastante calma, mas de todo jeito abrupta e terrivelmente, eu mencionei a questão a ele, de que precisávamos reconsiderar nossa situação e reconhecer que ela tinha mudado completamente.

   Ele me olhou corajosamente: "Como, mudou?".

   "Outra pessoa está entre nós."

   Ele hesitou um momento. "Não vou fingir que não sei a quem você se refere." Ele sorriu com piedade da minha loucura, mas queria ser bondoso. "Uma mulher morta e enterrada!"

   "Ela está enterrada, mas não está morta. Está morta para o mundo — está morta para mim. Mas não está morta para você."

   "Você está se apegando ao passado das visões diferentes que temos da aparição dela naquela noite?"

   "Não", respondi, "não estou me apegando a nada do passado. Não tenho necessidade disso. Tenho mais do que o suficiente no que está diante de mim."

   "E, por favor, querida, o que é?"

   "Você está completamente mudado."

   "Por aquele absurdo?", ele riu.

   "Não tanto por aquele absurdo, mas por outros absurdos que se seguiram."

   "E quais absurdos seriam esses?"

Tínhamos ficado olhando um para o outro bastante firmemente, com olhos que não piscavam; mas os seus olhos tinham uma luz tênue e estranha, e minha certeza triunfou diante de sua perceptível palidez. "Você realmente pretende", perguntei, "fingir que não sabe quais são esses absurdos?"

   "Minha filha", respondeu, "você me descreve de uma maneira muito esquemática!"

   Fiquei meditando um momento. "Se pode ficar bem embaraçado para não terminar direito o retrato! Mas, desse ponto de vista — e desde o início —, o que foi mais embaraçoso do que a sua idiossincrasia?"

   Ele foi extremamente vago. "Minha idiossincrasia?"

   "O seu poder notório, seu poder peculiar."

   Ele deu pesadamente de ombros, com impaciência, com um grunhido de desdém excessivo. "Oh, meu poder peculiar!"

   "A sua acessibilidade a formas de vida", continuei, friamente, "seu controle sobre impressões, aparições, contatos proibidos — para nosso bem ou mal — para o resto de nós. Isso foi originalmente uma parte do interesse profundo que você me inspirou — uma das razões pelas quais eu estava encantada. Eu tinha realmente orgulho de conhecer você. Era uma distinção magnífica; é ainda uma distinção magnífica. Mas é claro que eu não tinha naquela época nenhuma previsão sobre a maneira que essa sua acessibilidade a formas de vida iria funcionar agora; e mesmo que tivesse sido esse o caso, eu não saberia nada do modo extraordinário como a ação disso iria me afetar."

   "Ao que, em nome de Deus", ele perguntou, apelando, "você, de modo tão fantástico, está aludindo?" Então, enquanto permaneci em silêncio, procurando um tom para meu ataque, ele continuou: "Como diabo isso funciona? E como diabo você é afetada?".

   "Ela não encontrou você durante cinco anos", eu disse, "mas agora ela sempre encontra você. Você está fingindo!"

   "Fingindo?" Ele começou a passar de pálido para enrubescido.

   "Você a vê — você a vê; você a vê toda noite!" Ele soltou uma grande gargalhada, mas não era genuína. "Ela aparece para você como apareceu naquela noite", afirmei. "Tendo experimentado isso, ela descobriu que gostava!" Pude, com a ajuda de Deus, falar sem paixão cega ou violência comum, mas essas foram as palavras exatas — e me pareceram então muito longe de "esquemáticas" — que pronunciei. Ele se virou em meio ao riso, batendo palmas para minha loucura, mas num instante me encarou de novo com uma mudança de expressão que me espantou. "Você ousa negar", perguntei, "que você a vê habitualmente?"

   Ele adotou a linha da indulgência, de caminhar rumo a mim e de bondosamente tentar melhorar o meu humor. De todo modo, para meu espanto, ele disse, de súbito: "Bem, querida, e qual é o problema se a vejo?".

   "É seu direito natural; pertence à sua constituição e à sua sorte maravilhosa, se bem que talvez não tão invejável. Mas você vai facilmente entender que isso nos separa. Eu libero você incondicionalmente."

   "Me libera?"

   "Você precisa escolher entre ela e mim."

   Ele me encarou duramente. "Entendo." Então se afastou um tanto, como que assimilando o que eu dissera e pensando como podia tratar isso da melhor maneira possível. No fim ele se virou de novo para mim. "Como diabo você sabe uma coisa tão absolutamente íntima?"

   "Você quer dizer que eu não poderia saber porque você tentou tão firmemente escondê-la de mim? Isso é absolutamente íntimo, e pode acreditar que nunca o trairei. Você fez o seu melhor, cumpriu o seu papel, você se comportou, pobre querido!, leal e admiravelmente. Portanto eu o observei em silêncio, cumprindo também o meu papel; notei toda parada súbita da sua voz, toda ausência dos seus olhos, todo esforço em sua mão indiferente: esperei até estar absolutamente segura e miseravelmente infeliz. Como você pode esconder isso, quando você está tão abjetamente apaixonado por ela, quando você está doente quase até a morte com a alegria que ela lhe dá?" Impedi o rápido protesto dele com um gesto meu mais rápido. "Você a ama como nunca amou e, paixão por paixão, ela devolve com inteira reciprocidade! Ela manda em você, ela guarda você, ela o tem por inteiro! Uma mulher, num caso como o meu, adivinha, sente e vê; ela não é uma idiota ue tem de ser credulamente informada. Você se aproxima de mim mecanicamente, por obrigação, com os restos de sua ternura e o que resta de sua vida. Posso renunciar a você, mas não posso partilhá-lo com outra; o melhor de você é dela; eu sei que é e livremente dou você a ela para sempre!"

   Ele argumentou com bravura, mas a coisa não podia ser remendada; repetiu sua negativa, retratou sua admissão de que a via, ridicularizou minha acusação — permiti livremente a ele a indefensável extravagância de tudo isso. Não fingi por nenhum momento que estávamos falando de coisas comuns; não fingi por nenhum momento que ele e ela eram pessoas comuns. Veja, se eles fossem pessoas comuns, como eu poderia ter me preocupado com eles? Eles gozaram de uma rara extensão do ser e me apanharam em seu vôo; só que eu não podia respirar nesse ar e rapidamente pedi para descer. Tudo nos fatos era monstruoso, e, mais do que tudo, era monstruosa a minha percepção desses fatos; a única coisa natural e verdadeira era eu ter de agir segundo essa percepção. Senti depois que eu tinha falado assim que minha certeza era completa; nada estava faltando além da visão do efeito que minhas palavras produziam sobre ele. Ele disfarçou realmente o efeito numa nuvem de trivialidade, um distanciamento do problema que o fez ganhar tempo e encobriu o seu recuo. Pôs em dúvida minha sinceridade, minha sanidade mental, minha humanidade, e isso, naturalmente, agravou o nosso afastamento e confirmou nosso rompimento. Fez tudo, em poucas palavras, menos me convencer de que eu estava errada ou de que ele estava infeliz; nos separamos e eu o deixei à sua comunhão inconcebível.

   Ele nunca se casou, e eu também não. Quando, seis anos depois, na solidão e no silêncio, ouvi falar de sua morte, eu a saudei como uma contribuição direta para a minha teoria. Foi uma morte súbita, nunca se soube direito a causa, cercada por circunstâncias nas quais — pois, oh, eu as detalhei todas! — li claramente uma intenção, a marca da sua própria mão oculta. Foi o resultado de uma prolongada necessidade, de um desejo insaciável. Para dizer em termos exatos, foi uma resposta a um chamado irresistível.



   Nas "ghost stories" de Henry James (1843-1916), o sobrenatural é invisível (a presença do mal que está além de qualquer imaginação, como no famoso "A outra volta do parafuso") ou quase (o inapreensível desdobramento de si, em "The jolly comer"). Em todo caso, não é a imagem visual do fantasma que importa, mas o nó das relações humanas a partir do qual o fantasma è invocado — ou que o fantasma contribui para amarrar. Uma história de relações mundanas impalpáveis como em "Os amigos dos amigos" (ou talvez fosse melhor "Amigos de amigos") está cheia de vibrações: cada ser vivo projeta fantasmas, o limite entre pessoas de carne e osso e emanações psíquicas é frágil; o ponto de partida "parapsicológico" se duplica e multiplica. Como muitas vezes ocorre em James, a personagem aparentemente neutra que está por trás da "voz narrante" tem um papel decisivo justamente naquilo que não diz: aqui, tal como em "A outra volta do parafuso", trata-se de uma voz de mulher, que desta vez não esconde sua paixão dominante — o ciúme — nem sua tendência à intriga.