quarta-feira, 14 de julho de 2021

O alguazil endemonhiado. Francisco de Quevedo



Foi o caso que entrei em São Paulo à procura do licenciado Calabrês (1), clérigo de barrete de três bicos feito a modo de meio celamim; ourelo por cinto, e não muito apertado; olhos perscrutadores, vivos e buliçosos; punhos de Corinto, assomo de camisa fazendo às vezes de colarinho, rosário na mão, disciplina à cinta, sapato grande e tosco, e orelha surda, mangas em ruínas e lavores de rasgões, os braços em jarra e as mãos em garfo; fala entre penitente e disciplinante, o pescoço desabado sobre o ombro, como o bom atirador que aponta ao alvo (sobretudo se é alvo do México ou de Segóvia); os olhos baixos e mui cravados no chão, conto aquele que cobiçoso, nele procura quartos (2), e os pensamentos tiples (3); a tez a espaços enrugada e a espaços embaciada; muito vagaroso na missa e rápido na mesa; grande caçador de diabos tanto que sustentava o corpo de puros espíritos. Metia-se a ensalmar, fazendo, ao benzer, umas cruzes maiores que as dos malcasados. Trazia na capa remendos sobre a
parte perfeita; fazia do desalinho santidade, contava revelações, e, se se descuidavam em crê-lo, obrava milagres, e tais que me cansou.

Era este, senhor, um daqueles a quem Cristo chamou sepulcros caiados, por brancos e cheios de molduras, e por dentro podridão e vermes; fingindo no exterior honestidade, e sendo no íntimo da alma dissoluto e de mui tolerante e rasgada consciência.

Era, em bom romance (4), hipócrita, embuste vivo, mentira com alma e fábula com voz.

 Encontrei-o na sacristia a sós com um homem que, atadas as mãos ao cíngulo,a estola posta e solta a língua, descompostamente dava vozes com frenéticos movimentos.

- Que é isto? - perguntei-lhe com espanto.

- Um homem endemoninhado - disse, embebido em seu flagellum demonium (5).

E neste ponto respondeu o espírito que nele usurpava a possessão de Deus:

- Não é homem, e sim alguazil. Vede lá como falais, que pela pergunta de um e resposta do outro se nota que sabeis pouco. E, assim, se há de advertir que os diabos nos alguazis estamos por força e de má vontade, pelo quê, se me quereis tratar com justeza, deveis chamar-me a mim demônio alguazilado, e não a este alguazil endemoninhado; e entendeis-vos melhor, os homens, conosco, indefinidamente melhor do que com eles, pois nós fugimos da cruz e eles a tomam por instrumento para a prática do mal. Quem poderá negar que demônios e alguazis não temos um mesmo ofício?

Posto que nosso cárcere é pior, nossa prisão perdurável, bem feitas as contas nós procuramos condenar, e os alguazis também; para nós, é bom que haja no mundo vícios e pecados, e os alguazis o desejam e procuram com maior afinco, pois disso hão mister para seu sustento, e nós para nossa companhia. E é muito mais de reprovar este ofício nos alguazis do que em nós, pois eles fazem mal a homens como eles e aos de seu gênero, e nós não, que somos anjos, embora sem graça. Além disto, os demônios o fomos por querermos ser como Deus, e os alguazis são alguazis por quererem ser menos que todos. Assim, demasiado te cansas, à padre, em adornar de relíquias a este, pois não há santo que, caindo-lhe nas mãos, não fique nelas. Persuade-te de que alguazis e nós, somos todos de uma ordem; com a diferença de que os alguazis são diabos calçados, e nós diabos recoletos, que levamos áspera vida no Inferno.

Espantaram-me as sutilezas do Diabo; enfadou-se Calabrês, resolveu os seus esconjures, quis fazê-lo calar e não pôde, e ao deitar-lhe água benta às costas começou ele a fugir e a dar vozes, dizendo:

- Clérigo, olha que não dá estas demonstrações o alguazil por ela ser benta, mas por ser água; não há coisa que tanto aborreçam os alguazis, pois até, para não vê-la em seu nome, chamando-se propriamente aguazis, encaixaram um L no meio, passando a chamar-se alguazis (6). Eu não trago meirinhos, nem delatores, nem escrivão; tirem-me a tara como ao carvão, e faça-se confronto entre mim
e o gatuno.

E, para que acabeis de saber quem são e quão pouco têm de cristãos, adverti que, de poucos nomes que do tempo dos mouros ficaram na Espanha, um foi o deles, que, chamando-se antes meirinhos, terminaram por lhes chamar alguazis, que alguazil é palavra mourisca; e bem fazem, que se ajusta o nome à vida e ela aos seus feitos.

- É coisa muito insólita ouvi-lo - disse furioso o licenciado -, e, se damos licença a este embusteiro, dirá outras mil velhacarias e muito mal da justiça, porque ela corrige o mundo e lhe tira, com seu zelo e diligência, as almas que ele te negociadas.

- Não o faço por isso - replicou o Diabo -, mas porque é teu inimigo o que o é do teu ofício; e tem piedade de mim e tira-me do corpo deste alguazil, pois que sou demônio de prendas e qualidades, e depois muito perderei no Inferno por haver estado por cá em más companhias.

- Tirar-te-ei hoje - disse Calabrês -, de pena desse homem a quem por
momentos aporreias e maltratas; que tuas culpas não merecem piedade, nem a ela faz jus a tua obstinação.

- Pede-me alvíssaras - respondeu o Diabo -, se me tiras hoje; e considera que estes golpes que lhe dou e a aflição que lhe causo é tão-só porque eu e sua alma disputamos aqui sobre quem há de estar em melhor lugar, e vivemos a discutir qual dos dois é mais diabo.

Acabou estas palavras com uma grande risada; vexou-se o bom do meu esconjurador, e determinou-se a emudecê-lo.

Eu, que havia começado a gostar das sutilezas do Diabo, roguei-lhe que, pois estávamos a sós, e ele, como meu confessor, sabia as minhas coisas secretas, e eu, como amigo, as suas, que o deixasse falar, obrigando-o somente a que não maltratasse o corpo do alguazil. Assim se fez, e então disse ele:

- Onde há poetas, temos, os diabos, parentes na corte, e todos vós nos deveis pelo que no Inferno por vós sofremos; que tendes achado tão fácil maneira de vos condenardes, que ferve todo ele em poetas. E fizemos uma ampliação em seu dístico, e são tantos que nos votos e eleições competem com os escrivães; e não há coisa tão engraçada
como o primeiro ano do noviciado de um poeta em torturas, pois há quem lhe leve, de cá, cartas de empenho para ministros, e acredite que vai topar com Radamanto (7), e pergunte pelo Cérbero (8) e Aqueronte (9), e convencido fique de que lhos escondem.


- Que gêneros de torturas dão aos poetas? - indaguei.

- Muitas - disse ele - e apropriadas. Uns se atormentam ouvindo louvar as obras de outros, e para a maioria o castigo é limpá-los. Há tal poeta que tem mil anos de Inferno e não deixa de ler umas endechinhas que fez aos ciúmes; outros verás, em outra parte, espancarem-se e darem-se tiçoadas, na dúvida sobre se hão de dizer
face ou cara. Este, para achar um consoante (10), não há cerro no Inferno em que não tenha rolado a morder as unhas. Porém os que mais sofrem, pelas muitas maranhas que fizeram, e pior lugar têm, são alguns poetas de comédias, pelas muitas rainhas a quem fizeram adúlteras, as infantas de Bretanha a quem desonraram, os casamentos
desiguais que realizaram nos fins das comédias, e as pauladas que deram em muitos homens honrados ao cabo dos entremezes. Mas é de saber que os poetas de comédias não estão entre os demais, porém, porque tratam de fazer enredos e maranhas, se incluem entre os procuradores e solicitadores, gente que só trata disso. E no Inferno
se acham todos alojados com tal ordem que um artilheiro que lá baixou outro dia, querendo que o pusessem entre os homens de guerra, - como, ao perguntarem-lhe que ofício tivera no mundo, dissesse que era dar tiros, foi remetido ao quartel dos escrivões, pois são os que maiores os dão neste mundo (11). Um alfaiate, porque disse que vivera de cortar vestidos, foi aposentado com os maldizentes. Um cego, que pretendeu encaixar-se com os poetas, foi levado ao grupo dos namorados, por serem-no todos. Outro, que disse que enterrava defuntos, foi hospedado com os pasteleiros. Os que vêm por ser loucos, pomo-los com os astrólogos, e os mentecaptos, com os alquimistas. Um veio por umas mortes, e o mandamos alojar com os médicos. Os mercadores que se condenam por mercar estão com Judas. Os maus ministros, pelo que pilharam,
acomodamo-los com o mau ladrão. Os néscios estão com os verdugos. E um aguadeiro que disse ter vendido água fria foi levado com os taberneiros.
Chegou há três dias um trapaceiro, e disse que se condenava por ter vendido gato por lebre, e pusemo-lo no mesmo nível que os estalajadeiros, que dão o mesmo. Enfim, todo o Inferno está dividido por esta ordem e maneira.

- Ouvi-te dizer há pouco dos namorados, e, por ser coisa que a mim me toca, gostaria de saber se há muitos por lá.

- Mancha é a dos namorados - respondeu - que toma tudo, porque todos o são de si mesmos; alguns de seus dinheiros, outros de suas palavras, outros de suas obras e alguns das mulheres. E destes últimos há menos que de todos no Inferno, porque as mulheres são tais que com ruindades, maus-tratos e piores correspondências dão
aos homens cada dia motivos de arrependimento. Como digo, destes há poucos, sentido normal no primeiro caso, em relação ao artilheiro, e na acepção figurada de fazer trapaças, furtos, no segundo caso, em relação aos escrivães, porém bons, e de bom humor, se isto lá se permitisse. Alguns há que com zelos e esperanças, amortalhados em desejos, vão correndo para o Inferno, sem saber como nem quando nem de que maneira. Há amantes alacaiados que ardem cheios de laços; outros crinitos à feição de cometas, cheios de cabelos; e outros que só com os bilhetes que trazem de suas damas poupam vinte anos de lenha à fábrica da casa, abrasando-se lardeados neles. São para ver os amantes de monjas, bocas abertas e mãos estendidas, condenados por falar sem tocar nenhuma peça, feitos bufões dos outros, enfiando e puxando os dedos através de umas grades, sempre em vésperas do
contentamento, sem verem jamais o dia, e só com o título de pretendentes a Anticristo. Logo a seu lado estão os que desejaram donzelas e se condenaram pelo beijo como Judas, conjeturando
sempre os gostos sem os poder descobrir. Atrás destes, em masmorra, estão os adúlteros: estes são os que melhor vivem e a quem mais se faz sofrer, pois outros lhes sustentam a cavalgadura e eles a desfrutam.

- Gente é essa - disse eu - cujos agravos e favores são todos do mesmo jeito.
- Abaixo, num aposento sujíssimo, cheio de mondaduras de ancinho (quero dizer, cornos), estão aqueles a quem por cá chamamos cornudos, gente que nem no Inferno perde a paciência; os quais, submetidos antes à prova da má esposa que tiveram, nada os espanta. Depois deles vêm os que se enamoram de velhas, todos atados com grilhões; que os diabos, de homens de tão mau gosto ainda não pensamos estar seguros; e, se não estivessem agrilhoados, nem Barrabás teria bem segura deles a traseira; e tais como somos, lhes parecemos brancos e ruivos. A primeira coisa que com estes se faz é condenar-lhes a luxúria e seus instrumentos à prisão perpétua. Mas,
deixando isto, quero dizer-vos que mui sentidos estamos das confusões que fazeis conosco, pintando-nos com garras, sem sermos aves de rapina; com caudas, havendo diabos rabões; com cornos, não sendo nós casados; e pouco barbados sempre, quando entre nós há diabos que podem ser ermitães e corregedores. Remediai isto, que
pouco há que para lá foi Jerônimo Bosco (12), e, perguntando-se-lhe por que havia feito de nós tantos guisados em suas fantasias, disse que porque jamais acreditara que havia demônios deveras. Outra coisa, e a que mais sentimos, é que, falando comumente, costumais dizer: "Olhem o diabo do alfaiate", ou "É o diabo esse alfaiatezinho"

A alfaiates nos comparais, que com eles damos lenha ao Inferno, e até nos fazemos rogados para recebê-los; que, a não ser a apólice de quinhentos, nunca passamos recibo, para não os deixar mal acostumados e para que não aleguem possessão; Quoniam consuetudo est altera lex (13), como têm possessão no furtar e desmanchar os prazeres, mostram-se agravados se não lhes abrimos as portas de par em par como se fossem de casa. Também nos queixamos de que não há coisa, por má que  seja, que não a deis ao Diabo; e basta que Vos enfadeis um pouco para dizerdes: "O Diabo te leve". Pois sabei que os que vão lá são mais do que os que trazemos; que nem de tudo fazemos caso. Dais ao Diabo um italiano, e não o leva o Diabo, porque há italianos que levariam ao próprio Diabo; e sabei que as mais das vezes dais ao Diabo o que ele já tem consigo, digo, nós temos.

- Há reis no Inferno? - perguntei-lhe eu. E ele satisfez à minha dúvida, dizendo:

- Todo o Inferno são figuras, e há muitas, porque o sumo poder, liberdade e mando lhes faz sair as virtudes do seu meio, e chegar os vícios ao seu extremo; e, vendo-se, na suma reverência de seus vassalos e com a grandeza, elevados a deuses, querem valer um ponto menos e parecê-lo; e têm muitos caminhos para se condenarem, e muitos que os ajudam; porque um se condena pela crueldade e, matando e destruindo os seus, é um gadanho coroado de vícios e uma peste real de seus reinos; outros se perdem pela cobiça, fazendo armazéns de suas vilas e cidades à força de grandes peitos que, em vez de nutrir, enfraquecem; e outros vão para o Inferno por
causa de terceiros e são vítimas do poder, fiando-se de infames ministros; e dá gosto vê-los penar, porque, como boçais no trabalho, a dor se lhes abranda com qualquer coisa. Só passam bem os reis, que, como gente honrada, nunca vêm sós, mas com uma cauda de dois ou três privados, e às vezes o intrometido; e trazem após si todo o reino, pois todos são governados por eles, posto que isso de privado e rei é mais penitência de que ofício, e mais carga do que prazer; nem há coisa tão atormentada como a orelha do príncipe e do privado, pois nunca a deixam pretendentes queixosos e aduladores, e esses tormentos os qualificam para o descanso. Em suma, os reis, muitos se vão para o Inferno pelo caminho real, e os mercadores pelo da prata.

- Quem te falou agora em mercadores? - disse Calabrês.

- Manjar é este que nos enfastiou e provocou indigestão, e ainda o
vomitamos; chegam lá aos milhares, condenando-se em castelhano e e algarismos. Mais almas nos deram Besançon e Placenza que Mafoma; e haveis de saber que em Espanha os mistérios das contas dos estrangeiros (14) são dolorosos para os milhõesque vêm das Indias, e que os canhões de suas plumas são de bateria contra as bolsas; e não há renda que, se eles a tomam entre as mãos, o Tejo de suas plumas e o Jarama de sua tinta não a afoguem. E, afinal, tornaram entre nós suspeito esse nome de assentos, que, como significa "traseiros", não sabemos quando falam ao negociante ou
quando ao sodomita. De homens que tais já houve um no Inferno que, vendo a lenha e fogo que se gasta, quis fazer monopólio do lume; e outro quis arrendar os tormentos, parecendo-lhe que com eles ganharia muito. Estes, conservamo-los lá junto aos juízes que cá
os permitiram.

- Então há por lá alguns juízes?

- Pois não! - disse o espírito. Os juízes são nossos faisães, nossos pratos de regalo, e a semente que mais proveito e fruto nos dá a nós diabos; porque, de cada juiz que semeamos, colhemos seis procuradores, dois relatores, seis solicitadores, quatro escrivães, cinco letrados e cinco mil negociantes, e isto cada dia. De cada escrivão colhemos vinte oficiais, de cada oficial trinta alguazis, de cada alguazil dez meirinhos; e, se o ano é fértil em trapaças, não há celeiros no Inferno onde recolher o fruto mau ministro.

- Também quererás dizer que não há justiça na Terra, ó tu, rebelde a Deus e sujeito a seus ministros?

- Certo que não há justiça! Pois nunca ouviste falar do caso de Astréia, que é a justiça, quando, fugindo da Terra, subiu ao Céu? (15) Ora, se o não sabes, eu to quero contar:
 Vieram à Terra a Verdade e a Justiça, à procura de com quem estar: uma não se sentiu a gosto por estar nua, nem a outra por ser rigorosa.
Erraram longo tempo assim, até que, movida pela necessidade, a Verdade foi morar com um mudo. A Justiça, desacomodada, vagou pela Terra implorando a todos; e, vendo que dela não faziam caso e lhe usurpavam o nome para honrar tiranias, deliberou fugir, volvendo ao Céu. Deixou as grandes cidades e cortes, e dirigiu-se às aldeias
de vilãos, onde por alguns dias, escondida em sua pobreza, hospedada foi pela Simplicidade, até que enviou contra ela precatórias a Malícia. Então fugiu inteiramente, e foi de casa em casa pedindo abrigo. Perguntavam todos quem era; e ela, que não
sabe mentir, dizia que era a Justiça. Respondiam-lhe todos: - "Justiça, mas não em minha casa; procure outra"; e, assim, não entrava em nenhuma; subiu ao Céu, e aqui mal deixou o rasto. Os homens, que isto viram, batizaram com o nome dela algumas varas que, além das cruzes, ardem lá muito bem, e cá só têm nome de justiça elas e os que as conduzem. E é de maneira que tornou a baixar em Cristo, depois, e
a justiça de cá a fez sua; porquanto há muitos destes em quem a vara furta mais que o ladrão com gazua e chave falsa e escada. E haveis de advertir que a cobiça dos homens tem feito instrumentos de furto todas as suas partes, sentidos e potências, que Deus lhes deu umas para viver e as outras para viver bem. Não furta a honra da donzela
com o desejo o namorado? Não furta a lei com a razão o letrado que lhe torce o sentido? Não furta com a memória o diplomata que nos leva o tempo? Não furta o amor com os olhos, o discreto com a boca, o poderoso com os braços, pois não medra quem não tem os seus; o valente com as mãos, o músico com os dedos, o cigano e o ladrão
de bolsas com as unhas, o médico com a morte, o boticário com a saúde, o astrólogo com o céu? E, afinal, cada um furta com uma parte ou membro. Só o alguazil furta com todo o corpo, pois espreita com os olhos, segue com os pés, agarra com as mãos e testemunha com a boca; e, por fim, são de tal sorte os alguazis que deles e de nós outros defende os homens a Santa Igreja romana.

- Admira-me - disse eu - ver que entre os ladrões não incluís as mulheres, que são gente de casa.

- Não me fales delas - respondeu -, que nos trazem enfadados e cansados; e, a não existirem tantas lá, não seria má habitação o Inferno; e muito daríamos para que o Inferno enviuvasse, que, como se urdem intrigas, e elas desde que morreu Medusa, a feiticeira, não praticam outra coisa, temo que haja alguma tão atrevida que queira provar sua habilidade com algum de nós, para ver se saberá dois
pontos mais. A despeito disso, uma coisa têm de bom as condenadas, pela qual se pode tratar com elas: como estão desesperadas, nada pedem.

- Quais as que se condenam mais, as feias ou as formosas?

- As feias - disse ele no mesmo instante - seis vezes mais; porque, como os pecados, para aborrecê-los, não é preciso mais que os cometer, e as formosas acham tentos que lhe satisfaçam o apetite carnal, fartam-se e arrependem-se; mas as feias, como não acham ninguém, para lá nos vão em jejum, e com a mesma fome implorando aos homens. E, desde que se usam olhinegras e de perfil aquilino, ferve o Inferno em brancas e ruivas, e em velhas mais que tudo, as quais, de inveja às moças, obstinadas expiram a grunhir. Outro dia levei eu uma de setenta anos, que comia argila e fazia exercício para impedir as opilações, e queixava-se de dor de dentes para que
se pensasse que os tinha; e, com ter já amortalhadas as fontes com o lençolbranco de suas cãs, e despida a fronte, fugia dos ratões e usava trajes de gala, pensando agradar-nos. Pusemo-la, por castigo, ao lado de um pisa-flores, desses que vão para o Inferno de sapatos brancos, com espiguilhas, informados de que lá é terra seca e sem lodos.

- Tudo isso está muito bem - disse-lhe eu. - Só queria saber se no Inferno há muitos pobres.

- Pobres? Que é isso? - replicou.
- O homem - disse eu - que não tem nada de quanto tem o mundo.
- Ora! Está claro que não! - disse o Diabo. - Se o que condena os homens é o que têm do mundo, e esses não têm nada, como hão de ser condenados?

Nesta parte os nossos livros estão em branco. E não vos espanteis, porque até diabos faltam aos pobres; e, assim, os deixamos; e às vezes mais diabos sois uns para outros do que nós mesmos.

Há diabo como um adulador, como um invejoso, como um amigo falso e como uma companhia má? Pois todos estes faltam ao pobre, a quem não adulam, nem invejam, que não tem amigo mau nem bom, nem o acompanha ninguém. Estes são os que verdadeiramente vivem bem e morrem melhor. Qual de vós sabe estimar  como todos eles o tempo e dar preço ao dia, sabendo que tudo que passou o tem a morte em seu poder, e governa o presente e aguarda todo o porvir?

- Quando o Diabo prega, o mundo se acaba. Pois, como sendo tu o pai damentira - disse Calabrês - dizes coisas que bastam a converter uma pedra?

- Como? - respondeu. - Para fazer-vos mal e que não possais dizer que faltou quem vo-lo dissesse. E advirta-se que em vossos olhos vejo muitas lágrimas de tristeza e poucas de arrependimento; e da maior parte delas se devem as graças ao pecado, que vos farta ou cansa, e não à vontade, que por mau o aborreça.

- Mentes - disse Calabrês -, que muitos santos e justos há hoje. E agora vejo que em tudo quanto disseste mentiste; e em castigo sairás hoje deste homem.

Fez os seus exorcismos, e, não podendo eu com ele, compeli-o a calar-se; mas, se um Diabo por si é mau, mudo é pior que o Diabo.
Leia isto V. Sa com curiosidade e atenção, e não olhe quem o disse; que Herodes profetizou, e pela boca de uma serpente de pedra sai um jato de água; na queixada de um leão há mel, e o salmo 
diz que às vezes recebemos salvação de nossos inimigos e da mão daqueles que nos detestam.






(1) O licenciado Calabrês existiu realmente e chamava-se Jenaro Andreini. De origem italiana, desempenhava as funções de capelão do Conde de Lemos, e granjeou tal fama de exorcista e conjurador que o Santo Ofício julgou necessário expulsá-lo da Espanha.
(2) quarto: antiga moeda espanhola.
(3) tiple: voz de soprano.

(4) romance: "língua românica" derivada do latim; no caso presente, o espanhol. Em bom romance: "em bom espanhol", "para falar claro".
(5) flagellum demonium: "o flagelo dos demônios".
(6) aguazis, alguazis. O jogo feito pelo Diabo com estas duas formas é compreensível em espanhol, onde alguacil veio depois de aguacil, que se arcaizou. Em português, ao contrário, aguazil é a forma preferida.
(7) Radomonto: um dos três juízes dos Infernos, na mitologia; filho de Júpiter e irmão de Minos.
(8) Cérbero: cão de três cabeças que guarda a porta do Inferno.
(9) Aqueronte: rio dos infernos; o Inferno.

(10) consoante: rima consoante; rima.
(11) Trocadilho com a expressão dar tiros (hacer tiros), empregando-a no
(12) Jerônimo Bosco (ou Jeronimus Bosch): pintor holandês da segunda metade do século XV, famoso por seus quadros de tendência moralizadora, em que pintou com realismo terrificante cenas infernais.
(13) "Porque o costume é uma segunda lei."
14) Alusâo aos banqueiros genoveses, de rapacidade notória.
15) Segundo antiga lenda, contada por Ovídio, foi Astréia, deusa da Justiça, a última divindade que abandonou a Terra depois de os costumes dos homens se terem corrompido.

Francisco Gómez de Quevedo y Villegas, o mais versátil escritor da literaturaespanhola do "Século de Ouro", foi poeta, polígrafo, político e um grande satírico, além de renovador da língua castelhana. Como poeta, em O Parnaso Espanhol, combateu o Gongorismo, embora nem sempre tenha se livrado de uma forma pessoal parodóxica
e rebuscada. Como ficcionista, deu continuidade à "novela pícara", com O Gatuno, entre outros. O Alguazil Endemoninhado ("alguazil" era um antigo funcionário administrativoe judicial, ou qualquer empregado da justiça) está presente em muitasantologias universais do conto de humor.

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