domingo, 4 de julho de 2021

Noite. Alice Munro



Quando eu era criança, parecia que nunca havia um parto, ou um apêndice supurado, ou qualquer outro evento físico mais drástico que não ocorresse ao mesmo tempo que uma nevasca. As estradas estariam fechadas, de qualquer modo não havia como encontrar um carro, e tinhase que atrelar uns cavalos para conseguir chegar ao hospital. A sorte era que houvesse cavalos por ali — no curso normal dos acontecimentos eles simplesmente não seriam mais usados, mas a guerra e o racionamento de gás tinham mudado tudo, ao menos por um tempo.
  Quando comecei a sentir dor na barriga, portanto, isso tinha que ser às onze da noite, e tinha que estar caindo uma nevasca, e como não estávamos com cavalos no estábulo naquele momento, tiveram que convocar a parelha dos vizinhos para me levar ao hospital. Um trajeto de não muito mais de dois quilômetros, mas mesmo assim uma aventura. 
 O médico estava esperando, e não foi surpresa para ninguém quando ele se preparou para tirar meu apêndice. Mais apêndices tinham que ser tirados naquela época? Eu sei que ainda acontece, e é necessário — eu até sei de uma pessoa que morreu porque isso não foi feito a tempo — mas pelo que lembro a operação era uma espécie de rito pelo qual bastante gente da minha idade teve que passar, não em grande número, mas não se tratava de algo assim tão inesperado, e talvez nem tão lamentável, porque significava férias da escola e dava certo status — a criança era destacada, brevemente, como alguém tocado pela asa da mortalidade, em um momento da vida em que isso podia ser uma vantagem.

  Então lá fiquei eu, sem apêndice, alguns dias olhando por uma janela de hospital para a neve melancolicamente peneirada pelas coníferas. Não suponho que tenha passado pela minha cabeça me perguntar como o meu pai iria pagar por essa distinção. (Acho que ele vendeu um terreno com árvores para derrubada, que tinha mantido quando se desfez da fazenda do pai. Ele teria preferido usá-lo para colocar armadilhas de caça, ou extrair seiva de bordo. Ou talvez ele sentisse uma nostalgia indizível.) 
Aí eu voltei para a escola, e tive o prazer de ser liberada da educação física por um período maior do que o necessário, e numa manhã de sábado quando eu e minha mãe estávamos a sós na cozinha ela me disse que o meu apêndice havia sido removido no hospital, como eu sabia, mas que não tinha sido a única coisa retirada. O médico tinha visto por bem tirá-lo já que estava ali, mas sua preocupação principal havia sido um nódulo. Um nódulo, disse a minha mãe, do tamanho de um ovo de peru. Mas não se preocupe, ela disse, está tudo bem agora. 
A ideia de um câncer nem me passou pela cabeça nem ela a mencionou. Eu não acho que hoje em dia possa haver uma revelação como essa sem algum tipo de pergunta, alguma sondagem sobre se é ou não é. 
Canceroso ou benigno — nós íamos querer saber imediatamente. A única maneira que encontro para explicar o fato de termos deixado de falar do assunto é que devia haver uma nuvem em torno dessa palavra como a nuvem em torno das menções ao sexo. Pior, até. Sexo era repulsivo mas devia ter alguma recompensa — e de fato nós sabíamos que tinha, apesar de as nossas mães não terem consciência disso —, enquanto a mera palavra câncer fazia você pensar em alguma sinistra criatura putrescente e fedorenta que você não ia querer olhar nem enquanto a tirava do caminho.
 Então eu não perguntei e não me disseram nada e só posso imaginar que era benigno ou foi eliminado com extrema competência, pois estou aqui hoje. E eu penso tão pouco nisso que durante toda a minha vida até aqui, quando preciso listar as minhas cirurgias, eu automaticamente digo ou escrevo apenas “Apêndice”. 
Essa conversa com a minha mãe provavelmente ocorreu no feriado da Páscoa, quando todas as nevascas e as montanhas cobertas teriam desaparecido e os riachos transbordavam, tomando conta de tudo que podiam alcançar, e o verão destemido começava a apontar no horizonte. Nosso clima não tinha delongas nem piedade. No calor de princípios de junho eu parei de ir às aulas, já tendo tirado notas que me livravam dos exames finais. 
Eu estava com boa aparência, fazia tarefas domésticas, lia livros como sempre, ninguém sabia que podia haver alguma coisa errada comigo. 
Agora eu tenho que descrever como se organizava o quarto em que dormíamos eu e a minha irmã. Era um quarto pequeno que não podia acomodar duas camas de solteiro lado a lado, então a solução era um beliche, com uma escadinha disposta de modo que quem estivesse dormindo na cama de cima pudesse subir por ela. Era eu. Quando eu era mais nova e dada a provocações, eu erguia o cantinho do meu colchão fino e ameaçava cuspir na minha irmã mais nova deitada indefesa na cama de baixo. Claro que a minha irmã — o nome dela era Catherine — não ficava de fato indefesa. Ela podia se esconder embaixo das cobertas, mas o meu joguinho era ficar olhando até que a falta de ar ou a curiosidade a tirasse dali, e naquele momento cuspir ou fingir direitinho que cuspia no seu rosto descoberto, o que a enfurecia. 
 Eu estava bem grandinha para essas bobagens, certamente bem grandinha nessa época. Minha irmã tinha nove anos quando eu estava com catorze. A relação entre nós era sempre instável. Quando eu não estava atormentando a Catherine, provocando-a de algum jeito imbecil, eu assumia o papel de sofisticada conselheira ou narradora arrepiante. Eu vestia a minha irmã com alguma das roupas velhas que tinham sido guardadas no baú do enxoval de minha mãe, por serem finas demais para cortar e fazer colchas de retalhos e fora de moda demais para alguém usálas. Eu passava nela o ruge velho e endurecido da minha mãe e um pouco de pó de arroz e lhe dizia como ela estava linda. 
 Ela era linda, sem a menor dúvida, embora o jeito como eu a maquiava a deixasse com a aparência de uma estranha boneca estrangeira. Não quero dizer que tinha total controle sobre ela, nem que nossas vidas estavam constantemente interligadas. Ela tinha os seus próprios amigos, suas próprias brincadeiras. Estas tendiam mais para a domesticidade que para o glamour. Levava bonecas para passear em seus carrinhos de bebê, ou às vezes vestia gatinhos e saía com eles para passear no lugar das bonecas, sempre desesperados para escapar. 
 Também havia brincadeiras em que alguém era professor e podia dar tapas no pulso dos outros e fazê-los fingirem chorar, por diversas infrações e tolices. 
  No mês de junho, como eu disse, eu estava livre da escola e fiquei por conta própria, como não me lembro de ter ficado, não naquele grau, em qualquer outro momento da minha infância. 
 Eu fazia algumas tarefas domésticas, mas a minha mãe devia estar bem de saúde, ainda, para cuidar de quase todo o trabalho. Ou talvez nós simplesmente estivéssemos com dinheiro naquela época para pagar o que ela — a minha mãe — chamaria de empregada, embora todo mundo dissesse que tinha uma moça. 
 Eu não lembro, de qualquer maneira, de ter que enfrentar nenhum dos trabalhos que se acumularam sobre mim em verões posteriores, quando lutei com alguma disposição para manter a decência da nossa casa.
  Parece que o misterioso ovo de peru tinha conferido a mim uma espécie de status de inválida, de modo que eu podia passar parte do meu tempo andando por ali como uma visita. Ainda que não perseguindo brancas nuvens. Ninguém na nossa família teria o direito de fazer isso. Era tudo interno — a inutilidade e a estranheza que eu sentia. E não era uma inutilidade contínua também. Eu me lembro de me agachar para desbastar as folhas das cenourinhas como a gente tinha que fazer toda primavera, para a raiz poder crescer até um tamanho razoável para ser comida. Deve ter sido só que não era todo momento do dia que era preenchido com tarefas, como em verões de antes e de depois. 

Então talvez tenha sido esse o motivo de eu ter começado a ter dificuldade para dormir. 

De início, eu acho, isso significava ficar acordada quem sabe até cerca de meia-noite e me espantar com quanto estava desperta, o resto da casa dormindo. Eu teria lido, e me cansado como sempre, e apagado a luz e esperado. Ninguém teria gritado antes, dizendo para eu apagar a luz e ir dormir. Pela primeira vez na vida (e isso também deve ter sido sinal de um status especial) eu podia decidir sozinha uma coisa como essa. 
 Demorava um pouco para a casa abandonar a luz do dia e as lâmpadas acesas do fim da noite. Deixando para trás o alarido das coisas que tinham que ser feitas, penduradas, acabadas, ela se tornava um lugar mais estranho onde as pessoas e o trabalho que lhes ditava as vidas desapareciam, o emprego que tinham para tudo à sua volta desaparecia, toda a mobília se recolhia a si própria e não existia mais por causa da atenção de alguém. Alguém podia pensar que se tratava de uma libertação. De início, talvez fosse. A liberdade. A estranheza. Mas à medida que a minha incapacidade de pegar no sono se prolongava, e à medida que ela finalmente se instalava de vez até a aurora, eu ia ficando cada vez mais incomodada. 
 Eu comecei a recitar versinhos, e aí poesia de verdade, primeiro para me fazer adormecer mas aí quase que involuntariamente. A atividade parecia rir de mim. Eu ria de mim mesma, enquanto as palavras viravam disparates, viravam a fala aleatória mais tola. Eu não era a mesma. Eu tinha ouvido isso sendo dito de várias pessoas, a vida toda, sem pensar no que podia significar. 

Então quem você pensa que é, hein? Eu tinha ouvido isso também, sem ligar à frase nenhuma ameaça real, considerando-a apenas uma espécie de zombaria rotineira. Pense duas vezes. A essa altura não era o sono que eu buscava. Eu sabia que o mero sono não era uma probabilidade. Talvez nem fosse desejável. Alguma coisa estava tomando conta de mim e era problema meu, e esperança minha, me defender dela. Eu tinha a noção de que devia fazer isso, mas só muito tenuemente, ao que parecia. Fosse o que fosse, aquilo estava tentando me mandar fazer coisas, não exatamente por qualquer motivo, mas só para ver se esses atos eram possíveis. 
 Estava me informando de que motivos não eram necessários. Só era necessário ceder. Que coisa mais estranha. Não por vingança, ou por qualquer razão normal, mas só porque você tinha pensado numa coisa. E eu de fato pensava. Quanto mais espantava aquela ideia, mais ela voltava. 
 Não era vingança, nem ódio — como eu disse, não havia razão, a não ser que algo como uma ideia profunda e totalmente fria que mal era uma ânsia, era mais uma contemplação, podia tomar posse de mim. Eu não devia nem pensar naquilo, mas o fato é que pensava. A ideia estava ali e balançava na minha cabeça. A ideia de que eu podia estrangular a minha irmã mais nova, que dormia na cama embaixo da minha e que eu amava mais do que qualquer pessoa no mundo. Eu podia fazer isso não por ciúme, por maldade, ou por raiva, mas por loucura, que podia estar deitada ali bem do meu lado durante a noite. Não uma loucura incontrolável, também, mas algo que podia ser quase provocante. Uma sugestão preguiçosa, insinuante, meio letárgica que parecia ter estado à espera por muito tempo. 

Ela podia estar dizendo por que não. Por que não tentar o pior? O pior. Aqui no lugar mais familiar de todos, o quarto onde tínhamos dormido a vida toda e nos considerado completamente seguras. Eu podia fazer isso por nenhum motivo que eu ou alguém pudesse compreender, exceto o de que eu não podia evitar. O que eu precisava era levantar, sair daquele quarto e da casa. Eu desci os degraus da escadinha e nem lancei um olhar para a minha irmã ali onde ela dormia. 

 Aí desci em silêncio a escada da casa, ninguém se mexia, e entrei na cozinha onde tudo era tão familiar para mim que eu podia andar sem acender a luz. A porta da cozinha não estava trancada de verdade — eu não sei nem se nós tínhamos uma chave. Uma cadeira estava encostada logo abaixo da maçaneta de modo que alguém que tentasse entrar faria um barulhão. Uma lenta e cuidadosa remoção da cadeira era algo que se podia fazer sem qualquer ruído. Depois da primeira noite eu conseguia cumprir esses atos sem vacilar, de modo que podia estar fora, ao que parecia, em questão de poucos segundos. Claro que não havia postes de luz — nós estávamos longe demais da cidade. Tudo era maior. As árvores em volta da casa eram sempre chamadas pelo nome — a faia, o olmo, o carvalho, os bordos sempre mencionados no plural e sem distinções entre eles, porque ϐicavam todos juntos. Agora eram todos intensamente negros. E também o lilás branco (agora já sem flores) e o roxo — sempre chamados de árvores e não de arbustos porque tinham crescido demais. Os gramados da frente e dos lados da casa eram bem transitáveis porque eu mesma os tinha aparado com a ideia de nos dar certa respeitabilidade urbana. O lado leste da nossa casa e o lado oeste davam para dois mundos diferentes, ou assim me parecia. O lado leste era o lado da cidade, muito embora não fosse possível ver cidade alguma. A nem três quilômetros dali, havia casas enfileiradas, com postes de luz e água encanada. E apesar de eu ter dito que não era possível ver nada disso, a bem da verdade não tenho certeza se, olhando ϐixamente por um tempo, não dava para perceber um leve brilho. Para oeste, a longa curva do rio e os campos e as árvores e os crepúsculos não tinham o que os interrompesse. 
Nada a ver com pessoas, na minha cabeça, ou com a vida comum, jamais. Eu andava para cá e para lá, primeiro perto da casa e em seguida me arriscando aqui e ali à medida que ganhava confiança nos meus olhos e podia contar que não ia trombar com a alavanca da bomba d’água ou a plataforma que sustentava o varal. Os pássaros começavam a se agitar, e aí a cantar — como se cada um tivesse pensado nisso por si só, lá no alto das árvores. Eles acordavam bem mais cedo do que eu teria considerado possível. Mas logo depois desses cantos precocíssimos, havia certo clarão no céu. E de repente eu me via caindo de sono. Voltava para casa, onde de repente havia escuridão por todo lado, e muito decente, cuidadosa e silenciosamente, punha a cadeira inclinada sob a maçaneta, e subia sem fazer barulho, lidando com portas e degraus com a necessária cautela, apesar de já parecer estar semiadormecida. 
Eu caía no travesseiro e acordava tarde — tarde lá em casa era algo em torno das oito horas. Eu me lembrava de tudo quando acordava, mas era tão absurdo — a parte ruim era de fato tão absurda — que eu me livrava daquilo com bastante facilidade. 

O meu irmão e a minha irmã já tinham ido para a aula na escola pública, mas os pratos deles ainda estavam na mesa, restinhos de cereal de arroz boiando no excesso de leite. Absurdo. 
Quando a minha irmã voltava da escola a gente se balançava na rede, uma em cada ponta. Era naquela rede que eu passava boa parte do dia, o que possivelmente explicava o fato de eu não conseguir dormir à noite. 
 E como eu não falava das minhas dificuldades noturnas, ninguém vinha com a simples informação de que era melhor eu me mexer mais durante o dia.
 Os meus problemas voltavam com a noite, claro. Os demônios tomavam posse de mim novamente. Eu já sabia que era melhor levantar de uma vez e sair da cama sem querer fingir que as coisas iam melhorar e que eu ia de fato pegar no sono se me esforçasse o suficiente. 
 Eu caminhava para fora da casa tão cautelosamente como antes. Conseguia me deslocar com mais facilidade; até a parte de dentro dos cômodos foi ficando mais visível para mim e no entanto mais estranha.  Conseguia discernir o teto de lambris da cozinha instalado quando a casa foi construída talvez cem anos antes, e a esquadria da janela norte parcialmente mastigada por um cachorro que tinha ficado trancado do lado de dentro, uma noite bem antes de eu nascer. Eu lembrava o que tinha esquecido por completo — que eu tinha uma caixinha de areia ali, colocada onde a minha mãe pudesse ficar me olhando por aquela janela norte. Um grande arbusto de buquê-de-noiva estava em flor ali agora e mal se podia ver alguma coisa da janela. A parede leste da cozinha não tinha janelas, mas tinha uma porta que dava para uma varandinha onde a gente ficava para pendurar as peças recém-lavadas pesadas de umidade, e depois puxá-las para dentro quando estavam secas e com um cheiro fresco e congratulatório, de lençóis brancos a macacões escuros e pesados. Naquela varandinha eu às vezes detinha os meus passos noturnos. 
 Eu nunca me sentava, mas me deixava mais calma olhar para a cidade, talvez apenas para inalar a sua sanidade. Todas aquelas pessoas que iam acordar dali a pouco, que tinham seus locais de trabalho aos quais ir, suas portas a destrancar e garrafas de leite para levar para dentro de casa, suas ocupações. 
  Uma noite — eu não sei dizer se podia ser a vigésima ou a décima segunda ou só a oitava ou nona em que eu levantava e saía andando — eu fiquei com a impressão, tarde demais para andar mais rápido, de que tinha alguém logo ali. Tinha alguém esperando um pouco adiante e eu não podia fazer nada além de continuar caminhando. Eu seria apanhada se desse as costas, e seria pior assim do que ser confrontada.
  Quem era? Apenas o meu pai. Ele também estava sentado na varandinha olhando para a cidade e aquela improvável luz tênue. Estava inteiramente vestido — calças de trabalho escuras, quase a mesma coisa que um macacão, mas não exatamente, e uma camisa escura e grossa, e botas. Estava fumando um cigarro. Que ele mesmo enrolava, claro. Talvez a fumaça do cigarro tenha me alertado para outra presença, apesar de ser possível que naqueles dias o cheiro da fumaça de tabaco estivesse em todos os lugares, dentro e fora dos prédios, de modo que não havia como percebê-lo.
 Ele disse bom-dia, de um jeito que poderia ter parecido natural a não ser pelo fato de que não havia ali nada de natural. 
Nós não estávamos acostumados a essas saudações na nossa família. Não havia nisso nada de hostil — só achávamos desnecessário, acho, já que nos veríamos o dia inteiro. 
Eu disse bom-dia também. 
 E o dia devia estar mesmo se aproximando ou o meu pai não ia estar vestido para trabalhar daquele jeito. O céu podia estar ficando claro, mas ainda oculto atrás das árvores pesadas. Os pássaros cantando, também. 
 Eu tinha começado a ficar fora da cama até cada vez mais tarde, muito embora não conseguisse mais o mesmo alívio que conseguia antes. As possibilidades que um dia tinham habitado apenas o meu quarto, o beliche, estavam ocupando todos os cantos do mundo. Parando agora para pensar nisso, por que o meu pai não estava de macacão? Ele estava vestido como se tivesse alguma coisa para fazer na cidade, logo cedo. Eu não podia continuar andando, o ritmo todo dos meus passos tinha sido interrompido. 
“Está difícil dormir?”, ele disse. O meu impulso foi dizer não, mas aí eu pensei nas dificuldades de explicar que estava só andando à toa, então eu disse sim. 
Ele disse que aquilo acontecia muito no verão. 
“Você vai para a cama bem cansada e aí bem quando acha que vai cair no sono você vê que está bem acordada. Não é assim?”
 Eu disse que era. Eu sabia agora que ele não tinha me ouvido levantar e andar por ali só naquela noite. 
A pessoa cujo gado está por perto, cuja fonte de renda, por mais minguada, estava toda ali ao lado, e que guardava um revólver no criado-mudo, certamente iria despertar com o menor ruído nas escadas e com o giro mais suave de uma maçaneta. 
Eu não sei bem que conversa ele queria ter então, no que se refere a eu estar acordada. 
Ele parece ter declarado que ficar acordado era um estorvo, mas isso seria tudo?
  Eu certamente não pretendia lhe contar mais coisas. Se ele tivesse dado a mais leve indicação de que sabia que havia mais, se ele tivesse meramente insinuado que tinha ido até ali querendo ouvir, eu não acho que ele teria conseguido arrancar alguma coisa de mim.
 Eu tinha que quebrar o meu silêncio por vontade própria, dizendo que não conseguia dormir. Tinha que sair da cama e caminhar. Por que isso? Eu não sabia. Não eram pesadelos? Não. 
“Pergunta besta”, ele disse. “Você não ia sair da cama se fosse algum sonho bom.” 
 Ele me deixou esperar para continuar, não perguntou nada. 
Quis recuar, mas continuei falando. A verdade foi dita com uma mínima modificação.
 Quando falei da minha irmã mais nova eu disse que estava com medo de machucá-la. Eu achava que seria o suficiente, que ele ia saber direitinho o que eu queria dizer. 
“Estrangular”, eu disse então. Eu não podia me deter, afinal. 
Agora eu não podia desdizer, eu não podia voltar a ser a pessoa que era antes. O meu pai tinha ouvido. Ele tinha ouvido que eu me achava capaz de, sem qualquer motivo, estrangular a minha irmãzinha adormecida. 
Ele disse: “Ora”. Aí ele disse para eu não me preocupar. Ele disse: “A gente às vezes tem esses pensamentos”. Ele disse isso com toda a seriedade e sem qualquer tipo de medo ou surpresa alarmada. A gente tem esses pensamentos, ou esses medos se você quiser, mas não tem por que se preocupar de verdade com isso, não passa de um sonho, dá para dizer. Ele não disse, especificamente, que eu não corria o risco de fazer uma coisa dessas. Parecia mais estar dando por certo que aquilo não iria acontecer. 
Efeito do éter, ele disse. Do éter que te deram no hospital. Tem tanto sentido quanto um sonho. Não podia acontecer, assim como um meteoro não podia atingir a nossa casa (claro que podia, mas a probabilidade de isso acontecer o colocava na categoria do não podia). 
Mas ele não me culpou por pensar naquilo. Não se espantou comigo, foi o que ele disse. Havia outras coisas que ele podia ter dito. Ele podia ter me feito mais perguntas sobre minha atitude para com a minha irmã ou as minhas insatisfações com a minha vida em geral. Se isso acontecesse hoje, ele podia ter marcado uma consulta para mim com um psiquiatra. (Acho que era o que eu poderia ter feito por um filho, uma geração e uma classe social à frente.) 
A questão é que o que ele fez deu certo. Aquilo me recolocou, mas sem zombaria ou alarme, no mundo em que vivíamos. 
A gente pensa umas coisas que preferia não pensar. Acontece na vida. Se você viver tempo suficiente como pai ou mãe hoje em dia, você descobre que cometeu erros que nem quis conhecer além daqueles dos quais tomou perfeito conhecimento. Você fica algo mais humilde, às vezes sentindo repulsa de si próprio. Eu não acho que o meu pai sentisse alguma coisa assim. 
 O que eu sei é que se eu tivesse ido cobrar dele o quanto ele usou em mim a correia de afiar navalha ou o cinto, ele podia ter dito algo como é pegar ou largar. Aquelas surras, então, teriam ficado na cabeça dele, se é que ficaram, apenas como a necessária e adequada correção de uma criança boquirrota que achava que podia governar a casa. 
“Você se achava espertinha demais”, era o que ele podia ter dado como motivo para os castigos, e de fato se ouvia muito essa explicação naquele tempo, com a esperteza figurando como um diabrete irritante que tinha de apanhar para virar gente. Caso contrário havia o risco de ele crescer achando que era inteligente. Ou ela, conforme o caso. 
 Contudo, naquela manhã que nascia ele me deu exatamente o que eu precisava ouvir e o que eu logo esqueceria. Eu pensei que ele estava com suas melhores roupas porque tinha um compromisso matutino no banco, para ficar sabendo, sem grandes surpresas, que não iriam conceder uma prorrogação do empréstimo. Ele tinha trabalhado duro mas o mercado não iria se recuperar e ele teria que achar um novo jeito de sustentar a família e pagar o que devia ao mesmo tempo. Ou ele pode ter descoberto que os tremores da minha mãe tinham nome e não iriam parar. Ou que ele estava apaixonado por uma mulher impossível. Não faz mal. 
Dali em diante eu consegui dormir

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