terça-feira, 8 de junho de 2021

O caminhoneiro. Alberto Moravia

  


Sou magro, nervoso, com os braços finos, as pernas compridas e a barriga tão achatada que as calças vivem me caindo: sou, em suma, exactamente o contrário daquilo que é necessário para ser um bom caminhoneiro. 

 Repare nos caminhoneiros: são todos uns exageros de homens de costas largam, braços de carregador, dorso e ventre fortes. Porque o caminhoneiro se vale principalmente de seus braços, das costas e do ventre: dos braços para virar o volante que nos caminhões têm um diâmetro um pouco menor que um braço, e às vezes, nas curvas da montanha, deve fazer com que dê uma volta completa; das costaspara resistir ao cansaço de passar horas e horas sentado, sempre na mesma posição, sem relaxar nem endurecer; finalmente do ventre para ficar bem firme, quieto no banco, encaixado como um rochedo. Isso no que se refere ao físico. Quanto ao temperamento, sou ainda menos apropriado. O caminhoneiro não deve ter nervos, nem grilos na cabeça, nem saudades, nem o outros sentimentos  delicados: a estrada é exasperante e mataria um boi. E quanto a mulheres, o caminheiro pouco deve pensar nisso, como o marinheiro, de outro modo naquele contínuo vai e vem, ficaria louco. 

  Mas eu vivo cheio de pensamentos e de preocupações; tenho um temperamento melancólico, e gosto de mulheres. Porém, apesar de não ser profissão para mim, quis me tornar caminheiro e consegui ser aceito numa firma de transportes. 

 Deram-me como companheiro um certo Palombi que era, podese dizer, um brutamontes. O caminhoneiro perfeito, não porque os caminhoneiros não sejam, quase sempre, inteligentes, mas ele tinha também a sorte de ser burro, a ponto de formar com o caminhão uma só peça. Apesar de ser um homem com mais de trinta anos, conservava algo de infantil: uma cara cheia com as bochechas enfunadas, os olhos pequenos sob uma testa curta, a boca cortada como a de um cofre. 

Falava pouco, aliás nem falava e de preferência grunhia. Sua inteligência só acordava quando se tratava de comida. Lembro uma vez que entramos, cansados e famintos, numa cantina de Inri, no caminho de Nápoles. Só tinha feijão com pele de porco e eu mal toquei na comida porque me faz mal. Palombi devorou as duas travessas cheias, em seguida, estirando-se para trás na cadeira, me olhou um instante, com solenidade, como se fosse me dizer algo importante. Pronunciou, finalmente, alisando a barriga com a mão: 

-Comeria mais uns quatro pratos.

 Esse era o grande pensamento que levava tanto tempo para exprimir. Com esse companheiro que parecia de pau, nem lhe digo como fiquei contente quando encontramos Itália pela primeira vez.

 Naquela época fazíamos a Roma-Nápoles, levando as mais diferentes mercadorias: cerâmica, sucata, rolos de papel para jornal, madeira, fruta e, às vezes, até pequenos rebanhos de ovelhas que se deslocavam de um pasto para outro. 

 Itália nos parou em Terracina pedindo para levá-la a Roma. 

 A ordem era não dar carona a ninguém mas, após ter dado uma olhada nela, resolvemos que daquela vez a ordem não ia valer. Fizemos sinal para que subisse e ela saltou para cima toda agitada, dizendo: 

-A saúde dos caminhoneiros que são sempre gentis. 

Itália era uma moça provocante: não há outra palavra. Tinha o busto com um talhe longo de não se acreditar, e, em cima, umpeito erguido, pontudo, uma tentação, sob a blusa justa que lhe descia até os quadris. Também o pescoço era longo, com uma cabeça pequena e morena e dois grandes olhos verdes. Embaixo daquele busto tão comprido, tinha pernas curtas e tortas, de modo a dar a impressão de que andava com os joelhos dobrados. Não era bonita, enfim, porém mais que bonita; e tive a prova disso naquela primeira carona, quando na altura de Cisterna, enquanto Palombi dirigia, introduziu sua mão na minha e apertou-a com força, sem largá-la até Velletri, onde revezei com Palombi.

 Era verão, lá pelas quatro da tarde que é a hora mais quente, nossas mãos dadas escorregavam de suor mas ela, de vez em quando, me dava uma olhada com aqueles olhos verdes de cigana e para mim parecia que a vida, após ter sido durante tanto tempo nada mais que uma faixa de as- falto, voltava a sorrir. 

 Tinha encontrado o que procurava: uma mulher em quem pensar. 

 Entre Cisterna e Velletri, Palombi parou e desceu para ir examinar as rodas e eu aproveitei para lhe dar um beijo. Em Velletri revezei de bom grado com Palombi, um aperto de mão e um beijo, por aquele dia, eram suficientes. 

 Desde então, regularmente, Itália, uma e atb duas vezes por semana, foi e voltou de carona de Roma a Terracina.

  Esperava a gente de manhã, sempre com algum pacote ou mala perto dos muros, e depois, se Palombi estava dirigindo, segurava minha mão até Terracina. Na volta de Nápoles, esperava-nos em terracina, subia, e recomeçavam os apertos de mão e até, embora ela não quisesse, os beijos às escondidas, quando Palombi não podia ver. 

 Afinal, apaixonei-me de verdade, mesmo porque fazia muito tempo que não gostava de uma mulher e não estava mais acostumado. A tal ponto que bastava ela me olhar de um certo jeito e eu logo ficava comovido como uma criança,até as lágrimas. Eram lágrimas de ternura; mas me pareciam de uma fraqueza indigna de um homem e, sem conseguir, fazia força para contê-las.

  Quando eu dirigia, aproveitando que Palombi dormia, conversávamos em voz baixa. 

 Não me lembro nada do que dizíamos: sinal de que eram coisas à toa, brincadeiras, conversas de namorados.

 Lembro, porém, que o tempo voava, até a pista de Terracina, que habitualmente não acaba nunca, passava como que por encanto.

  Eu diminuía para trinta, vinte por hora, sendo ultrapassado até pelas carroças: sempre, porém, chegava o fim e Itália descia. 

De noite era tambem melhor: o caminhão seguia adiante como que sozinho, e eu segurava o volante com uma das mãos e com a outra enlaçava a cintura de Itália. 

 Quando no fundo da escuridão, acendiam e apagavam os farbis dos outros carros, respondendo aos sinais eu tinha vontade de formar umas palavras que dissessem a todo mundo o quanto eu estava feliz. Por exempio: Eu amo Itália e Itália me ama. 

 Palombi não percebeu nada ou, então, fingiu não perceber. 

 Fato é que não protestou nem uma vez sequer contra as caronas tão frequentes de Itália. Quando ela subia, saltava para cumprimentála, um grunhido e depois se afastava para o lado para lhe dar lugar. Ela ia sempre no meio, porque ao mesmo tempo eu devia ficar de olho na estrada e avisar Palombi quando se tratava de ultrapassar um outro carro, que o caminho estava livre. 

Palombi não protestou nem mesmo quando, apaixonado, quis escrever no vidro do párabrisa algo que se referisse à Itália. Fiquei pensando e depois escrevi em letras brancas: “Viva a Itália.” 

 Mas Palombi, de tão burro que era, não percebeu o duplo sentido a não ser quando outros caminhoneiros, brincando, nos perguntaram como afinal tínhamos nos tornado tão patrióticos. 

 Só então, olhou para mim boquiaberto e em seguida, esboçando um sornso, disse: 

-Eles pensam que é a Itália e em vez é a moça. . . você é inteligente, foi bem achado. 

 Tudo isso continuou uns dois meses ou talvez mais.

  Um dia daqueles, após ter deixado Itália, como sempre, em Terracina, chegando a Nápoles, recebemos ordem de descarregar e voltar a Roma, sem pernoitar. 

 Não gostei porque o encontro com Itália era para a manhã seguinte; mas a ordem era aquela. Eu peguei a direção e Palombi começou logo a roncar. Até Itri tudo correu bem, porque a estrada é cheia de curvas e à noite, quando começa o cansaço, as curvas que fazem manter os olhos abertos, são as amigas dos caminhoneiros. 

 Mas depois de Itri, entre os pomares de laranjas de Fondi, me deu sono e, para enxotá-lo, fiz força para pensar na Itália. Porém, mesmo pensando nela, parecia que meus pensamentos se cruzavam cada vez mais densos na mente, como os ramos de um bosque que se torna cada vez mais espesso e, por fim, torna-se escuro.

 De repente, lembro de ter dito a mim mesmo:

 -Por sorte tenho ela para pensar e me manter acordado... do contrário já teria adormecido. 

Porém,eu já estava dormindo e esse pensamento não era acordado que eu tinha, mas dormindo, e era um pensamento que o sono me mandava para fazer dormir melhor e com mais abandono.

 Ao mesmo tempo senti o caminhão sair da estrada e entrar no fosso, e senti, atrás, o estrondo e o choque da carreta virando.

 Vamos devagar e por isso não nos machucamos, mas, logo que descemos,vimos que a carreta estava capotada com as rodas para cima e toda a carga, peles de curtume, se amontoara no fosso. 

Estava escuro, sem lua, mas com um céu cheio de estrelas.

 Estávamos,por sorte, às portas de Terracina: à direita tínhamos o monte e à esquerda, além dos vinhedos, o mar calmo e negro. 

Palombi apenas disse: 

-Você aprontou uma boa- e depois, acrescentando que devíamos ir a Terracina para buscar ajuda,foi indo a pé. 

 Era logo ali, mas quando chegamos na entrada de Terracina, Palombi, que só pensava em comer, disse que estava com fome e, como, antes de chegar o caminhão de socorro com o guincho passariam algumas horas, era melhor ir a uma cantina. 

 Assim, entrando em Terracina, fomos à procura de um lugar.

 Porém passava da meia-noite e naquela praça redonda, toda esburacada pelos bombardeios, só havia um bar aberto e, ainda por cima estava fechando. 

 Pegamos uma ruazinha que parecia ir dar no mar e, dali a pouco, enxergamos uma luz com uma tabuleta. Apertamos o passo, cheios de esperança, era realmente uma cantina, mas a grade estava abaixada até a metade, como se estivesse para fechar.  Tinha portas de vidro e a porta de ferro deixava descoberta uma tira desses vidros, de modo que podíamos olhar lá dentro.

 -Quer ver que está fechado, disse Palombi e se abaixou para olhar.

Eu também me abaixei. Então vimos um salão de cantina do interior, com poucas mesas e o balcão. As cadeiras estavam pousadas de cabeça para baixo sobre as mesas, e Itália, armada de uma vassoura, fazia a limpeza com agilidade, um pano em volta da cintura. 

Atrás do balcão, bem no fundo da sala, havia um corcunda. Já vi corcundas, mas como aquele nenhum. O rosto encaixado entre as mãos, a corcunda mais alta que a cabeça,olhava fixo para Itália com os grandes olhos escuros e biliosos. 

Ela varria com agilidade, depois o corcunda disse-lhe algo, sem se mexer, e então ela se aproximou, encostou a vassoura no balcão, pôs-lhe os braços em volta do pescoço e deu-lhe um beijo bem demorado.  Depois, pegou a vassoura novamente, girando pela sala como se dançasse.

 O corcunda saiu do balcão para o meio da cantina: era um corcunda do mar, com as sandálias tripolitanas, as calças de pano azul, de pescador, anegaçadas e a camiseta decotada à robespierre. Aproximou-se da porta, e nós dois nos afastamos,como que com o mesmo pensamento. 

 O corcunda abriu a porta de vidro e por dentro desceu a porta de ferro. Disse, para ocultar a perturbação:

 -Quem iria dizer? e Palombi respondeu: -Pois é, com uma amargura que me surpreendeu. 

Fomos à garagem, e passamos a noite consertando o caminhão e recarregando todas aquelas peles. 

Mas, de madrugada, descendo para Roma, pela primeira vez, pode-se dizer, desde que o conhecia, Palombi começou a falar: 

-“Viu só o que aquela bruxa da Itália me aprontou? 

Eu disse espantado: 

-O quê? -Depois de tantas estórias, continuou ele devagar e obtuso, me apertando a mão o tempo inteiro enquanto iamos para cima e para baixo e eu disse que queria casar com ela e, por assim dizer, estávamos noivos, viu só? Um corcunda. 

Fiquei pasmo e não disse nada. Palombi recomeçou: 

-Eu lhe dei presentes tão bonitos: corais, um lenço de seda, sapatos de verniz... estou dizendo a verdade, gostava dela e, depois, tinha sido feita para mim, aquela moça... ingrata, sem coração: é o que ela é... Continúou assim um tempão, lento e como que falando sozinho,  naquela luz amortecida do amanhecer, enquanto corríamos sacudindo a lataria em direção a Roma. 

 Assim, não pude deixar de pensar, a Itália para economizar passagens do trem, enganara os dois.

  Me magoava ouvir Palombi falar, porque dizia as mesmas coisas que eu poderia ter dito, e depois porque, na boca dele que quase não sabia falar, essas coisas me pareciam ridículas. 

Tanto que, de repente, disse-lhe com brutalidade.

 -Mas me deixe em paz com essa piranha... estou com sono. 

Ele, coitado, respondeu:

 -Certas coisas, porém, fazem mal, e depois ficou quieto até Roma. 

Depois, por muitos meses, continuei triste; a estrada para mim voltara a ser o que era antes: sem começo nem fim, nada além de uma faixa amarga para engolir e cuspir duas vezes por dia. 

 O que, porém, me convenceu a mudar de profissão foi que Itália abriu uma cantina bem na estrada de Nápoles, com a placa “O recanto do caminhoneiros”.

 É, belo recanto, de se percorrer centenas de quilômetros para freqúentá-lo. 

Naturalmente nunca paramos ali, porém, assim do mesmo modo, ver Itália atrás do balcão e o corcunda passando-lhe os copos e as garrafas de cerveja, me fazia mal. 

Me mandei. O caminhão com a inscrição “Viva a Itália”, e Palombi na direção continua rodando

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