domingo, 4 de julho de 2021

Trem. Alice Munro





É um trem lento mesmo, e diminui ainda mais de velocidade para a curva. 
Jackson é o único passageiro que sobrou, e a próxima parada, Clover, está a cerca de trinta quilômetros de distância. 
E depois Ripley, e Kincardine, e o lago.

 Ele está com sorte e não deve desperdiçá-la. Já tirou o canhoto da passagem da fenda acima da poltrona. Ele lança a bolsa, e a vê aterrissar bem direitinho, entre os trilhos.
 Não há mais escolha — o trem não vai ficar mais lento.
 Ele arrisca. Jovem e em boa forma, mais ágil do que nunca. 
Mas o salto, a aterrissagem, o deixam desapontado. 
Ele está mais enrijecido do que achava, a imobilidade o lança para a frente, as palmas das mãos batem forte no cascalho entre os dormentes, ele ralou a pele. Nervosismo. O trem some de vista, ele ouve a velocidade aumentando, vencida a curva. 
Cospe nas mãos machucadas, tirando o cascalho. Aí apanha a bolsa e começa a caminhar na direção de onde vinha de trem.
 Se ele seguisse o trem, apareceria na estação de Clover logo à noitinha.  Ainda conseguiria reclamar que tinha caído no sono e acordado todo atrapalhado, achando que havia deixado passar a parada dormindo, quando isso não era verdade. Que tinha saltado, todo confuso, e aí voltado a pé. Teriam acreditado nele. Voltando para casa assim de tão longe, voltando da guerra, ele podia ter ficado com a cabeça meio atrapalhada. 
Não é tarde demais, ele estaria lá como deveria, ainda antes da meia-noite. Mas enquanto pensa nisso, ele não para de andar na direção contrária. 
Ele não conhece muitos nomes de árvores. Bordo, esse todo mundo sabe. Pinheiro. E não muitos mais. Ele tinha achado que o lugar onde saltou era um bosque, mas não era. As árvores só ficavam ao longo do trilho, perto umas das outras no talude, mas ele consegue ver relances de campo atrás delas. Campos verdes ou ferrugem ou amarelos. Pastos, plantações, restolho. 
Ele só consegue ver até aí. Ainda é agosto. E agora que o barulho do trem foi engolido, ele percebe que não há ali a perfeita tranquilidade que ele esperava. Perturbações aqui e ali, as folhas secas de agosto sacudidas por alguma coisa que não era vento, a algazarra que o perseguia, de uns pássaros invisíveis. 
Pular do trem deveria ser um cancelamento. Você sacode a inércia do corpo, prepara os joelhos, para então entrar num bloco de ar diferente. Mira o vazio. E em vez disso, o que é que você ganha? Um bando imediato de novas circunstâncias, pedindo sua atenção como elas não faziam quando você estava sentado no trem, só olhando pela janela.
 O que é que você está fazendo aqui? Aonde é que você vai? Uma sensação de ser observado por coisas que você não conhecia. De ser uma perturbação.
 A vida à sua volta chegando a certas conclusões a seu respeito, de pontos de vista que você ignorava. As pessoas que ele conheceu nos últimos anos pareciam achar que se alguém não era de uma cidade, era do campo. E isso não era verdade. Havia distinções que as pessoas podiam não perceber se não morassem lá, entre o campo e a cidade.
 O próprio Jackson era filho de um encanador. Ele nunca havia pisado num estábulo na vida ou pastoreado vacas ou empilhado cereais. Nem tinha se visto nesta situação de agora, marchando ao lado de um trilho de trem que parecia ter abandonado o seu objetivo normal de levar pessoas e cargas para se tornar a província de macieiras silvestres e arbustos espinhentos de amoras e vinhas compridas e corvos — ele conhecia pelo menos essa ave — que riam empoleirados não se sabe onde. 
E neste exato momento uma cobra pequena se esgueira entre os trilhos, totalmente confiante de que ele não vai ser rápido o suficiente para pisar nela e matá-la. Ele sabe o suficiente para perceber que ela é inofensiva, mas a confiança o deixa irritado. 
A vaquinha jersey, que se chamava Margaret Rose, normalmente aparecia na porta do estábulo para ser ordenhada duas vezes por dia, de manhã e à tarde. Em geral Belle nem precisava chamar. Mas naquela manhã ela estava interessada demais em alguma coisa lá onde o terreno do pasto tem uma baixada, ou nas árvores que escondiam os trilhos do outro lado da cerca. Ela ouviu o assobio de Belle e aí a voz dela chamando, e começou a andar relutante. Mas aí decidiu voltar para dar mais uma olhada. Belle colocou o balde e o banquinho no chão e começou a andar pela grama orvalhada da manhã. 
“Ta...ta...ta...” Ela estava em parte tentando atrair a vaquinha, em parte ralhando com ela. Alguma coisa se mexeu nas árvores. Uma voz de homem gritou que estava tudo bem. Mas claro que estava tudo bem. Por acaso ele achava que ela estava com medo dele? Melhor era ele ficar com medo da vaca que ainda tinha chifre. Pulando a cerca da estrada de ferro, ele acenou de um jeito que pode ter considerado tranquilizador. 
Aquilo era demais para Margaret Rose, ela tinha que fazer uma cena. Pular para cá e depois para lá. Brandir aqueles chifrinhos danados. Nada de mais, mas as jersey sempre são capazes de uma surpresa desagradável, com aquela velocidade e aqueles surtos de mau humor. Belle gritou, para repreender a vaca e tranquilizar o homem.
 “Ela não vai te machucar. Só não se mexa. Ela é nervosa.” 
Agora ela percebeu a bolsa que ele estava segurando. Era isso que tinha causado aquele rebuliço. Ela tinha achado que ele estava só andando pelos trilhos, mas ele estava indo a algum lugar. 
“Ela está incomodada com a bolsa. Se der para você só largar um minutinho. Eu tenho que levar ela de volta pro estábulo para a ordenha.” Ele fez o que ela disse, e aí ficou parado olhando, sem querer se mexer um centímetro. 
Ela levou Margaret Rose de volta até onde estava o balde e o banquinho, do seu lado do celeiro. 
“Pode pegar, agora”, ela gritou. 
E foi simpática enquanto ele se aproximava. “Desde que você não fique sacudindo isso perto dela. Você é soldado, não é?
 Se você esperar até eu terminar a ordenha, posso te oferecer um café. É um nome estúpido quando a gente tem que gritar com ela. Margaret Rose.” 
  Ela era uma mulher baixinha e gordinha com cabelo liso, grisalho em meio ao loiro, e uma franjinha infantil. 
“Eu sou a única responsável por isso aqui”, ela disse, enquanto se acomodava. 
“Sou monarquista. Ou era. Tenho um mingau pronto, na boca de trás do fogão. Não vou demorar muito aqui. Se você não se incomodar de ir para o outro lado do celeiro e esperar onde ela não possa te ver. Pena que eu não posso te oferecer um ovo. A gente tinha umas galinhas, mas as raposas ficavam matando todas elas e uma hora a gente se cansou.” 
  A gente. A gente tinha umas galinhas. Isso signiϐicava que ela tinha um homem em algum lugar por ali.
 “Mingau está ótimo. Eu posso pagar.” “Não precisa. Só saia um pouco daqui de perto. Ela está muito interessada para deixar o leite descer.” 
  Ele sumiu em direção ao outro lado do celeiro. Estava em mau estado. Espiou por entre as tábuas para ver que tipo de carro ela tinha, mas a única coisa que ele conseguiu distinguir ali dentro foi uma charrete velha e umas máquinas caindo aos pedaços. 
 Aquele lugar revelava certa organização, mas não exatamente esforço. 
 Na casa, tinta branca toda descascada e ficando cinza. Uma janela com tábuas pregadas, onde devia haver vidros quebrados. O galinheiro dilapidado onde ela tinha mencionado as raposas pegando as galinhas. Telhas empilhadas. 
 Se havia um homem ali, ele devia ser um inválido, ou talvez alguém paralisado pela preguiça. 
 Uma estrada passava por ali. Um campinho cercado diante da casa, uma estrada de terra. E no campo um cavalo malhado com uma cara pacífica. Uma vaca ele podia entender, mas por que ter um cavalo? Até antes da guerra os fazendeiros estavam se livrando deles, os tratores eram a novidade. E ela não parecia ser do tipo que saía trotando a cavalo só para se divertir. 
 Foi aí que ele percebeu. A charrete no celeiro. Não era uma relíquia, era tudo que ela tinha. Fazia um tempo já que ele estava ouvindo um som peculiar. 
 A estrada se erguia na direção de um morro, e de cima do morro vinha um pocotó, pocotó. E junto com o pocotó um sininho ou um assobio. Agora isso. Do morro veio uma caixa sobre rodas, sendo puxada por dois cavalos bem pequenos. Menores que o que estava no campo, mas incomparavelmente mais espertos. E na caixa havia coisa de meia dúzia de homenzinhos. Todos de preto, com belos chapéus pretos na cabeça. O som vinha deles. Era música. Vozinhas discretas e agudas, muito delicadas. 
 Eles nem olharam para ele ao passar. Aquilo lhe dava arrepios. A charrete no celeiro e o cavalo no campo não eram nada em comparação com aquilo. 
 Ele ainda estava ali parado olhando de um lado para outro quando ouviu que ela gritava: 
“Pronto, acabei”. Ela estava parada perto da casa. 
“É por aqui que dá para entrar e sair”, ela disse junto à porta dos fundos. 
“A da frente está emperrada desde o inverno passado, ela simplesmente se nega a abrir, parece que congelou.” 
 Eles passaram por umas tábuas estendidas sobre um chão irregular de terra batida, numa escuridão propiciada pela janela coberta de tábuas. Estava tão gelado lá dentro quanto no oco onde ele dormiu. Ele ficou acordando sem parar, tentando se enroscar numa posição em que conseguisse se manter quente. 
A mulher não tremia de frio ali — ela emanava um cheiro de esforço saudável e do que devia ser couro de vaca. 
Ela verteu o leite fresco numa bacia e cobriu o recipiente com um pedaço de morim que estava por ali, e aí o levou para a parte principal da casa. 
 As janelas não tinham cortinas, então ali a luz penetrava. Também o fogão a lenha tinha sido usado. Havia uma pia com uma bomba manual, uma mesa com um oleado gasto até esϐiapar em alguns lugares e um sofá coberto com uma manta velha remendada. Também uma almofada que tinha soltado algumas penas. 
 Até aqui, nada tão ruim, apesar de velho e puído. Tudo que estava à vista tinha serventia. Mas era erguer os olhos que lá nas prateleiras havia pilhas e pilhas de jornais e revistas, ou só de papéis, até o teto. Ele tinha que perguntar, Ela não ficava com medo de incêndio?
 Um fogão a lenha, por exemplo. “Ah, eu fico sempre por aqui. Quer dizer, eu durmo aqui. Não tem outro lugar onde eu consiga me livrar das correntes de ar. Eu fico atenta. E nem acendo a lareira. Já aconteceu de ficar quente demais e eu só joguei fermento em cima. Nada grave. 
“A minha mãe tinha que ficar aqui, de qualquer modo”, ela disse. “Ela só ficava bem acomodada aqui. Eu deixava a caminha dela aqui. Ficava de olho em tudo. Eu até pensei em levar a papelada toda para a sala da entrada, mas o negócio é que é muito úmido lá, ia estragar tudo.” 
Aí ela disse que devia ter explicado. 
“A minha mãe morreu. Ela morreu em maio. Bem quando o tempo ficou decente. Ela viveu para ouvir a notícia do ϐim da guerra no rádio. Entendia direitinho. Ela perdeu a fala há um tempão, mas conseguia entender. Eu fiquei tão acostumada com ela não falar que às vezes eu acho que ela está aqui, mas claro que não está.”
 Jackson sentiu que lhe cabia dizer que sentia muito. 
“Ah, enfim. Estava na hora. Só sorte que não foi no inverno.” 
Ela lhe serviu mingau de aveia e chá.
 “Não está forte demais? O chá?” 
De boca cheia, ele sacudiu a cabeça.
 “Eu nunca economizo no chá. Se for pra chegar a esse ponto, por que não tomar água quente?A gente chegou a ficar sem chá quando o tempo ficou horrível daquele jeito no inverno passado. A eletricidade acabou e o rádio acabou e o chá acabou. Eu deixei uma corda amarrada na porta dos fundos para me agarrar nela quando ia ordenhar. Eu ia deixar a Margaret Rose ficar na cozinha dos fundos, mas imaginei que ela ia ϐicar muito agitada com a tempestade e eu não ia conseguir segurá-la. Enϐim, ela sobreviveu. Todo mundo sobreviveu.” 
Achando uma brecha na conversa, ele perguntou se por acaso havia anões na vizinhança. 
“Não que eu tenha percebido.”
 “Numa carroça?” 
“Ah. Eles estavam cantando? Devem ter sido os meninos menonitas. Eles vão de carroça pra igreja e cantam até lá. As meninas têm que ir de charrete com os pais, mas eles deixam os meninos irem com a carroça.” 
“Pareceu que eles nem me viram.”
 “E não iam ver mesmo. Eu dizia para a mãe que a gente morava na estrada certa, porque a gente era igual aos menonitas. Cavalo e charrete, e a gente toma leite sem pasteurizar. A única coisa era que nenhuma das duas sabia cantar.  Quando a mãe morreu eles trouxeram tanta comida que eu fiquei comendo aqui por semanas. Eles devem ter achado que ia ter um velório ou alguma coisa assim. É sorte minha ter eles por perto. Mas aí eu lembro que é sorte deles também. Porque eles têm que praticar caridade e olha eu aqui quase na porta da casa deles, e eu sou uma belíssima ocasião de caridade.” 

Ele se ofereceu para pagar quando acabasse, mas ela dispensou o dinheiro dele com um gesto. Mas tinha uma coisa, ela disse. Se antes de ir ele pudesse dar um jeito de consertar o cocho do cavalo. O que isso envolvia na verdade era fazer um cocho novo para o cavalo, e para isso ele teve que sair em busca dos materiais e das ferramentas que conseguisse encontrar. 
Custou o dia todo, e ela lhe serviu panquecas com maple syrup dos menonitas no jantar. Ela disse que se ele tivesse chegado uma semaninha mais tarde ela podia ter lhe dado geleia fresca. Ela colhia as amoras silvestres ao lado do trilho. 
Eles ficaram sentados em cadeiras de cozinha na frente da porta dos fundos até o sol se pôr. 
Ela estava lhe contando alguma coisa sobre como ela tinha vindo parar ali, e ele estava ouvindo, mas não prestando muita atenção porque estava olhando em volta e pensando em como aquele lugar estava caindo aos pedaços, mas ainda não era totalmente irrecuperável, se alguém quisesse se estabelecer ali e consertar tudo. Seria preciso um certo investimento de dinheiro, mas um investimento ainda maior de tempo e de energia. 
Seria um desafio. 
Ele quase chegava a lamentar que estivesse seguindo adiante. 
Outro motivo de ele não prestar muita atenção ao que Belle — o nome dela era Belle — estava lhe dizendo era que ela estava falando da vida dela, que ele não conseguia imaginar direito. 
O pai dela — ela o chamava de papai — tinha comprado aquela casa só para veraneio, ela disse, e aí ele decidiu que eles bem podiam morar ali o ano todo. 
Ele podia trabalhar em qualquer lugar, porque ganhava a vida escrevendo uma coluna para o Toronto Evening Telegram . 
O carteiro levava o que ele tinha escrito e o texto seguia de trem.
 Ele escrevia sobre todo tipo de coisa que acontecia. 
Até incluía a Belle nos textos, se referindo a ela como Gatinha. 
E mencionava a mãe de Belle ocasionalmente, mas chamando-a de Princesa Casamassima, por causa de um livro cujo título, ela disse, não signiϐicava nada além disso. 
A mãe dela pode ter sido a razão de eles ficarem por lá o ano todo. Ela tinha pegado aquela gripe terrível de 1918, que havia matado tanta gente, e quando escapou, ela estava esquisita. Não exatamente muda, porque conseguia formar palavras, mas tinha perdido boa parte delas. Ou elas que a tinham perdido. 
Ela teve que aprender de novo a comer e ir ao banheiro. Além das palavras, ela teve que aprender a não tirar a roupa quando estava calor. Então ninguém queria que ela ficasse andando por aí e sendo motivo de riso na rua de alguma cidade. 
Belle ficava na escola no inverno.
 O nome da escola era Bispo Strachan e ela ϐicou surpresa por ele nunca ter ouvido falar dela. Soletrou o nome. 
Era em Toronto e cheia de meninas ricas, mas também tinha umas meninas como ela que podiam contar com recursos extras de algum parente ou de algum testamento para estudar lá. 
A escola a ensinou a ser bem esnobe, ela disse. E não lhe deu nenhuma ideia do que fazer para ganhar a vida. 
Mas isso tudo foi resolvido para ela pelo acaso. 
Caminhando pelos trilhos, como ele gostava de fazer nas noites de verão, o pai dela foi atropelado por um trem.
 Ela e a mãe já tinham ido para a cama quando aconteceu, e Belle achou que devia ser um animal de criação solto nos trilhos, mas a mãe dela estava gemendo de um jeito horroroso e parecia já saber do que se tratava. 
Às vezes uma menina que tinha sido sua amiga na escola escrevia para perguntar o que era que ela arranjava para fazer ali, mas esse pessoal não sabia da missa a metade. 
Havia a ordenha e a cozinha e cuidar da mãe, e naquela época ela ainda tinha as galinhas. 
Ela aprendeu a cortar as batatas de maneira que cada parte ϐicasse com um olho, e plantar e arrancá-las no verão seguinte.
Ela não tinha aprendido a dirigir e quando a guerra chegou ela vendeu o carro do papai. 
Os menonitas a deixaram ficar com um cavalo que não servia mais para o trabalho da fazenda, e um deles a ensinou a arreá-lo e a guiá-lo. 
Uma das velhas amigas, chamada Robin, veio visitá-la e achou o modo de vida dela uma piada. Ela queria que a amiga voltasse a Toronto, mas e como ϐicava a mãe? 
A mãe dela agora estava bem mais tranquila e não pensava em tirar as roupas, também gostava de ouvir rádio, a ópera das tardes de sábado. 
Claro que ela podia fazer isso em Toronto, mas Belle não queria tirá-la do seu ambiente. Robin disse que era dela mesma que ela estava falando, com medo de mudar de ambiente. Ela — a Robin — foi embora e entrou para o que quer que eles chamassem de exército das mulheres. 

                                           * * * 

A primeira coisa que ele tinha que fazer era deixar outros cômodos além da cozinha preparados para que se pudesse dormir neles, quando chegasse o frio. 
Ele tinha que se livrar de uns camundongos e até de uns ratos, que agora entravam em casa, com o tempo mais fresco. 
Ele lhe perguntou por que ela nunca tinha investido num gato e ouviu uma amostra da sua lógica peculiar. 
Ela disse que ele ϐicaria o tempo todo matando bichos e trazendo para ela ver, e que ela não queria vê-los. 
Ele ficou de ouvidos bem atentos para o estalo das ratoeiras, e se livrou delas antes que ela percebesse o que tinha acontecido. 
Aí ele perorou sobre os papéis que entulhavam a cozinha, o risco de incêndio, e ela concordou em transferir tudo se eles dessem um jeito de acabar com a umidade da sala de entrada. Isso virou sua tarefa principal. 
Ele investiu num aquecedor e consertou as paredes, e a convenceu a passar quase um mês subindo e pegando os papéis, relendo e reorganizando tudo e acomodando nas prateleiras que ele tinha feito. Ela lhe disse então que os papéis continham o livro do pai dela.
 Às vezes ela o chamava de romance.
 Ele não pensou em perguntar nada a respeito, mas um dia ela lhe disse que era sobre duas pessoas chamadas Matilde e Estêvão. 
Um romance histórico. 
“Você se lembra das suas aulas de história?” 
Ele tinha terminado cinco anos de colegial com notas respeitáveis e um desempenho muito bom em trigonometria e geograϐia, mas não lembrava muita coisa de história. No último ano dele, aϐinal, a única coisa em que ele conseguia pensar era que estava indo para a guerra. Ele disse: “Não muito”. 
“Você ia se lembrar de tudo se tivesse cursado a Bispo Strachan. Eles teriam te enfiado história goela abaixo. A história inglesa, pelo menos.” 
Ela disse que Estêvão tinha sido um herói. 
Um homem de honra, bom demais para o tempo em que vivia. 
Ele era aquele tipo raro de pessoa que não pensava só em si própria nem estava pronta a quebrar um juramento assim que fosse conveniente.
 Por isso, ϐinalmente ele não era um grande sucesso. 
E aí Matilde. 
Ela era uma descendente direta de Guilherme, o Conquistador, e cruel e orgulhosa como se poderia esperar. 
Ainda que pudesse haver gente estúpida o bastante para defendê-la só porque era mulher. 
“Se ele tivesse conseguido terminar, teria sido um belo romance.” 
É claro que Jackson sabia que livros existiam porque pessoas se sentavam para escrevê-los. Eles não caíam do céu. Mas por quê, era a questão. Já havia livros no mundo, vários. Dois dos quais ele tinha lido na escola. Um conto de duas cidades e Huckleberry Finn, cada um deles com uma linguagem cansativa, ainda que uma diferente da outra. E isso era compreensível. Eles tinham sido escritos no passado. O que o intrigava, apesar de que ele não pretendia deixar isso transparecer, era por que alguém ia querer sentar e fazer outro livro, no presente. 
Hoje. Uma tragédia, disse Belle bruscamente, e Jackson não sabia se ela estava falando do pai ou das pessoas do livro que não havia sido terminado. 
Enfim, agora que aquele cômodo era habitável, a cabeça dele estava no telhado. 
Não adiantava arrumar um quarto e deixar o estado do telhado tornar tudo inabitável de novo em um ou dois anos. 
Ele tinha feito uns remendos para ele durar mais uns invernos, mas não podia garantir mais que isso. E ele ainda planejava seguir o seu caminho no Natal. 
Nas famílias menonitas da fazenda vizinha havia uma porção de meninas mais velhas, e os meninos mais novos que ele vira ainda não tinham força para os trabalhos mais pesados. 
Jackson tinha conseguido se empregar com eles, durante a colheita de outono. 
Ele fora convidado para comer com os demais, e para sua surpresa descobriu que as meninas agiam de modo coquete quando o serviam, não eram nada mudas, como ele tinha esperado. 
As mães ficavam de olho nelas, ele percebeu, e os pais ϐicavam de olho nele. 
Ficou satisfeito de saber que conseguia agradar tanto às primeiras quanto aos segundos. 
Eles podiam ver que ele não estava aprontando nada.
 Todas seguras. 
E claro que com Belle nada havia para comentar. 
Ela era — ele tinha descoberto — dezesseis anos mais velha que ele. Mencionar isso, até em tom de brincadeira, ia estragar tudo.
 Ela era um certo tipo de mulher, ele, um certo tipo de homem.
 A cidade onde eles faziam compras, quando necessário, se chamava Oriole. 
Era no sentido oposto ao da cidade onde ele tinha crescido. 
Ele amarrava o cavalo no galpão da Igreja Unida de lá, já que obviamente não havia mais postes de atrelagem na rua principal. 
De início ele tinha receio de ir à loja de ferramentas ou ao barbeiro. Mas logo ele entendeu uma coisa a respeito das cidades pequenas, algo que já devia ter percebido antes, pelo simples fato de ter crescido em uma. 
Elas não tinham muito interesse umas nas outras, a não ser que fosse para jogos de beisebol ou de hóquei, onde tudo era de uma hostilidade férvida e artiϐicial.
 Quando precisavam comprar coisas que as suas lojas não tinham, eles iam a uma cidade grande. O mesmo acontecia quando queriam uma consulta com um médico diferente daqueles que sua cidadezinha podia oferecer. 
Ele não topou com ninguém conhecido, e ninguém mostrava curiosidade a seu respeito, embora às vezes chegassem a olhar duas vezes para o cavalo. 
Nos meses de inverno, nem isso, porque as estradas vicinais não eram limpas e as pessoas que levavam o leite para o armazém de laticínios ou os ovos para o mercado tinham que se virar com cavalos, exatamente como ele e Belle faziam. 
Belle sempre parava para ver que filme estava passando, apesar de não ter intenção de ir ver qualquer um deles. Seus conhecimentos a respeito de ϐilmes e estrelas de cinema eram extensos, mas provinham de anos passados, mais ou menos como Matilde e Estêvão. Ela sabia dizer, por exemplo, com quem Clark Gable era casado na vida real antes de virar Rhett Butler. 
Logo Jackson estava indo cortar o cabelo quando precisava e comprando tabaco quando o seu acabava. Ele fumava agora como um fazendeiro, enrolando seus cigarros e jamais acendendo um dentro de casa. 
Demorou um tempo para aparecerem os carros usados, mas quando surgiram, com os novos modelos ϐinalmente em cena, e os fazendeiros que tinham feito dinheiro durante a guerra estavam prontos para trocar seus modelos antigos, ele teve uma conversa com Belle. 
O cavalo Sardento tinha sabe lá quantos anos de idade e empacava em qualquer morrinho. 
Ele percebeu que o vendedor de carros andava prestando atenção nele, apesar de não contar com uma visita. 
“Eu sempre achei que você e a sua irmã eram menonitas, mas de um tipo que usava umas roupas diferentes”, o vendedor disse. 
O comentário deixou Jackson meio abalado, mas pelo menos era melhor que marido e mulher. 
Ele o fez perceber o quanto devia ter mudado e envelhecido com os anos, e o quanto a pessoa que tinha saltado do trem, aquele soldado magrelo e nervoso, seria diϐícil de reconhecer no homem que ele era hoje. 
Enquanto Belle, até onde ele podia ver, tinha parado em algum ponto da vida em que continuava sendo uma criança crescida. 
E a conversa dela reforçava essa impressão, pulando de uma coisa para outra, entrando e saindo do passado, de um jeito que parecia que ela não diferenciava a última vez em que foi à cidade do último ϐilme que tinha visto com a mãe e o pai, ou da ocasião cômica em que Margaret Rose — agora morta — tinha sacudido os chifres para um Jackson preocupado. 
Foi o segundo carro deles, usado é claro, que os levou a Toronto no verão de 1962. Foi uma viagem que eles não tinham planejado e aconteceu numa hora complicada para Jackson. 
Para começo de conversa, ele estava construindo um estábulo novo para os menonitas, que estavam ocupados com as plantações, e além disso ele tinha a sua própria colheita de vegetais chegando, que ele já havia vendido para o mercado de Oriole. 
Mas Belle tinha um caroço em que ela ϐinalmente havia sido convencida a prestar atenção, e estava com uma cirurgia marcada em Toronto. 
Que mudança, Belle repetia. Você tem certeza de que a gente ainda está no Canadá? Isso foi antes de eles passarem por Kitchener. Quando entraram na estrada nova, ela ϐicou realmente assustada, implorando que ele encontrasse uma estrada vicinal ou desse meia-volta e fosse para casa. 
Ele se viu respondendo incisivamente — o trânsito era surpreendente também para ele. Ela ficou quieta durante todo o trajeto depois disso, e ele não tinha como saber se ela estava de olhos fechados porque havia desistido ou porque estava rezando. Ele nunca tinha imaginado que ela rezava. Até aquela manhã ela estava tentando fazê-lo mudar de ideia sobre a viagem. Ela dizia que o caroço estava ficando menor, não maior. Como agora tinha seguro de saúde para todo mundo, ela dizia, as pessoas só queriam saber de ir correndo para o médico, e de transformar a vida em um longo drama de hospitais e operações, o que só prolongava o período em que a gente virava um incômodo no fim da vida.
 Ela se acalmou e se animou quando eles chegaram à saída certa e estavam de fato na cidade. Eles se viram na Avenue Road, e apesar das exclamações de quanto aquilo tudo tinha mudado, ela parecia conseguir reconhecer alguma coisa em cada quadra. 
Lá estava o apartamento onde um dos professores da Bispo Strachan morava. No porão tinha uma loja na qual dava para comprar leite e cigarros e o jorna
l. Não seria estranho, ela disse, se desse para você entrar lá e achar o Telegram, no qual não haveria apenas o nome do pai dela, mas a foto borrada, tirada quando ele ainda tinha todo o cabelo? Aí um gritinho, e no fim de uma rua transversal ela tinha visto a própria igreja — ela podia jurar que era a própria igreja — onde seus pais haviam se casado.
 Eles tinham levado a filha para ver a igreja, apesar de não ser um lugar que eles frequentassem. Eles não frequentavam qualquer igreja, longe disso. Era meio que uma piada. O pai dela dizia que eles haviam se casado no porão, mas a mãe dizia que tinha sido na sacristia.
 Nessa época a mãe dela conseguia falar com facilidade, ela era como todo mundo. 
Talvez houvesse uma lei na época que obrigava as pessoas a se casar na igreja, ou não seria legal.
 Em Eglinton ela viu a placa do metrô.
 “Imagine só, eu nunca andei de metrô.” Ela disse isso com certa mistura de dor e orgulho. 
“Imagine continuar tão ignorante.”
 No hospital eles já estavam esperando por ela. 
Continuou animada, falando a eles do horror que tinha passado no trânsito e das mudanças, perguntando se ainda montavam um certo espetáculo de Natal na loja Eaton. 
E será que alguém ainda lia o Telegram?
 “Vocês deviam ter vindo por Chinatown”, uma das enfermeiras disse. 
“Aquilo é que é interessante.”
 “Eu vou fazer questão de ver na volta para casa.” Ela riu, e disse: “Se é que eu vou voltar para casa”.
 “Não fale bobagem.”
 Outra enfermeira estava conversando com Jackson sobre o lugar onde ele tinha deixado o carro, e lhe dizendo para tirá-lo dali para não tomar uma multa. E também se certiticando de que ele sabia das acomodações para parentes que vinham de fora, bem mais baratas do que um hotel.
 A Belle ia para a cama agora, elas disseram. Um médico ia passar para dar uma olhada nela, e Jackson podia voltar depois para dizer boa-noite. Podia ser que ele a achasse um pouquinho tonta, então. Ela entreouviu, e disse que era tonta o tempo todo, de modo que ele não ia ficar surpreso, e todos em volta riram um pouco. A enfermeira o levou para assinar alguma coisa antes de ir embora. Ele hesitou no campo em que se perguntava sobre o parentesco. Aí escreveu “Amigo”. 
Quando ele voltou de noite, de fato percebeu uma mudança, mas não teria dito que Belle estava tonta. Eles tinham vestido uma espécie de saco de pano verde nela que deixava seu pescoço e seus braços quase inteiros de fora. 
Raras vezes ele a vira tão despida, ou percebera seus tendões que pareciam em carne viva se estendendo entre a clavícula e o queixo. Ela estava com raiva porque sua boca estava seca. 
“Eles só me deixam tomar uns golinhos ridículos de água.” Ela queria que ele fosse buscar uma coca-cola para ela, coisa que nunca tinha bebido na vida, até onde ele sabia. 
“Tem uma máquina no corredor — tem que ter. Eu vejo as pessoas passando com as garrafas na mão e fico com tanta sede.” Ele disse que não podia contrariar as ordens. 
Os olhos dela se encheram de lágrimas e ela se virou contrariada. “Eu quero ir pra casa.” “Logo você vai.” “Você podia me ajudar a achar as minhas roupas.” “Não podia não.” “Se você não procurar eu mesma procuro. Eu vou sozinha até a estação de trem.” “Não tem mais nenhum trem de passageiros que vá pro nosso lado.” 
De uma hora para a outra ela pareceu desistir dos planos de fuga. Depois de alguns instantes ela começou a se lembrar da casa e de todas as melhorias que eles — ou em geral ele — tinham feito nela. A tinta branca brilhando lá fora, e até a cozinha dos fundos caiada e dotada de um piso de tábuas. 
O telhado refeito e as janelas de volta ao seu antigo estilo simples e, a maior das glórias, o encanamento que era uma alegria tão grande no inverno. 
“Se você não tivesse aparecido eu logo estaria vivendo numa sordidez absoluta.” 
Ele não manifestou a sua opinião de que ela já estava vivendo assim na época. 
“Quando eu sair dessa eu vou fazer um testamento”, ela disse. 
“Tudo será seu. Você não vai ter trabalhado à toa.” 
É claro que ele já tinha pensado nisso, e era de esperar que a perspectiva da propriedade lhe causasse uma certa satisfação contida, ainda que ele desse voz a uma esperança sincera e amistosa de que nada acontecesse assim tão cedo. 
Mas não agora. Aquilo parecia ter pouco a ver com ele, estar longe demais. 
Ela voltou a sua aflição. 
“Ah, como eu queria estar lá e não aqui.” “Você vai se sentir bem melhor quando acordar depois da operação.” 
Se bem que por tudo que ele tinha ouvido, essa era uma mentira descarada. De repente ele se sentiu tão cansado. Ele tinha chegado mais perto da verdade do que poderia imaginar. 
Dois dias depois da retirada do caroço, Belle estava sentada num outro quarto, ansiosa por vê-lo e nada incomodada com os gemidos que vinham de uma mulher atrás da cortina que cercava o leito ao lado. 
Era mais ou menos assim que ela — Belle — tinha estado no dia anterior, quando ele nem conseguiu fazê-la abrir os olhos ou perceber sua presença. 
“Não preste atenção nela”, disse Belle. “Ela está completamente inconsciente. Provavelmente não está sentindo nada. Ela vai acordar amanhã novinha em folha. Ou não.” 
Uma autoridade um tanto satisfeita, oficial, estava transparecendo, de uma veterana calejada. Ela estava sentada na cama e tomando alguma bebida de um laranja bem forte com um canudinho convenientemente curvo. 
Ela parecia bem mais jovem que a mulher que ele tinha trazido ao hospital tão pouco tempo antes. 
Ela queria saber se ele estava dormindo direito, se tinha encontrado algum lugar onde gostava de comer, se o tempo não estava quente demais para ele andar por aí, se ele tinha tido tempo para visitar o Royal Ontario Museum, como ela achava que tinha aconselhado. Mas ela não conseguia se concentrar nas respostas dele. 
Parecia estar num estado de estarrecimento. Estarrecimento controlado. 
“Ah, mas eu tenho que te contar”, ela disse, cortando a explicação dele de por que não tinha ido ao museu. 
“Ah, não faça essa cara de assustado. Você vai me fazer rir com essa cara, vai machucar os pontos. Mas por que é que eu ia pensar em rir, aϐinal de contas? É uma coisa tão horrivelmente triste, é uma tragédia mesmo. Você sabe do meu pai, o que eu te contei do meu pai...” 
O que ele percebeu foi que ela disse pai em vez de papai. 
“O meu pai e a minha mãe...” 
Ela parecia ter que procurar um pouco e começar de novo. 
“A casa estava num estado melhor do que quando você chegou. Bom, tinha que estar. A gente usava aquele quarto do primeiro andar como banheiro. Claro que a gente tinha que ϐicar subindo e descendo com a água. Só depois, quando você chegou, é que eu estava usando o do térreo. O das prateleiras, sabe, que tinha sido uma despensa?” 
Como ela podia não lembrar que havia sido ele quem tinha tirado as prateleiras e instalado no banheiro? 
“Ah, enϐim, que diferença faz?”, ela disse, como se estivesse acompanhando o pensamento dele. 
Então eu tinha esquentado a água e levado para cima para tomar meu banho de esponja. 
E eu tirei a roupa. Bom, tinha que tirar. Tinha um espelho grande em cima da pia, sabe, tinha uma pia que nem num banheiro de verdade, só que você tinha que tirar o tampão e deixar a água escorrer de volta pro balde quando terminava. 
A privada não ficava ali. Deu pra entender. Então eu fui me lavando e estava pelada, claro. Devia ser perto de nove da noite, então tinha muita luz. Era verão, eu te disse? Aquele quartinho que dá pro oeste? Aí eu ouvi passos e claro que era o papai. Meu pai. Ele devia ter acabado de pôr a mãe na cama. Eu ouvi os passos subindo a escada e percebi que estavam soando pesados. De alguma maneira diferentes do usual. Muito deliberados. Ou talvez tenha sido só a minha impressão depois. A gente tende a dramatizar as coisas depois. Os passos pararam bem na frente da porta do banheiro e se eu pensei alguma coisa eu pensei Ah, ele deve estar cansado. Eu não tinha trancado a porta porque claro que não tinha tranca. A gente simplesmente presumia que alguém estava dentro quando a porta estava fechada. Então ele ficou parado na frente da porta e eu não pensei nada daquilo e aí ele abriu a porta e só ϐicou ali parado me olhando. E eu tenho que deixar claro o que eu quero dizer com isso. Olhando para mim inteira, não só o rosto. O meu rosto olhando para o espelho e ele me olhando no espelho e também para o que estava atrás de mim e eu não conseguia ver. Não era de jeito nenhum um olhar normal. Vou te dizer o que eu pensei. Eu pensei: Ele está sonambulando. Eu não sabia o que fazer, porque você não pode assustar um sonâmbulo. Mas aí ele disse ‘Perdão’ e eu soube que ele não estava dormindo. Mas ele falou com uma voz bem engraçada, digo, era uma voz estranha, bem como se ele estivesse com nojo de mim. Ou bravo comigo, eu não sabia. Aí ele deixou a porta aberta e simplesmente voltou pelo corredor. Eu me enxuguei e vesti a camisola e fui para a cama e dormi imediatamente. Quando eu acordei de manhã lá estava a água que eu não tinha drenado, e eu não queria chegar perto dela, mas cheguei. “Mas tudo parecia normal e ele já estava acordado e datilografando. Ele só gritou bom-dia e aí me perguntou como se escrevia uma palavra. Do jeito de sempre, porque eu era melhor de ortograϐia. Então eu dei a resposta para ele e aí disse que era melhor ele aprender ortograϐia se queria ser escritor, ele era péssimo naquilo. Mas em algum momento depois disso quando eu estava lavando louça ele apareceu bem atrás de mim e eu gelei. Ele só disse ‘Belle, eu sinto muito’. E eu pensei Ah, como eu queria que ele não tivesse dito isso. Aquilo me deixou com medo. Eu sabia que era verdade que ele sentia muito, mas ele estava dizendo aquilo abertamente, de um jeito que eu não podia ignorar. Eu só disse ‘Tudo bem’, mas não consegui me fazer dizer isso com uma voz tranquila ou como se estivesse mesmo tudo bem. “Eu não consegui. Eu tinha que fazer ele perceber que ele tinha mudado nós dois. Fui jogar fora a água da louça e aí voltei pra sei lá o que que eu ainda estava fazendo e não abri a boca. Depois eu acordei a mãe que estava tirando sua soneca e eu já estava com o jantar pronto e chamei por ele, mas ele não veio. Eu disse pra mãe que ele devia ter ido dar uma volta. Era o que ele sempre fazia quando travava na hora de escrever. Ajudei a mãe a cortar a comida, mas não conseguia deixar de pensar em coisas nojentas. Em primeiro lugar nos barulhos que eu às vezes ouvia vindo do quarto deles, e tapava os ouvidos para não escutar. Agora eu ϐicava pensando na mãe ali sentada jantando, e eu pensava o que será que ela achava daquilo ou entendia daquilo tudo. “Eu não sabia aonde ele podia ter ido. Preparei a mãe para ir dormir, apesar de ser responsabilidade dele. Aí ouvi o trem chegando e ao mesmo tempo a balbúrdia e o guincho que eram dos freios do trem, e eu devo ter entendido o que tinha acontecido apesar de não saber exatamente em que momento eu entendi. “Eu já te contei. Eu disse que ele foi atropelado pelo trem. “Mas eu estou te contando isso. E eu não estou contando só pra ser apavorante. No começo eu não conseguia encarar a situação e por um tempão enorme eu me obriguei mesmo a pensar que ele estava andando pelos trilhos pensando no trabalho e não ouviu o trem. Era essa a estória em que estava tudo bem. Eu não ia pensar que ela tinha a ver comigo e nem que tinha a ver em primeiro lugar com outra coisa. “Sexo. “Agora eu entendo. Agora eu tenho uma compreensão real daquilo e de que não foi culpa de ninguém. Foi culpa do sexo humano numa situação trágica. Eu crescendo ali e a mãe como era e o papai, naturalmente, do jeito que teria de ser. Não foi culpa minha nem dele. “Teria que ser uma coisa reconhecida, só isso, sabe, lugares aonde as pessoas podem ir se estão numa situação dessas. E não ϐicar cheias de vergonha e de culpa. Se você acha que eu estou falando de bordéis, você está certo. Se você pensou em prostitutas, acertou de novo. Você está entendendo?” Jackson, olhando por sobre a cabeça dela, disse que sim. “Eu estou me sentindo tão liberta. Não é que eu não sinta a tragédia, mas eu já não vivo na tragédia, só isso. São só os erros da humanidade. Você não pode pensar que porque eu estou sorrindo eu não tenho compaixão. Eu tenho profunda compaixão. Mas eu tenho que dizer que estou aliviada. Eu tenho que dizer que de alguma maneira eu me sinto feliz. Você não fica constrangido de ouvir isso tudo?” “Não.” “Você percebe que eu estou num estado anormal. Eu sei que estou. Tudo tão claro. Eu estou tão agradecida.” A mulher na cama ao lado não tinha parado com os gemidos ritmados, durante tudo aquilo. Jackson tinha a impressão de que aquele refrão havia entrado na sua cabeça. Ele ouviu os sapatos guinchantes da enfermeira no corredor e torceu para eles entrarem no quarto. Entraram. A enfermeira disse que tinha vindo dar o comprimido do soninho. Ele tinha medo que pedissem para ele dar um beijo de boa-noite em Belle. Ele tinha percebido que as pessoas se beijavam sem parar no hospital. Ficou feliz quando se levantou e ninguém mencionou alguma coisa assim. “A gente se vê amanhã.” * * * Ele acordou cedo, e decidiu dar uma caminhada antes do café. Tinha dormido bem, mas disse para si mesmo que precisava de uma folga da atmosfera do hospital. Não que ele estivesse tão preocupado assim com a mudança de Belle. Ele achava que era possível e até provável que ela voltasse ao normal, ou hoje ou em mais um ou dois dias. Ela podia nem se lembrar da história que tinha contado a ele. O que seria uma bênção. O sol estava bem alto, como era de esperar nessa época do ano, e os ônibus e bondes já estavam bem cheios. Ele caminhou para o sul um pouco, e aí virou em direção ao oeste para entrar na Dundas Street, e depois de um tempo se viu na Chinatown de que tinha ouvido falar. Montes de vegetais reconhecíveis e muitos não tão reconhecíveis eram morosamente carregados para dentro de lojas, e animaizinhos esfolados aparentemente comestíveis já estavam pendurados e expostos para venda. As ruas estavam cheias de caminhões estacionados irregularmente e de fragmentos ruidosos, que soavam desesperados, de língua chinesa. Chineses. Aquela barulhada em tom agudo fazia parecer que eles estavam em guerra, mas provavelmente para eles era só um dia comum. Mesmo assim ele ϐicou com vontade de sair do meio daquilo, e entrou num restaurante administrado por chineses, mas que anunciava um café da manhã normal de ovos e bacon. Quando saiu dali ele pretendia voltar na direção de onde tinha vindo. Mas em vez disso ele se viu seguindo novamente para o sul. Tinha entrado numa rua residencial onde se enϐileiravam casas altas e bem estreitas de tijolos. Elas deviam ter sido construídas antes de as pessoas dali sentirem alguma necessidade de ter garagens ou talvez até antes de elas terem carros. Antes de existirem carros. Ele foi andando até ver uma placa que dizia Queen Street, de que ele já tinha ouvido falar. Ele virou de novo para oeste e depois de umas quadras deu com um obstáculo. Na frente de uma loja de donuts ele topou com uma pequena multidão. Eles tinham sido parados por uma ambulância, que havia estacionado em marcha a ré bem em cima da calçada de um jeito que não deixava ninguém passar. Alguns estavam reclamando do atraso e perguntando em altos brados se era legal estacionar uma ambulância na calçada e outros estavam com uma cara bem tranquila enquanto conversavam sobre qual seria o problema. Alguém falou em morte, alguns dos passantes falando de diversos candidatos e outros dizendo que era a única desculpa legal para o veículo estar onde estava. O homem que ϐinalmente foi retirado, preso a uma maca, certamente não estava morto, ou teriam coberto seu rosto. Mas estava inconsciente e com a pele tão cinza quanto cimento. Ele não estava sendo retirado da loja de donuts, como alguns tinham previsto em tom de brincadeira — era algum comentário sarcástico sobre a qualidade dos donuts — mas pela porta principal do prédio. Era um prédio bem decente de tijolos com cinco andares e uma lavanderia automática, além da loja de donuts no térreo. O nome entalhado acima da porta principal sugeria orgulho além de certa tolice em seu passado. Bonnie Dundee. Um homem sem uniforme de ambulância saiu por último. Ele ϐicou ali parado olhando exasperado para o grupo que agora estava pensando em se afastar. A única coisa a esperar agora era o grande uivo da ambulância quando ela se pusesse a caminho pela rua e desaparecesse. Jackson era um dos que não se deram ao trabalho de sair dali. Ele não teria dito que estava curioso quanto àquilo tudo, era mais que ele estava apenas esperando pela inevitável mudança de direção com que contava, para levá-lo de volta ao ponto de origem. O homem que tinha saído do prédio foi até ele e perguntou se estava com pressa. Não. Não muito. Esse homem era o proprietário do prédio. O homem levado na ambulância era o zelador e superintendente.
 “Eu tenho que ir até o hospital e ver o que ele tem. Estava ótimo ontem. Nunca reclamou de nada. Ninguém próximo que eu possa chamar, até onde eu sei. Pior, não consigo achar as chaves. Não estão com ele e não estão onde ele tem o costume de deixar. Então eu tenho que ir em casa e pegar as minhas de reserva e aí eu pensei, será que você não podia ϐicar de olho aqui enquanto isso? Eu tenho que passar em casa e tenho que ir até o hospital também. Eu podia pedir pra um dos inquilinos, mas preferia não, se é que você me entende. Não quero eles me enchendo para saber o que foi, se eu sei tanto quanto eles.” 
Ele perguntou de novo se Jackson tinha certeza de que não tinha problema, e Jackson disse Não, tudo bem. “Só ϐique de olho em todo mundo que entra, sai, peça pra ver as chaves. Diga que é uma emergência, não vai demorar.” Ele estava indo embora, e aí se virou. “Você devia sentar.” Havia uma cadeira que Jackson não tinha percebido. Dobrada e empurrada para um canto para a ambulância poder estacionar. Era só uma daquelas cadeiras de lona, mas confortável e resistente. Jackson a colocou agradecendo em um lugar em que ela não ia incomodar os pedestres ou os moradores dos apartamentos.
 Ninguém notou a presença dele. 
Ele estava quase mencionando o hospital e o fato de que ele próprio tinha que voltar para lá dali a pouco. Mas o homem estava apressado, e ele já tinha muitos problemas na cabeça, e deixou claro que ia ser o mais rápido que conseguisse. Jackson se deu conta, assim que se sentou, do tempo em que tinha ficado de pé andando de um lado para outro. 
O homem havia dito para ele pegar alguma coisa para comer na loja de donuts se precisasse. 
“Só diga o meu nome pra eles.” 
Mas esse nome Jackson nem sabia.
 Quando o proprietário voltou, ele pediu desculpas por ter se atrasado. O fato era que o homem que havia sido levado na ambulância tinha morrido.
 Ele teve que tomar providências. Um novo conjunto de chaves tinha se tornado necessário. Aqui estavam elas. Haveria algum tipo de funeral para as pessoas do prédio que estavam ali fazia bastante tempo. 
Uma nota no jornal podia trazer mais gente. Um pedaço complicado, até isso tudo ϐicar resolvido. Resolveria o problema. Se Jackson pudesse. 
Temporariamente.
 Só tinha que ser temporariamente. Jackson se ouviu dizer Sim, por ele tudo bem. Se ele queria um tempo, era possível. 
Ele ouviu esse homem — seu novo chefe — dizer. Logo depois do funeral e de cuidarem de alguns bens. Aí ele podia tirar uns dias, para botar as suas coisas em ordem e se mudar propriamente. Não ia ser necessário, Jackson disse. 
As coisas dele estavam em ordem e seus pertences ele trazia nas costas. Naturalmente isso levantou certas suspeitas. Jackson não ϐicou surpreso uns dias depois quando soube que seu novo empregador tinha feito uma visita à polícia. Mas tudo bem, aparentemente. 
Ele tinha sido considerado apenas um desses tipos solitários que podem ter se metido em certas coisas aqui e ali, mas não eram culpados de violar a lei. Parecia que ninguém estava atrás dele, de todo modo. 

                                         * * * 

Por via de regra, Jackson gostava de ter gente mais velha no prédio. E por via de regra, gente sozinha. Não o que se pudesse chamar de múmias. Gente com interesses. 
Às vezes dava até para dizer talentos. O tipo de talento que um dia teria sido notado, que teria garantido um meio de vida por um tempo, mas não o bastante para a pessoa contar com aquilo para sempre. 
Um locutor cuja voz tinha sido familiar no rádio anos antes, durante a guerra, mas cujas cordas vocais agora estavam destroçadas. 
Quase todo mundo devia achar que ele estava morto. Mas ali estava ele no seu apartamentinho de solteiro, acompanhando as notícias e assinando The Globe and Mail, que ele passava para o Jackson caso ali houvesse algo de seu interesse. 
Um dia houve. Marjorie Isabella Treece, filha de Willard Treece, durante anos colunista do Toronto Evening Telegram , e sua esposa, Helena (em solteira Abbott) Treece, durante toda a vida amiga de Robin (em solteira Shillingham) Ford, faleceu depois de corajosa luta contra o câncer. Jornal de Oriole, favor reproduzir. 18 de julho de 1965. 
Nem se mencionava onde ela estava morando. Provavelmente em Toronto, com Robin tão em evidência.
 Ela tinha durado talvez mais do que se podia esperar e podia ter estado razoavelmente confortável e bemhumorada, até, claro, perto do ϐim. Ela tinha mostrado ser dotada de uma certa capacidade de se adaptar às circunstâncias. 
Mais, talvez, do que ele mesmo possuía. Não que ele passasse o tempo imaginando os cômodos que um dia dividira com ela ou o trabalho que teve para arrumar a casa dela. 
Ele não precisava — essas coisas lhe eram sempre lembradas em sonhos, e o que ele sentia nesses momentos estava mais para exasperação do que para saudade, como se tivesse que começar a trabalhar imediatamente em alguma coisa que ainda não tinha sido terminada. 
No Bonnie Dundee, os inquilinos em geral viam com muita desconϐiança qualquer coisa que se pudesse chamar de melhoria, pensando que isso podia fazer subir o aluguel. Ele tentava convencê-los, com modos respeitosos e uma boa noção contábil. O lugar foi melhorando e passou a ter uma lista de espera. O proprietário reclamava que aquilo estava virando um abrigo para malucos.
 Mas Jackson dizia que eles em geral eram mais limpinhos que a média e velhos o bastante para não fazer nada de errado.
 Havia uma mulher que antigamente tocara na Sinfônica de Toronto e um inventor que até então não tinha se dado bem com nenhuma de suas invenções, mas ainda tinha esperanças, e um ator húngaro refugiado cujo sotaque agia contra ele mas que ainda tinha um comercial passando em algum lugar do mundo. 
Eles todos se comportavam bem e davam algum jeito de juntar um dinheiro para frequentar o restaurante Epicure e contar suas histórias a tarde toda. 
E eles também tinham alguns amigos que eram realmente famosos e podiam aparecer bem de vez em quando para fazer uma visita. E não era de se jogar fora o fato de que o Bonnie Dundee tinha um sacerdote residente que andava estremecido com sua igreja, fosse ela qual fosse, mas sempre disposto a oficiar quando convocado. 
E de fato as pessoas foram se acostumando a ϐicar, até que os últimos serviços dele fossem necessários, mas era melhor que darem no pé sem pagar. Uma exceção era o jovem casal chamado Candace e Quincy, que nunca pagou o aluguel e deu no pé no meio da noite. 
O proprietário por acaso estava cuidando da portaria quando eles vieram procurar um quarto, e pediu desculpas pela sua escolha infeliz, dizendo que era preciso ter um rostinho novo por ali. O rosto de Candace, não do namorado. O namorado era um imbecil.

                                             * * * 

Num dia quente de verão Jackson estava com as portas duplas dos fundos, as portas das entregas, abertas, para deixar o ar entrar enquanto envernizava uma mesa. Era uma mesinha bonita que ele tinha conseguido quase de graça porque o verniz estava todo gasto. Ele achou que seria simpático deixá-la ali na entrada, como lugar para depositar a correspondência. 
Ele podia ficar fora do escritório porque o proprietário estava lá verificando uns aluguéis. 
Alguém tocou de leve a campainha da entrada. Jackson estava pronto para se erguer dali, limpando o pincel, porque achou que o proprietário no meio daquelas contas todas podia não querer ser incomodado. Mas estava tudo bem, ele ouviu a porta sendo aberta, a voz de uma mulher. 
Uma voz à beira da exaustão, e no entanto capaz de manter um pouco de seu encanto, de sua absoluta certeza de que tudo que dissesse ia conquistar qualquer um que a estivesse ouvindo. 
Ela provavelmente teria herdado essas características do pai, pregador. Jackson estava pensando isso antes de ser plenamente atingido pelo impacto. 
Era o último endereço que tinha, ela disse, da ϐilha. Ela estava procurando a ϐilha. Candace, sua ϐilha. Que podia estar viajando com um amigo. Ela, a mãe, tinha vindo até ali lá da Colúmbia Britânica. 
De Kelowna, onde moravam ela e o pai da menina. Ileane. Jackson reconheceu a voz sem pestanejar. 
Aquela mulher era Ileane. Ele a ouviu perguntar se podia se sentar. E aí o proprietário puxando a sua cadeira — a de Jackson. Toronto era tão mais quente do que ela esperava, apesar de ela conhecer Ontário, tinha crescido ali. 
Será que dava para ela pedir um copinho d’água. Ela devia ter posto a cabeça entre as mãos porque a voz ϐicou abafada.
 O proprietário entrou no saguão e inseriu umas moedas na máquina para pegar uma 7UP. 
Ele podia ter achado que se tratava de algo mais apropriado para uma senhora que uma coca-cola. No canto do saguão ele viu Jackson ouvindo, e fez um gesto para indicar que ele — Jackson — devia tomar a frente, por estar talvez mais acostumado com inquilinos transtornados. 
Mas Jackson sacudiu violentamente a cabeça.
 Não.
 Ela não ficou muito tempo transtornada. 
Ela pediu desculpas ao proprietário e ele disse que o calor de hoje fazia isso com a gente. E agora quanto à Candace. Eles tinham saído havia menos de um mês, podia ser três semanas atrás. Não deixaram endereço de contato.
 “Nesse tipo de situação eles normalmente não deixam.” 
Ela entendeu a insinuação. 
“Claro que eu posso pagar...” 
Murmúrios e ruídos farfalhantes enquanto ela fazia isso. E aí: “Imagino que não seja possível eu ver o lugar onde eles estavam morando...”. “O inquilino não está agora. Mas mesmo que estivesse eu acho que ele não ia concordar com a ideia.” “Mas é claro. Bobagem minha.” “A senhora estaria particularmente interessada em alguma coisa?” “Ah, não. Não. O senhor foi muito gentil. Eu estou ocupando o seu tempo.” Ela tinha se levantado agora, e eles estavam se movimentando. Para fora do escritório, descendo os degrauzinhos que levavam à porta. 
Aí a porta se abriu e barulhos da rua engoliram as últimas despedidas, se é que houve despedidas. Por mais que estivesse decepcionada, ela ia aguentar aquilo com aplomb. 
Jackson saiu de onde estava escondido quando o proprietário voltou ao escritório. “Surpresa”, foi tudo que o proprietário disse. “Recebemos o dinheiro.” 
Ele era um homem basicamente desprovido de curiosidade, pelo menos no que se referia a questões pessoais. Coisa que Jackson valorizava nele. 
Claro que Jackson teria gostado de vê-la. Agora que ela não estava mais ali ele quase lamentava a oportunidade perdida. Ele nunca ia se rebaixar a ponto de perguntar ao proprietário se o cabelo dela ainda era escuro, quase preto, seu corpo alto e esguio e com quase nada de seios.
 Ele não tinha ϐicado com uma impressão muito marcante da ϐilha. O cabelo era loiro, mas muito provavelmente tingido. Não mais de vinte anos, embora naqueles dias fosse difícil de dizer. Basicamente controlada pelo namorado. 
Fugindo de casa, fugindo das contas a pagar, partindo o coração dos pais, tudo por uma coisinha aborrecida como aquele namorado. 
Onde ϐicava Kelowna? Em algum lugar do oeste. Alberta, Colúmbia Britânica. Longe para vir procurar. Claro que aquela mãe era uma mulher persistente. Uma otimista. Provavelmente isso ainda era verdade quanto a ela. T
inha se casado. A não ser que a menina tivesse nascido fora do matrimônio e isso lhe parecia muito improvável. Ela se prepararia, estaria pronta da próxima vez, tragédia não era com ela. E nem com a menina. Ela ia voltar para casa quando tivesse se cansado daquilo. Podia trazer com ela um bebê, mas isso hoje em dia era a moda. 


                                                * * *

 Logo antes do Natal do ano de 1940, houve uma balbúrdia no colegial. Tinha chegado até o terceiro andar onde o alarido das máquinas de escrever e de calcular normalmente mantinha todos os ruídos do térreo afastados. 
As meninas mais velhas da escola ϐicavam lá em cima — meninas que no ano anterior tinham estudado latim e biologia e história da Europa e agora estavam aprendendo datilografia. 
Uma delas era Ileane Bishop, que mais do que curiosamente era filha de pastor, apesar de não haver bispos na Igreja Unida do seu pai. Ileane tinha chegado com a família quando estava na nona série e durante cinco anos, graças ao costume de se acomodarem os alunos por ordem alfabética, ela tinha ϐicado atrás de Jackson Adams. Naquela época, a timidez escandalosa de Jackson e seu silêncio já tinham sido aceitos por todos os outros alunos, mas era coisa nova para ela, e durante os cinco anos seguintes, ao não reconhecer essas características, ela tinha gerado um derretimento. 
Ela pedia borrachas emprestadas e bicos de pena e instrumentos de geometria para ele, não tanto para quebrar o gelo quanto por ser naturalmente desligada. 
Eles trocavam respostas aos problemas das aulas e corrigiam um as provas do outro. 
Quando se encontravam na rua eles se diziam oi, e para ela o oi dele era na verdade mais que um resmungo — tinha duas vogais e uma certa ênfase. 
Nada mais que isso se presumia por ali, a não ser que eles tinham certas piadas. Ileane não era uma menina tímida, mas era inteligente e reservada e não particularmente popular, e isso pode ter caído bem para ele. 
Da sua posição na escadaria, quando todo mundo veio espiar a bagunça, Ileane ϐicou surpresa ao ver que um dos dois meninos que a provocavam era Jackson. 
O outro era Billy Watts. 
Meninos que apenas um ano antes se sentavam curvados sobre livros e arrastavam os pés obedientemente de uma sala para a outra agora estavam transformados. Com uniformes militares, eles pareciam duas vezes maiores que antes, e aqueles coturnos faziam um tremendo estardalhaço quando eles galopavam por ali. Estavam gritando que as aulas tinham sido canceladas naquele dia, porque todo mundo tinha que se alistar para a guerra. Estavam distribuindo cigarros para todo lado, jogando-os no chão para que meninos que ainda nem faziam a barba pudessem pegá-los. 
Guerreiros descuidados, invasores aos berros. Bêbados até às orelhas. “Eu não sou vagabundo de beira de estrada”, era o que eles estavam gritando. O diretor estava tentando restabelecer a ordem. 
Mas como eles ainda estavam muito no começo da guerra e naquele momento ainda havia uma certa reverência e um respeito especial no que se referia aos meninos que tinham se alistado, ele não pôde demonstrar a intransigência que teria empregado um ano mais tarde. “Ora ora”, ele disse. 
“Eu não sou vagabundo de beira de estrada”, Billy Watts disse a ele. Jackson estava com a boca aberta, provavelmente para dizer a mesma coisa, mas naquele momento seus olhos encontraram os de Ileane Bishop e uma certa informação passou de um para o outro.
 Ileane Bishop entendeu que Jackson estava de fato bêbado, mas que o efeito disso era permitir que ele se ϐizesse de bêbado, e que portanto a bebedeira que ele mostrava podia ser controlada. (Billy Watts estava apenas bêbado, completamente.) 
Tendo entendido isso, Ileane desceu as escadas, sorrindo, e aceitou um cigarro que então segurou apagado entre os dedos. 
Ela deu o braço aos dois heróis e os levou em desϐile para fora da escola. Lá fora eles acenderam os cigarros. 
Houve certo conϐlito de opiniões a respeito disso depois, na congregação do pai de Ileane. 
Alguns disseram que Ileane não tinha realmente chegado a fumar o cigarro, só ϐingido, para paciϐicar os meninos, enquanto outros diziam que certamente tinha. 
Fumado. A filha do pastor deles. Fumado.
 Billy de fato abraçou Ileane e tentou beijá-la, mas tropeçou e se sentou nos degraus da escola e cacarejou como um galo. Em dois anos ele estaria morto.
 Enquanto isso, ele tinha que ser levado para casa, e Jackson lhe deu um puxão para que conseguissem passar os braços dele por cima dos ombros dos dois e arrastá-lo dali. Por sorte a casa dele não ϐicava longe da escola. 
Eles o deixaram ali, desmaiado na escada. E aí começaram uma conversa. Jackson não queria ir para casa. Por que não? Porque sua madrasta estava lá, ele disse. Ele odiava a madrasta. Por quê? Não havia motivo. 
Ileane sabia que a mãe dele tinha morrido num acidente de carro quando ele era bem pequeno — isso às vezes era mencionado para explicar a timidez dele. Ela achava que a bebida provavelmente o fazia exagerar, mas não tentou fazê-lo falar mais do assunto. 
“Tudo bem”, ela disse. “Você pode ficar lá em casa.” 
Aí aconteceu de a mãe de Ileane estar fora, cuidando da avó doente de Ileane. Ileane na época se encarregava da casa meio aos trancos para o pai e os dois irmãos mais novos. 
Isso era indesejável, na opinião de certas pessoas.
 Não que a mãe dela fosse fazer um escândalo, mas ela ia querer saber os detalhes e tudo mais, e quem era esse menino? No mínimo ela teria feito Ileane ir para a escola como sempre. Um soldado e uma moça, de repente tão próximos. 
Onde antes nada havia além de logaritmos e declinações. 
O pai de Ileane não prestou atenção neles. Estava mais interessado na guerra do que alguns membros da igreja achavam que coubesse a um pastor estar, e isso o deixava orgulhoso de ter um soldado em casa. Além do mais, ele estava infeliz por não poder mandar a ϐilha para a universidade. 
Ele tinha que guardar dinheiro para mandar os irmãos dela um dia, eles iam ter que ganhar a vida. Isso o tornava condescendente com tudo que Ileane fazia. Jackson e Ileane não iam ao cinema. Eles não iam ao salão de baile. 
Eles saiam para caminhar, independente do tempo e muitas vezes à noite.
 Às vezes eles entravam no restaurante e tomavam café, mas não tentavam ser simpáticos com ninguém. 
O que havia com eles, estariam se apaixonando? 
Quando estavam caminhando eles às vezes roçavam um na mão do outro, e ele se forçou a se acostumar com aquilo. 
Aí quando ela passou do acidental para o deliberado, ele descobriu que também podia se acostumar, superando um certo desalento. Ele foi ficando mais calmo, e estava até preparado para beijar. Ileane foi sozinha até a casa de Jackson para pegar a bolsa dele. A madrasta lhe mostrou seus dentes falsos e brilhantes e tentou fazer cara de quem estava pronta para se divertir. 
Ela perguntou o que eles estavam aprontando. 
“Melhor você cuidar disso aí”, ela disse.
 Ela tinha fama de ser boquirrota. Boca suja, para falar a verdade. “Pergunte se ele lembra que eu limpava a bunda dele”, ela disse. Ileane, relatando isso, disse que ela própria tinha sido especialmente educada, até esnobe, porque não conseguia suportar aquela mulher. Mas Jackson ϐicou vermelho, encurralado e desesperado, como costumava ficar quando lhe faziam uma pergunta na escola. 
“Eu não devia nem ter mencionado ela”, Ileane disse. 
“Você se acostuma com isso de fazer caricaturas das pessoas, quando mora num presbitério.” 
Ele disse que tudo bem. Aquela vez acabou sendo a última licença de Jackson. Eles trocavam cartas. 
Ileane escrevia dizendo que havia terminado as aulas de datilograϐia e estenograϐia e arrumara um emprego num escritório da prefeitura. Era decididamente satírica quanto a tudo, mais do que na época da escola. 
Talvez ela achasse que quem estava na guerra precisava de piadas. E fazia questão de salientar que estava por dentro de tudo. Quando as pessoas providenciavam casamentos às pressas no escritório do escrivão, ela se referia à Virgem Noiva.
 E quando mencionava algum pastor que estava de visita no presbitério e ia dormir no quarto de hóspedes, ela dizia que ϐicava pensando se aquele colchão não ia inspirar Sonhos Peculiares. Ele escrevia falando das multidões no Île de France e das manobras para evitar submarinos. 
Quando chegou à Inglaterra ele comprou uma bicicleta e lhe contou dos lugares que tinha ido ver pedalando, quando não estavam fora do território autorizado. Essas cartas, apesar de mais prosaicas que as dela, vinham sempre assinadas “Com amor”. Quando chegou o Dia D, houve o que ela chamou de um silêncio agonizante, mas ela compreendeu o motivo, e quando ele escreveu de novo ϐicou tudo bem, apesar de não serem permitidos detalhes. Nessa carta ele falou nos mesmos termos em que ela estava falando, de casamento. 
E ϐinalmente o Dia da Vitória da Europa e a viagem para casa. Havia inúmeras estrelas cadentes, ele disse, lá no alto. Ileane tinha aprendido a costurar. Ela estava fazendo um vestido novo de verão para homenagear a volta dele, um vestido de seda sintética verde-limão com uma saia rodada e manga curtinha, para usar com um cintinho estreito de couro dourado. Ela queria enrolar uma ϐita do mesmo tecido verde na copa do chapéu de verão. 
“Estou descrevendo tudo isso para você poder me reconhecer e saber que sou eu e não sair correndo com alguma outra mulher bonita que por acaso esteja na estação.” 
Ele lhe enviou sua carta de Halifax, dizendo que estaria no trem noturno de sábado. Ele disse que se lembrava muito bem dela e que não havia risco de confundi-la com outra mulher, mesmo que a estação por acaso estivesse cheia delas naquela noite. 
Na última noite que passaram juntos antes de ele partir, eles tinham ϐicado até tarde na cozinha do presbitério onde havia o retrato do rei George VI que se via por toda parte naquele ano. E as palavras embaixo dele. E disse eu ao homem postado junto ao portão do ano: 
“Dai-me uma lanterna para que eu possa andar em segurança rumo ao desconhecido”. 
E ele respondeu: “Entra na escuridão e põe tua mão na mão de Deus. Isso te será melhor que a luz e mais seguro que um caminho conhecido”. 
Aí eles subiram bem quietinhos e ele foi dormir no quarto de hóspedes. Sua vinda até ele deve ter sido um acordo mútuo, mas talvez ele não tivesse entendido direito para quê. Foi um desastre. Mas pelo modo como ela agiu, ela podia nem ter percebido. Quanto maior o desastre, tanto mais freneticamente ela se empenhava. Não havia como fazê-la parar de tentar, ou explicar. Será que era possível que uma garota soubesse tão pouco? 
Eles ϐinalmente se separaram como se tudo tivesse transcorrido bem. E na manhã seguinte se disseram adeus na presença do pai e dos irmãos dela. Em pouco tempo começaram as cartas. Ele se embebedou e tentou de novo, em Southampton. 
Mas a mulher disse: “Chega, meu filho, você está apagado”. 
Uma coisa de que ele não gostava era que as mulheres se enfeitassem. Luvas, chapéus, saias farfalhantes, com todas as exigências e os incômodos. Mas como ela podia saber? Verde-limão. Ele não tinha certeza se sabia que cor era essa. Soava como ácido. 
Aí lhe ocorreu com toda tranquilidade que uma pessoa podia simplesmente não estar lá. Será que ela diria para si mesma ou diria para os outros que devia ter se enganado com a data? Ele conseguia se forçar a acreditar que ela acharia alguma mentira, certeza. Ela era inventiva, afinal. 
Agora que ela saiu para a rua, Jackson sente de fato um desejo de vê-la. 
Ele nunca ia conseguir perguntar ao proprietário como ela estava, se o cabelo era escuro ou grisalho, e se ela ainda era magrela ou tinha engordado. 
A voz dela, mesmo no meio da aϐlição, permanecia maravilhosamente igual. Atraindo toda a atenção para si própria, em seus níveis musicais, e ao mesmo tempo preparando seus sinto-muitíssimos. Ela tinha vindo de longe, mas era uma mulher persistente. Dava para dizer isso. E a ϐilha ia voltar. Mimada demais para ϐicar longe dela. Qualquer ϐilha de Ileane seria mimada, acomodando o mundo e a verdade às suas necessidades, como se nada pudesse contrariá-la por muito tempo. Se ela o tivesse visto, será que o reconheceria? 
Ele achava que sim. Apesar das mudanças. E o teria perdoado, sim, ali mesmo. Para manter a opinião que tinha a seu próprio respeito, sempre. 
No dia seguinte, toda e qualquer tranquilidade que ele tivesse experimentado diante da ideia de Ileane sumir de sua vida havia desaparecido. Ela conhecia aquele lugar, podia voltar. 
Podia se acomodar ali por um tempo, caminhando por aquelas ruas, tentando achar uma pista fresca. Inquirindo as pessoas com humildade, mas não humildade de fato, com aquela voz súplice, mas mimada. 
Era possível que ele topasse com ela bem ali diante da porta. Surpresa apenas por um momento, como se tivesse sempre esperado por ele. Apresentando as possibilidades da vida, como ela achava que podia fazer. Dava para trancar as coisas, bastava alguma determinação. 
Quando ele tinha só seus seis ou sete anos, ele trancou as brincadeirinhas da madrasta, o que ela chamava de brincadeirinhas ou provocaçõezinhas. Ele tinha saído correndo na rua de noite e ela o pôs para dentro, mas viu que ele ia fugir de verdade se ela não parasse, e então parou. E disse que ele era terrível, porque ela nunca pôde dizer que alguém a odiava. 
Ele passou mais três noites no ediϐício chamado Bonnie Dundee. Escreveu para o proprietário um relatório de cada apartamento e registrou quando se deveria cuidar da manutenção e no que ela consistiria. 
Disse que tinha sido chamado em algum lugar, sem indicar por que ou para onde. 
Esvaziou sua conta no banco e embalou as poucas coisas que possuía. 
À noite, tarde da noite, entrou no trem. Ficou adormecendo e acordando a noite toda e num desses pedaços de sono viu os pequenos menonitas passando na carroça deles. 
E ouviu suas vozinhas cantando.
 De manhã ele desceu em Kapuskasing. 
Podia sentir o cheiro das serrarias, e sentiu-se encorajado pelo ar mais fresco. 
Trabalhar ali, não ia faltar trabalho numa cidade madeireira. 

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