segunda-feira, 12 de julho de 2021

Um último encontro com o inimigo. Flannery O'Connor





    O general Sash tinha cento e quatro anos de idade. Morava com sua neta, Sally Poker Sash, de sessenta e dois, que todas as noites rezava de joelhos para que ele vivesse até ela se formar. O general não dava muita importância à tal formatura na faculdade, mas tinha plena certeza de chegar até lá. Viver passara a ser um tal hábito para ele, que lhe era impossível conceber outro estado. Uma solenidade de formatura não correspondia exatamente à sua ideia de coisa interessante, mas ela tinha dito que ele ficaria no palco, de farda, que haveria um desfile dos professores e estudantes em suas becas, mas nada se compararia a ele de farda. Disso bem que ele sabia, nem precisavam lhe dizer, e o maldito desfile, ainda que em marcha de ida e volta ao inferno, não lhe dizia nada. Gostava era de desfiles com carros alegóricos cheios de Miss Américas e Miss Daytona Beaches e Rainhas do Algodão. De cortejos como aquele, não via a menor necessidade, e um séquito de professores, no seu modo de ver, era tão morto como o rio Estige. Contudo, estava disposto a se sentar no palco, de farda, para que todos pudessem vê-lo.


    Já Sally Poker não tinha a mesma certeza de que ele viveria até sua formatura. Não havia nele, nos últimos cinco anos, nenhuma mudança perceptível, mas ela temia ser traída no seu momento de triunfo, já que muitas vezes o fora. Há vinte anos, sem faltar uma única vez, fazia os cursos de verão, porque quando começou a lecionar ainda não havia essa coisa de diploma. Naquele tempo, dizia ela, era tudo normal, mas nada tinha sido normal desde os seus dezesseis anos, nem nos últimos vinte verões passados, quando, em vez de ir descansar, ela era obrigada a carregar sua mala no calor escaldante para a faculdade estadual de educação, e quando voltava a trabalhar, no outono, apesar de sempre ensinar do modo exato como tinha aprendido a não fazer, isso era uma vingança fraca, que não satisfazia seu senso de justiça. Queria o general na formatura porque queria mostrar no que ela estava apoiada ou, como costumava dizer, “no que ela tinha por trás”, e eles não. Não se aplicava, esse eles, a ninguém em particular. Mas sim a todos os novos-ricos que viraram o mundo de pernas para o ar, comprometendo o modo honrado de vida.

Queria estar no tablado, em agosto, com o general sentado na cadeira de rodas, no palco, por trás dela, e queria levantar bem alto a cabeça, como se estivesse dizendo: “Olhem só! Olhem bem para ele! Meu antepassado, seus emergentes! Um ancião honrado e coberto de glórias que defende as velhas tradições! Dignidade! Honra! Coragem! Olhem bem para ele!” Certa noite, dormindo, ela gritou: “Olhem só! Olhem bem para ele”, e ao virar a cabeça o viu sentado por trás dela na cadeira de rodas, com uma expressão terrível no rosto e sem nenhuma roupa no corpo, a não ser seu quepe de general, e ela acordou e não teve coragem de voltar a dormir naquela noite.


    O general, por sua vez, nem cogitaria assistir à formatura se ela não lhe tivesse prometido que tomaria as providências para ele estar no palco. Ele gostava de estar num palco, fosse qual fosse. Considerava-se um homem ainda muito bonito. Quando podia ficar em pé, media um metro e sessenta, num corpo bem-socado de atleta. Usava o cabelo branco comprido, até os ombros, mas não usava dentadura, por achar que sem ela seu perfil ficava melhor. Quando vestia sua farda de gala de general, estava mais do que certo de não haver ninguém, em parte alguma, que a ele se igualasse.


    Não foi essa a farda que usou durante a Guerra Civil, quando não era, de fato, general. Provavelmente era soldado de infantaria; mas não se lembrava mais do que tinha sido; na realidade, nem se lembrava mais daquela guerra. Era como seus pés, que agora se penduravam na extremidade do corpo, secos, sem sensações, enrolados na manta azul e cinza que Sally Poker fez em crochê, quando criança. Ele também não se lembrava da Guerra Hispano-Americana, na qual tinha perdido um filho; nem se lembrava desse filho. Não tinha a menor utilidade para a história, porque não esperava reencontrá-lo. A seu ver, a história estava ligada a cortejos solenes, e a vida a desfiles festivos, e era desses que ele gostava. Viviam lhe perguntando se ele se lembrava disso ou daquilo — um rol enjoativo e obscuro de perguntas sobre o passado. Havia apenas um acontecimento do passado que tinha alguma significação para ele, e sobre o qual gostava de conversar: o dia em que recebeu a farda de general, doze anos atrás, e participou da première.


    “Uma première que eles fizeram lá em Atlanta”, contaria às visitas na varanda. “Eu, rodeado de meninas lindas. Não era nada assim, não era nada provinciano, sabem? Foi um evento nacional, e eu tomei parte — eu estava no palco. Gente dura não entrava. Eram dez dólares por pessoa para entrar, com traje a rigor obrigatório. Eu usei a minha farda, que uma bela garota foi me levar no quarto de hotel naquela tarde.”


    “Numa suíte do hotel, vovô”, diria Sally Poker, piscando para as visitas, “e eu estava lá com você. Em um quarto de hotel, sozinho com uma pequena, você não esteve não.”


    “Se estivesse, saberia o que fazer”, diria o general com um olhar penetrante, e as visitas cairiam na gargalhada. “Essa moça era de Hollywood, na Califórnia”, continuava ele, “e nem estava no elenco. São tantas as garotas bonitas que eles têm por lá, e das quais não precisam, que as chamam de extras e só as usam para entregar presentes e tirar fotografias. Tiraram meu retrato com ela. Aliás, não, com duas delas. Uma de cada lado e eu no meio, segurando-as pela cinturinha de nada, de moeda de meio dólar.”


    Sally Poker, nesse ponto, interromperia outra vez. “Quem lhe deu a farda, vovô, foi Mr. Govisky, que também me deu um broche que era um buquezinho lindíssimo. Ah, se vocês tivessem visto! Era feito de pétalas de gladíolo separadas, pintadas de dourado e remontadas para parecer uma rosa. Uma coisa linda mesmo. Ah, se vocês tivessem visto. Era…”


    “Era grande como a cabeça dela”, rosnava o general. “E era eu que estava falando. Pois então me deram a farda e me deram a espada e disseram: ‘Atenção, general, nada de guerra contra nós, hein? Queremos só que suba ao palco marchando, hoje à noite, quando o senhor for chamado, e responda a algumas perguntas. Acha que pode fazer isso?’ ‘Se acho que posso fazer isso?’, disse eu, e mais: ‘Ouçam bem, eu já estava fazendo coisas antes de vocês nascerem’, e eles riram.”


    “Ele foi a atração do evento”, dizia Sally Poker, embora não gostasse muito de lembrar da première, devido ao que aconteceu com seus pés. Tinha comprado um vestido novo para a ocasião — um longo de crepe preto, com fivela de pedras e um bolero — e um par de sandálias prateadas para usar com o conjunto, porque teria de subir ao palco com ele, amparando-o. Tudo foi preparado muito bem. Uma limusine de verdade chegou às dez para as oito e levou-os para o cine-teatro, parando embaixo da marquise exatamente na hora certa, depois das grandes estrelas e do diretor e do autor e do governador e do prefeito e de outros menos importantes. A polícia controlou o trânsito, para não engarrafar, e havia cordões de isolamento para manter o povo afastado. Todos que não podiam entrar puderam vê-los saltar da limusine para ingressar na profusão de luzes. Do saguão vermelho e dourado, uma recepcionista de minissaia e com quepe dos confederados levou-os aos seus lugares marcados. A plateia já estava completa e um grupo de mulheres da União das Filhas de Confederados começou a aplaudi-lo, assim que viram o general fardado, sendo logo seguidas por todo mundo. Algumas poucas celebridades chegaram ainda depois deles, e as portas então foram fechadas e as luzes se apagaram.


    Surgiu um jovem louro, de cabelo ondulado, que se disse representante da indústria cinematográfica e começou a apresentar as pessoas. Cada celebridade anunciada por ele subia ao palco e dizia como se sentia feliz por estar ali participando do evento. O general e sua neta foram incluídos em décimo sexto lugar na programação. Apresentaram-no como general Tennessee Flintrock Sash, da Confederação, apesar de Sally Poker ter dito a Mr. Govisky que seu nome era George Poker Sash e que ele nunca passara de major. Ela o ajudou a se levantar da poltrona, mas seu próprio coração batia tanto que ela nem sabia se aguentaria a emoção.


    A passos lentos, lá foi o velho pelo corredor, com a cabeça branca para o alto, toda orgulhosa, e o chapéu aplicado sobre o coração. A orquestra começou a tocar suavemente o hino de combate dos confederados, e as integrantes da UFC se levantaram em grupo, só voltando a sentar-se quando o general já estava no palco. Quando ele chegou ao ponto central, com Sally Poker logo atrás, a guiá-lo pelo cotovelo, a orquestra atacou o hino em seu mais alto volume, e o velho, com autêntica presença cênica, fez uma continência vigorosa e trêmula, mantendo-se em posição de sentido até a última nota. Duas das recepcionistas de minissaia e quepe militar seguravam por trás deles duas bandeiras cruzadas, uma da Confederação, outra da União.


    O general plantou-se bem no centro do foco do refletor, que pegava uma fatia esquisita de Sally Poker, em forma de crescente lunar — com o broche, a fivela de pedras e a mão que segurava uma luva branca e um lenço. O jovem louro de cabelo ondulado inseriu-se no círculo de luz e disse que estava imensamente feliz por ter ali essa noite, naquele grande evento, um homem que tinha lutado e sangrado nas batalhas que eles logo veriam ousadamente representadas na tela, e: “Diga-me, general”, perguntou, “qual é mesmo a sua idade?”


    “Noooventa e dois!”, gritou o general.


    Pela reação do rapaz, foi a coisa mais importante dita durante todo o transcorrer da noite. “Senhoras e senhores”, disse ele, “vamos dar ao general a maior salva de palmas!”, e os aplausos foram imediatos e o jovem fez um sinal com o polegar para indicar a Sally Poker que ela devia levar o velho de volta ao seu lugar agora, para que a pessoa seguinte pudesse ser apresentada; mas o general não tinha acabado. Mantinha-se inamovível, no centro exato do foco, de pescoço espichado para a frente e boca só aberta um pouquinho, enquanto seus vorazes olhos cinzentos absorviam tanto aplauso e esplendor. Para afastar a neta, deu-lhe uma cotovelada. “Sou sempre jovem assim”, bradou, “porque vivo beijando as jovens bonitas!”


    Uma grande barulhada de aplauso espontâneo contrapôs-se a isso, e foi bem nesse instante que Sally Poker, olhando para seus pés, constatou que no alvoroço de aprontar-se ela havia se esquecido de trocar de sapatos: eram os sapatões marrons de andar em casa, bem ordinários, que se projetavam da base de seu vestido. Ela deu um puxão no general, e quase correu com ele para fora do palco. Ele, indignado por não ter podido dizer como se sentia contente por estar ali participando do evento, no caminho de volta para seu lugar ainda insistia em falar, tão alto como lhe era possível: “Estou muito contente de estar aqui nesta première com todas essas garotas bonitas”, mas já havia outra celebridade avançando pelo outro corredor e ninguém lhe deu atenção. Durante o filme, o general dormiu, soltando de vez em quando em seu sono umas exclamações valorosas.


    Sua vida, a partir de então, não tinha sido muito interessante. Seus pés estavam agora completamente sem vida, os joelhos se moviam como velhas dobradiças emperradas, e os rins só funcionavam quando queriam, mas seu obstinado coração continuava batendo. Passado e futuro, para ele, eram a mesma coisa, um esquecido e o outro não lembrado; nenhuma consciência ele tinha, como um gato, de estar morrendo. Todos os anos, no Dia dos Confederados, era arrumado e cedido ao Capitol, o museu da cidade, onde o exibiam da uma às quatro da tarde numa sala mofada cheia de fotografias antigas, uniformes antigos, armas antigas e documentos históricos. Tudo cuidadosamente preservado em armários de vidro, para que as crianças não pusessem as mãos. Ele usava a farda de general da première e, com a expressão carregada, sentava-se dentro de uma pequena área isolada por cordas. Nada nele indicava que estivesse vivo, a não ser um movimento esporádico dos seus olhos de um cinzento leitoso. Porém, quando uma criança atrevida mexeu em sua espada, seu braço se esticou num instante para dar um tapinha e afastar a mão intrujona. Na primavera, quando as casas de idosos abriam-se a peregrinações, ele era convidado para envergar sua farda e dar, sentado em algum ponto estratégico, um certo clima ao ambiente. Quase sempre, limitava-se a dizer asperezas aos visitantes, mas às vezes falava sobre a première e as garotas bonitas.


    Se ele morresse antes da formatura de Sally Poker, ela achava que morreria também. No começo do período de verão, antes mesmo de saber se ia ser aprovada, ela dissera ao reitor que seu avô, o general Tennessee Flintrock Sash, da Confederação, estaria presente em sua formatura e que ele tinha cento e quatro anos de idade e era totalmente lúcido. Convidados especiais eram sempre bem-vindos, podendo subir ao palco e ser apresentados. Ao combinar com um sobrinho escoteiro, John Wesley Poker Sash, para empurrar a cadeira do general, ela pensou que maravilha seria ver o velho em seu intrépido cinza, e o jovem em seu cáqui imaculado — o velho e o novo, como tão adequadamente pensou —, que estariam por trás dela no palco, quando ela recebesse seu diploma.


    Tudo saiu quase exatamente conforme planejado por ela. No verão, enquanto esteve fora, na escola, o general ficou com outros parentes, e foram esses que o levaram, junto com John Wesley, o escoteiro, à sua festa de formatura. Um repórter foi ao hotel em que eles estavam e fotografou o general com Sally Poker de um lado e John Wesley do outro. O general, já tendo suas fotos tiradas com garotas bonitas, nem ligou para essa. Completamente esquecido de que tipo era o evento do qual ia participar, ele porém sabia que tinha de usar sua farda e carregar a espada.


    Na manhã da formatura, Sally Poker teve de tomar parte no cortejo acadêmico, com os formandos de educação básica, e não pôde ir cuidar em pessoa do lugar para o general no palco — mas John Wesley, um lourinho gorducho de dez anos, com cara de executivo, garantiu que se encarregaria de tudo. Ela foi para o hotel de beca e enfiou a farda no velho, que se quebrava de tão frágil, como aranha seca. “Não está emocionado, vovô?”, ela perguntou. “Eu estou morrendo de emoção!”


    “Vê se bota a espada no meu colo”, disse o velho, “para essa porra brilhar mais.”


    Ela fez como mandada e recuou um passo para dar-lhe uma olhada. “Você está ótimo!”, disse.


    “Quero mais é que se fodam”, disse o velho em certo tom muito monótono e lento, como se o dissesse às batidas de seu próprio coração. “Que se fodam todos eles e que tudo vá para o inferno.”


    “Calma”, ela disse, “calma.” E saiu toda feliz para ir juntar-se ao cortejo.


    Os formandos já estavam alinhados atrás do prédio de ciências, e ela achou seu lugar assim que a fila começou a andar. Não tinha dormido muito na noite anterior e, quando o fazia, sonhava com a cerimônia, murmurando “Estão vendo ele?” nos intervalos de sono, e acordava todas as vezes bem na hora de se virar de cabeça para o olhar atrás de si. Os formandos tinham de andar três quarteirões no sol quente, de beca preta, e ocorreu-lhe pensar, enquanto afoita ela avançava entre eles, que quem já se empolgasse com o brilho do cortejo acadêmico teria apenas de esperar para ver o velho general em seu intrépido cinza e, imaculado e resoluto, o jovem escoteiro a empurrar sua cadeira no palco, com uns raios de sol se refletindo na espada. Ela achava que John Wesley, àquela altura, já deveria estar com o velho pronto, atrás do palco.


    O cortejo negro serpenteou por dois quarteirões e entrou na rua principal que levava ao auditório. As famílias se distribuíam pelo gramado, tentando localizar seus filhos. Homens suspendiam os chapéus, para enxugar o suor da testa, e mulheres levantavam ligeiramente seus vestidos nos ombros, para que não grudassem nas costas. Já os formandos davam a impressão, em suas becas pesadas, de que as últimas gotas de ignorância eram-lhes agora extraídas do corpo. O sol faiscava nos para-lamas dos carros, batia nas colunas dos prédios e impelia o olhar de um a outro ponto cintilante. Sally Poker foi assim atraída pela grande máquina vermelha de Coca-Cola instalada bem ao lado do auditório. Ali ela viu o general estacionado em sua cadeira, de cenho franzido e sem chapéu no sol abrasador, enquanto John Wesley, com a camisa amarrotada para fora da calça, e colado na máquina, da cara às coxas, tomava um refrigerante. Saiu da forma, foi correndo até eles e confiscou a garrafa. Deu uma endireitada no menino, enquanto lhe dava uns trancos, ajeitando sua roupa, e na cabeça do velho ela enfiou o chapéu. “Agora leva ele pra lá!”, disse, o dedo apontado, inflexível, para uma porta lateral do prédio.


    O velho general, por sua vez, sentia-se como se um buraquinho, no alto de sua cabeça, estivesse se alargando. O garoto o empurrou rapidamente, descendo pela calçada para subir por uma rampa até o prédio, chocar-se contra a entrada do palco e deixá-lo no ponto de antemão combinado, e o general, olhando em frente, viu cabeças que pareciam flutuar em conjunto e olhos que se moviam de uma face a outra. Várias figuras de beca preta, aproximando-se, pegaram sua mão e apertaram. Todo um cortejo negro subia pelas laterais para vir formar diante dele, ao som de música solene, uma grande mancha. A música parecia lhe entrar cabeça adentro, pelo buraquinho, e num segundo ele temeu que o cortejo quisesse passar também por ali.


    Não sabia que cortejo era aquele, mas nele havia, sim, algo de familiar. Devia ser familiar para ele, já que vinha ali encontrá-lo, mas não era uma coisa de que gostasse, um cortejo assim. Um cortejo que viesse vê-lo de perto, pensou, irritado, precisava ter carros alegóricos cheios de garotas bonitas, como os que tinham desfilado antes da première. Agora, devia ser qualquer coisa ligada à história,como sempre faziam. Coisa, para ele, sem nenhum interesse. O que aconteceu outrora nada significava para quem vive agora, e ele era um homem de hoje.


    Quando todo o cortejo já havia fluído para a mancha negra, uma figura em frente, embecada, começou a discursar. Falou algumas frases sobre história e o general decidiu que não ouviria, mas as palavras continuavam penetrando pelo orifício que ele tinha no crânio. Ouviu seu próprio nome chamado quando a cadeira saiu em disparada e o garoto escoteiro, curvando-se, fez uma reverência à plateia. “Seu merda”, o velho tentou dizer, “sai da frente que eu posso ficar em pé” — mas foi mandado para trás outra vez, de um só arranco, antes de conseguir se levantar para cumprimentar os presentes. Era por ele, achava, que faziam tanto barulho. Mas, se sua parte terminava ali, não pretendia escutar mais nada. Palavra alguma lhe teria chegado, de resto, se não fosse o buraco na cabeça. Pensou em meter um dedo em cima, para vedá-lo, mas o buraco era mais largo que o dedo e parecia tornar-se cada vez mais fundo.


    Outra beca preta tinha ocupado o lugar da primeira e agora estava falando. Ele ouviu seu nome mencionado de novo, mas não era dele que falavam; continuavam, isto sim, a falar de história. “Se nos esquecermos de nosso passado”, dizia o orador, “não nos lembraremos de nosso futuro, o que aliás dará na mesma, pois que futuro não teremos.” O general ouviu, a pouco e pouco, algumas dessas palavras. Tinha se esquecido da história e não era sua intenção relembrá-la. Tinha se esquecido do nome e do rosto de sua esposa e dos nomes e rostos de seus filhos, ou até mesmo se tinha esposa e filhos, e dos nomes de lugares e dos próprios lugares e do que neles tinha acontecido.


    O buraco na cabeça o deixava bem irritado, pois não era coisa com a qual contasse, naquele evento. Foi a lenta música negra que o abriu, e embora ela, em sua maior parte, tivesse permanecido de fora, outra parte entrou pelo buraco, indo cada vez mais fundo para embaralhar-se aos seus pensamentos e trazer as palavras que ele ouvia às paragens trevosas de seu cérebro. Ele ouvia as palavras, Chickamauga, Shiloh, Johnston, Lee, e sabia ser ele a inspiração de todas, que para ele porém nada queriam dizer. Tentou lembrar se havia sido general em Chickamauga ou em Lee. Depois tentou se ver a cavalo no meio de um carro alegórico cheio de garotas bonitas, avançando lentamente pelo centro de Atlanta. Mas nada adiantava, as velhas palavras já se moviam agitadas pelo interior de seu cérebro, como se tentassem se desvencilhar de onde estavam para adquirir vida própria.


    O orador, tendo acabado de falar de uma guerra, já passara à guerra seguinte e começava nesse instante a abordar uma outra, sendo suas palavras, do mesmo modo que o cortejo negro, vagamente familiares e irritantes. Um dedo de música, na cabeça do general, se alongava na sondagem de pontos que seriam palavras, deixando que às palavras chegasse um pouco de luz, ajudando a dar-lhes vida. Quando as palavras passaram a vir em sua direção ele disse: “Que merda, eu não queria saber disso!”, recuando pelas beiradas para sair do caminho. Viu então a figura de beca preta sentar-se, e houve um barulho, e a mancha formada à sua frente começou a se estender e avançar até ele, vinda de ambos os lados, ao som da lenta música negra, e ele disse: “Para, porra! Não posso fazer mais de uma coisa de cada vez!” Não podia se proteger das palavras e ao mesmo tempo assistir ao cortejo, e as palavras lhe vinham com velocidade frenética. Sentiu-se como se estivesse correndo para trás e as palavras o tomassem por alvo como armas de fogo, quase o atingindo quando disparavam, cada vez mais perto. Virou-se e começou a correr o quanto podia, mas percebeu que era para as palavras, justamente, que ele estava correndo. Corria em meio a uma torrente delas, e ao enfrentá-las lançava imprecações aguçadas. Quando a música se avolumou a persegui-lo, abriu-se inteiro para ele o passado, a partir de ponto algum, e ele sentiu seu corpo perfurado em cem lugares distintos por fortes estocadas de dor e ali caiu, recebendo com uma imprecação cada investida nova. Viu o rosto estreito da esposa, que pelos óculos homem de hoje.


    Quando todo o cortejo já havia fluído para a mancha negra, uma figura em frente, embecada, começou a discursar. Falou algumas frases sobre história e o general decidiu que não ouviria, mas as palavras continuavam penetrando pelo orifício que ele tinha no crânio. Ouviu seu próprio nome chamado quando a cadeira saiu em disparada e o garoto escoteiro, curvando-se, fez uma reverência à plateia. “Seu merda”, o velho tentou dizer, “sai da frente que eu posso ficar em pé” — mas foi mandado para trás outra vez, de um só arranco, antes de conseguir se levantar para cumprimentar os presentes. Era por ele, achava, que faziam tanto barulho. Mas, se sua parte terminava ali, não pretendia escutar mais nada. Palavra alguma lhe teria chegado, de resto, se não fosse o buraco na cabeça. Pensou em meter um dedo em cima, para vedá-lo, mas o buraco era mais largo que o dedo e parecia tornar-se cada vez mais fundo.


    Outra beca preta tinha ocupado o lugar da primeira e agora estava falando. Ele ouviu seu nome mencionado de novo, mas não era dele que falavam; continuavam, isto sim, a falar de história. “Se nos esquecermos de nosso passado”, dizia o orador, “não nos lembraremos de nosso futuro, o que aliás dará na mesma, pois que futuro não teremos.” O general ouviu, a pouco e pouco, algumas dessas palavras. Tinha se esquecido da história e não era sua intenção relembrá-la. Tinha se esquecido do nome e do rosto de sua esposa e dos nomes e rostos de seus filhos, ou até mesmo se tinha esposa e filhos, e dos nomes de lugares e dos próprios lugares e do que neles tinha acontecido.


    O buraco na cabeça o deixava bem irritado, pois não era coisa com a qual contasse, naquele evento. Foi a lenta música negra que o abriu, e embora ela, em sua maior parte, tivesse permanecido de fora, outra parte entrou pelo buraco, indo cada vez mais fundo para embaralhar-se aos seus pensamentos e trazer as palavras que ele ouvia às paragens trevosas de seu cérebro. Ele ouvia as palavras, Chickamauga, Shiloh, Johnston, Lee, e sabia ser ele a inspiração de todas, que para ele porém nada queriam dizer. Tentou lembrar se havia sido general em Chickamauga ou em Lee. Depois tentou se ver a cavalo no meio de um carro alegórico cheio de garotas bonitas, avançando lentamente pelo centro de Atlanta. Mas nada adiantava, as velhas palavras já se moviam agitadas pelo interior de seu cérebro, como se tentassem se desvencilhar de onde estavam para adquirir vida própria.


    O orador, tendo acabado de falar de uma guerra, já passara à guerra seguinte e começava nesse instante a abordar uma outra, sendo suas palavras, do mesmo modo que o cortejo negro, vagamente familiares e irritantes. Um dedo de música, na cabeça do general, se alongava na sondagem de pontos que seriam palavras, deixando que às palavras chegasse um pouco de luz, ajudando a dar-lhes vida. Quando as palavras passaram a vir em sua direção ele disse: “Que merda, eu não queria saber disso!”, recuando pelas beiradas para sair do caminho. Viu então a figura de beca preta sentar-se, e houve um barulho, e a mancha formada à sua frente começou a se estender e avançar até ele, vinda de ambos os lados, ao som da lenta música negra, e ele disse: “Para, porra! Não posso fazer mais de uma coisa de cada vez!” Não podia se proteger das palavras e ao mesmo tempo assistir ao cortejo, e as palavras lhe vinham com velocidade frenética. Sentiu-se como se estivesse correndo para trás e as palavras o tomassem por alvo como armas de fogo, quase o atingindo quando disparavam, cada vez mais perto. Virou-se e começou a correr o quanto podia, mas percebeu que era para as palavras, justamente, que ele estava correndo. Corria em meio a uma torrente delas, e ao enfrentá-las lançava imprecações aguçadas. Quando a música se avolumou a persegui-lo, abriu-se inteiro para ele o passado, a partir de ponto algum, e ele sentiu seu corpo perfurado em cem lugares distintos por fortes estocadas de dor e ali caiu, recebendo com uma imprecação cada investida nova. Viu o rosto estreito da esposa, que pelos óculos redondos de aro dourado o olhava criticamente; viu, careca e vesgo, um de seus filhos; e sua mãe veio correndo para ele com uma expressão ansiosa; depois uma sucessão de lugares se precipitou a seus olhos — Chickamauga, Shiloh, Marthasville —, como se o único futuro fosse agora o passado, que ele teria de aguentar. Bruscamente se deu conta de que o cortejo negro já estava então quase a esmagá-lo. Reconhecia-o muito bem, porque por ele seus dias eram fielmente seguidos. E tão desesperado foi o esforço que fez para olhar por cima dele e descobrir o que vem depois do passado, que sua mão só parou de apertar a espada quando a lâmina já atingia o osso.


    Em fila, os formandos atravessavam o palco para receber seus diplomas e cumprimentar o presidente. Em sua vez, Sally Poker, que estava quase lá no fim, subiu ao palco e olhou para o general e o viu sentado, aterrador em sua imobilidade, e de olhos muito abertos, e logo voltou a se virar para a frente, erguendo agora a cabeça em grau bem mais perceptível para ir receber seu diploma. Depois de tudo acabado, já lá fora do auditório, outra vez no sol, ela localizou seus parentes, e juntos esperaram todos, num banco na sombra, que John Wesley chegasse empurrando o velho. Esse astuto escoteiro, além de dar um esbarrão com a cadeira, ao sair do palco pela porta dos fundos, também já a havia trazido em alta velocidade por um caminho de pedras, e agora estava esperando, com o defunto, na longa fila ante a máquina de Coca-Cola.


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