O menino ali ficou, todo mole e emburrado, no meio da sala escura, enquanto o pai o enfiava num paletó xadrez. Seu braço direito estava preso na manga, mas mesmo assim o pai o abotoou e empurrou para a frente, em direção à mão sardenta e pálida que surgia na porta entreaberta.
“Ele não está bem-arrumado”, ouviu-se uma voz alta que vinha do corredor.
“Ora essa, meu Deus, então arrume ele melhor”, resmungou o pai. “São seis horas da manhã.” Ele estava de roupão e descalço. Quando trouxe o menino e quis fechar a porta, deu com ela, que já ali assomava, um esqueleto recoberto de manchas envergando um casacão verde-ervilha e um capacete de feltro.
“E a passagem dele e a minha”, ela disse. “Nós vamos e voltamos de bonde.”
Ele foi até o quarto para apanhar o dinheiro e, quando voltou, os dois, ela e o menino, estavam plantados bem no meio da sala. Ela, examinando o ambiente: “Eu não aguentaria o cheiro dessas guimbas de cigarro, se tivesse de vir ficar com você”, disse, enquanto o endireitava no paletó.
“Aqui está o das passagens”, disse o pai, que andou até a porta e, escancarando-a, ficou à espera.
Ela, depois de conferir o dinheiro, enfiou-o nalgum canto por dentro do casacão e foi ver de perto uma aquarela pendurada ao lado do toca-discos. “Sei que horas são”, disse, observando com atenção as linhas pretas que cruzavam planos quebrados de uma cor muito forte. “Como eu não iria saber? Meu turno começa às dez da noite e só termina às cinco, e eu levo uma hora, vindo no bonde da Vine Street, para chegar até aqui.”
“Ah, sim”, disse ele. “Mas o menino então volta à noite, não é, lá pelas oito ou nove?”
“Talvez um pouco mais tarde”, ela disse. “Nós vamos a uma sessão de cura no rio. É muito raro esse pregador de hoje aparecer por aqui. Mas, quer saber”, acrescentou, apontando o quadro, “eu, por isso, não pagava era nada, eu mesma desenharia.”
“Está bem, Mrs. Connin, então está combinado, nós nos vemos mais tarde”, disse ele, tamborilando na porta.
Uma voz atonal pediu do quarto: “Me traz uma compressa de gelo.”
“Que lástima que a mãe dele esteja doente”, Mrs. Connin disse. “O quê que ela tem?”
“A gente não sabe”, ele murmurou.
“Vamos pedir ao pregador para rezar por ela. É o reverendo Bevel Summers, que já curou muita gente. Quem sabe ela ia estar com ele um dia?”
“É, talvez”, ele disse. “Então até logo mais à noite”, e entrou no quarto e sumiu, deixando que os dois se fossem.
Em silêncio, de olhos e nariz escorrendo, o garotinho olhou para a mulher. Tinha quatro ou cinco anos. Tinha um rosto comprido, o queixo grande, os olhos puxados e muito afastados um do outro. Parecia tão mudo e paciente como um carneiro velho à espera de ser solto.
“Você vai gostar do pastor”, ela disse. “O reverendo Bevel Summers é uma coisa. Só ouvindo ele cantar!”
A porta do quarto se abriu de repente, o pai espichou a cabeça para fora e disse: “Tchau, companheiro. Divirta-se!”
“Tchau”, o menino disse, pulando como se tivesse levado um tiro.
Mrs. Connin deu mais uma olhada na aquarela. E depois eles saíram para chamar o elevador no corredor. “Não, eu não teria desenhado aquilo”, ela disse.
Na rua, os prédios vazios e apagados bloqueavam dos dois lados a manhã cinzenta. “Mais tarde o tempo deve melhorar” disse ela, “e essa é a última vez do ano em que teremos o culto lá na beira do rio. Limpa o nariz, menino!”
Ele já estava a ponto de fazê-lo na manga do paletó, quando ela o interrompeu: “Assim não, é feio”, disse. “Onde está o seu lencinho?”
Ele fingiu que procurava nos bolsos, enquanto ela ficava esperando. “Tem gente que nem liga, deixa a criança sair de qualquer modo”, murmurou para seu próprio reflexo na vitrine da lanchonete. “Mas dá-se um jeito.” Com um lenço florido, vermelho e azul, que tirou do casacão, ela se abaixou e limpou o nariz do garotinho: “Agora assoa”, ela disse, e ele assoou. “Pode guardar, que eu te empresto. Guarda.”
Cuidadosamente ele dobrou e guardou o lenço no bolso, e eles foram andando até a esquina e se encostaram na parede de uma drogaria fechada para esperar o bonde. Mrs. Connin levantou a gola do casaco, para deixá-la bem fechada, por trás, junto com seu chapéu. Suas pálpebras estavam pesando, e ela ameaçava cair no sono ali mesmo. O menino lhe deu uma apertada na mão.
Ela, com voz de quem dormia em pé, perguntou: “Como é o seu nome? Só sei o seu sobrenome. Como foi que não me lembrei de perguntar o seu nome?”
O nome dele era Harry Ashfileld, nome que ele, até então, jamais tinha pensado em mudar. Mas disse: “Bevel.”
Mrs. Connin se desencostou da parede. “Nossa, que coincidência! Eu não te disse que é o nome do pastor?”
“Bevel”, o menino repetiu.
Ela agora o olhava como se ele tivesse se tornado um prodígio. “Vou ver se consigo te apresentar a ele hoje. Ele não é um pastor qualquer, sabe? Ele cura as pessoas, embora não tenha podido fazer nada por Mr. Connin. Mr. Connin não tinha fé, mas estava disposto a tentar de tudo. Foi nó nas tripas que deu nele.”
O bonde apareceu como uma mancha amarela no fim da rua deserta.
“Agora ele está num hospital do governo, onde já lhe tiraram mais da metade da barriga. Digo-lhe que agradeça a Deus pelo que ainda resta, mas ele diz que não é de agradecer. Mas e essa então, hein, quem diria”, ela murmurou, “Bevel!”
Foram para perto dos trilhos esperar. Bevel perguntou: “Ele vai me curar?”
“O quê que você tem?”
“Tô com fome”, ele enfim decidiu.
“Não tomou café?”
“Não tinha dado tempo de eu já ter fome.”
“Quando a gente chegar lá em casa, vamos comer alguma coisa”, ela disse. “Também estou com vontade.”
Pegaram o bonde, sentando-se alguns bancos atrás do motorneiro. E Mrs. Connin pegou Bevel no colo. “Agora sossega um pouco, que eu vou dar uma cochilada”, ela disse. “Não sai daqui do meu colo, ouviu?” Ela deixou a cabeça ir para trás e, enquanto ele a observava, pouco a pouco seus olhos se fecharam e a boca se abriu para mostrar os grandes dentes dispersos que lhe restavam, uns de ouro, outros escuros como seu rosto, que começou a soprar e assoviar como um esqueleto musical. Eram os únicos no bonde, eles dois e o motorneiro. O menino, quando viu que ela já estava dormindo, tirou do bolso o lenço florido, que desdobrou e examinou com atenção. Depois dobrou-o de novo, abriu o zíper de um bolsinho no forro do paletó, escondeu-o ali e logo pegou no sono também.
A casa dela ficava a quase um quilômetro do final da linha do bonde e um pouco recuada da rua. De madeira, tinha uma varanda na frente e o telhado de zinco. Na varanda estavam três meninos de diferentes tamanhos, mas idênticos por seus rostos sardentos, e uma menina alta, que usava tantos rolinhos de alumínio que seu cabelo faiscava como o telhado da casa. Colando-se em Bevel para entrar, os três meninos os seguiram. Olhavam-no em silêncio, sem sorrir.
Mrs. Connin, tirando seu casacão, disse: “Este é Bevel. Por coincidência, tem o mesmo nome do pastor. Estes aqui são J.C., Spivey e Sinclair, e a menina que está lá na varanda é Sarah Mildred. Tire o paletó. Bevel, e pendure ali na guarda da cama.”
Os três meninos não paravam de espiá-lo, enquanto ele desabotoava e tirava o paletó. Observaram-no a seguir, quando ele o pôs na guarda da cama, e desde então olharam para o paletó com interesse. De repente saíram juntos, porta afora, para se reunir na varanda.
Lá dentro, Bevel olhava em torno. De um lado estava a cozinha, do outro o quarto de dormir. A isso se resumia a casa, dois cômodos e duas varandas. Perto de seu pé, o rabo de um cachorro de pelo claro se mexia, para cima e para baixo, numa fresta entre duas tábuas do assoalho, enquanto embaixo da casa ele coçava as costas. Bevel tentou pisar em cima, mas o cachorro era esperto e recolheu o rabo antes de ser atingido.
As paredes estavam cheias de calendários e imagens. Havia duas fotografias redondas, de um velhote e da esposa, ambos de boca murcha, e uma outra, de um homem cujas sobrancelhas brotavam de duas moitas de pelos para estender-se, amontoando-se, até por cima do nariz; já o que sobrava de seu rosto era nu como um penhasco do qual se pode cair. “Este é Mr. Connin”, disse Mrs. Connin, afastando qualquer, sabe? Ele cura as pessoas, embora não tenha podido fazer nada por Mr. Connin. Mr. Connin não tinha fé, mas estava disposto a tentar de tudo. Foi nó nas tripas que deu nele.”
O bonde apareceu como uma mancha amarela no fim da rua deserta.
“Agora ele está num hospital do governo, onde já lhe tiraram mais da metade da barriga. Digo-lhe que agradeça a Deus pelo que ainda resta, mas ele diz que não é de agradecer. Mas e essa então, hein, quem diria”, ela murmurou, “Bevel!”
Foram para perto dos trilhos esperar. Bevel perguntou: “Ele vai me curar?”
“O quê que você tem?”
“Tô com fome”, ele enfim decidiu.
“Não tomou café?”
“Não tinha dado tempo de eu já ter fome.”
“Quando a gente chegar lá em casa, vamos comer alguma coisa”, ela disse. “Também estou com vontade.”
Pegaram o bonde, sentando-se alguns bancos atrás do motorneiro. E Mrs. Connin pegou Bevel no colo. “Agora sossega um pouco, que eu vou dar uma cochilada”, ela disse. “Não sai daqui do meu colo, ouviu?” Ela deixou a cabeça ir para trás e, enquanto ele a observava, pouco a pouco seus olhos se fecharam e a boca se abriu para mostrar os grandes dentes dispersos que lhe restavam, uns de ouro, outros escuros como seu rosto, que começou a soprar e assoviar como um esqueleto musical. Eram os únicos no bonde, eles dois e o motorneiro. O menino, quando viu que ela já estava dormindo, tirou do bolso o lenço florido, que desdobrou e examinou com atenção. Depois dobrou-o de novo, abriu o zíper de um bolsinho no forro do paletó, escondeu-o ali e logo pegou no sono também.
A casa dela ficava a quase um quilômetro do final da linha do bonde e um pouco recuada da rua. De madeira, tinha uma varanda na frente e o telhado de zinco. Na varanda estavam três meninos de diferentes tamanhos, mas idênticos por seus rostos sardentos, e uma menina alta, que usava tantos rolinhos de alumínio que seu cabelo faiscava como o telhado da casa. Colando-se em Bevel para entrar, os três meninos os seguiram. Olhavam-no em silêncio, sem sorrir.
Mrs. Connin, tirando seu casacão, disse: “Este é Bevel. Por coincidência, tem o mesmo nome do pastor. Estes aqui são J.C., Spivey e Sinclair, e a menina que está lá na varanda é Sarah Mildred. Tire o paletó. Bevel, e pendure ali na guarda da cama.”
Os três meninos não paravam de espiá-lo, enquanto ele desabotoava e tirava o paletó. Observaram-no a seguir, quando ele o pôs na guarda da cama, e desde então olharam para o paletó com interesse. De repente saíram juntos, porta afora, para se reunir na varanda.
Lá dentro, Bevel olhava em torno. De um lado estava a cozinha, do outro o quarto de dormir. A isso se resumia a casa, dois cômodos e duas varandas. Perto de seu pé, o rabo de um cachorro de pelo claro se mexia, para cima e para baixo, numa fresta entre duas tábuas do assoalho, enquanto embaixo da casa ele coçava as costas. Bevel tentou pisar em cima, mas o cachorro era esperto e recolheu o rabo antes de ser atingido.
As paredes estavam cheias de calendários e imagens. Havia duas fotografias redondas, de um velhote e da esposa, ambos de boca murcha, e uma outra, de um homem cujas sobrancelhas brotavam de duas moitas de pelos para estender-se, amontoando-se, até por cima do nariz; já o que sobrava de seu rosto era nu como um penhasco do qual se pode cair. “Este é Mr. Connin”, disse Mrs. Connin, afastando-se do fogão um instante, para junto com o menino admirar o retrato, “mas a foto não o favorece em nada.” Bevel, tendo visto Mr. Connin, passou a olhar para uma foto colorida em cima da cama, de um homem enrolado num lençol branco. Com o cabelo comprido e um círculo dourado ao redor da cabeça, ele estava em destaque, sobre um pranchão, e era observado por algumas crianças. Bevel já ia perguntar quem era quando os três meninos voltaram, mandando, por sinais que lhe fizeram, que ele os seguisse. Teve vontade de se enfiar embaixo da cama e se agarrar a um dos pés, mas os três sardentos se mantiveram à espera, sempre calados, e ele acabou cedendo: acompanhou-os a pequena distância, pela varanda e para longe de casa. Passaram por um terreno com um mato amarelado para chegar ao chiqueiro, um quadrado de madeira de um metro e meio, repleto de leitões, onde planejavam jogá-lo. Lá chegando, viraram-se, encostaram-se nas tábuas e, em silêncio, esperaram por ele.
Ele vinha bem devagar, batendo com um pé no outro, como se tivesse algum problema no andar. Uma vez tinha apanhado de uns moleques na praça quando a babá o esqueceu, mas na época nem desconfiou, e só depois do ocorrido se deu conta do que estava por vir. Começou a sentir um cheiro forte de repolho e a ouvir barulhos de animal. Pálido, acuado, parou a uns passos do chiqueiro, aguardando.
Os três meninos não se mexiam. Parecia ter acontecido alguma coisa com eles. Apenas suas orelhas tremiam ligeiramente. Suas sardas estavam descoradas. Seus olhos, vidrados, olhavam por cima dele, como se vissem alguém vindo por trás, mas ele mesmo tinha medo de se virar e olhar também. Nada porém aconteceu. Por fim, o menino do meio disse: “Ela matava a gente” e, virando-se, frustrado e sem jeito, subiu no cercado e pendurou-se para espiar os porcos lá dentro.
Bevel sentou-se no chão, aturdido de alívio, e sorriu para eles.
O que estava na cerca do chiqueiro olhou-o de cara feia, mas depois disse: “Ei, se você não consegue subir para ver os porcos, puxe aquela tábua de baixo, que por ali também dá para olhar.” Dava, com tal oferta, a impressão de ser gentil.
Bevel nunca tinha visto um porco de verdade, mas os conhecia de um livro e sabia que eram bichos gordos, rosados, de cara redonda e sorridente, rabo enrolado e gravata-borboleta. Abaixou-se, pois, cheio de expectativa, e puxou a tábua.
“Mais força”, disse o menino menor. “Isso daí tá tudo podre. Puxa o prego, que sai.”
Da madeira fofa, de fato, ele tirou um pregão enferrujado.
“Agora é só suspender a tábua e enfiar a cara no…”, começou uma voz tranquila.
Sendo o que ele havia feito, uma outra cara, cinzenta, molhada e brava, já se contrapunha à sua e acabou por derrubá-lo de costas ao escapar pelo buraco afora. Veio grunhindo sobre ele, tomou distância e voltou a atacar: rolava-o para um lado, depois para outro, para a frente e para trás, e o fazia berrar pelo terreno, enquanto a perseguição prosseguia.
Os três Connins assistiam a tudo de onde estavam. O da cerca, usando o próprio pé pendurado, logo fixou no lugar a tábua solta. Seus rostos sisudos, a rigor, não se animaram, mas pareciam menos tensos, como se uma grande necessidade tivesse sido atendida em parte. “A mãe não vai gostar de ele ter soltado o leitão”, disse o menor de todos.
Mrs. Connin estava na varandinha dos fundos e acudiu Bevel quando ele chegava aos degraus. O porco correu para debaixo da casa e sossegou, ofegante, mas o menino continuou se esgoelando por mais cinco minutos. Quando finalmente ela conseguiu acalmá-lo, trouxe-lhe o café da manhã, deixando que o tomasse em seu colo. Já o porco, tendo subido ao topo dos dois degraus da varandinha, agora olhava passou a olhar para uma foto colorida em cima da cama, de um homem enrolado num lençol branco. Com o cabelo comprido e um círculo dourado ao redor da cabeça, ele estava em destaque, sobre um pranchão, e era observado por algumas crianças. Bevel já ia perguntar quem era quando os três meninos voltaram, mandando, por sinais que lhe fizeram, que ele os seguisse. Teve vontade de se enfiar embaixo da cama e se agarrar a um dos pés, mas os três sardentos se mantiveram à espera, sempre calados, e ele acabou cedendo: acompanhou-os a pequena distância, pela varanda e para longe de casa. Passaram por um terreno com um mato amarelado para chegar ao chiqueiro, um quadrado de madeira de um metro e meio, repleto de leitões, onde planejavam jogá-lo. Lá chegando, viraram-se, encostaram-se nas tábuas e, em silêncio, esperaram por ele.
Ele vinha bem devagar, batendo com um pé no outro, como se tivesse algum problema no andar. Uma vez tinha apanhado de uns moleques na praça quando a babá o esqueceu, mas na época nem desconfiou, e só depois do ocorrido se deu conta do que estava por vir. Começou a sentir um cheiro forte de repolho e a ouvir barulhos de animal. Pálido, acuado, parou a uns passos do chiqueiro, aguardando.
Os três meninos não se mexiam. Parecia ter acontecido alguma coisa com eles. Apenas suas orelhas tremiam ligeiramente. Suas sardas estavam descoradas. Seus olhos, vidrados, olhavam por cima dele, como se vissem alguém vindo por trás, mas ele mesmo tinha medo de se virar e olhar também. Nada porém aconteceu. Por fim, o menino do meio disse: “Ela matava a gente” e, virando-se, frustrado e sem jeito, subiu no cercado e pendurou-se para espiar os porcos lá dentro.
Bevel sentou-se no chão, aturdido de alívio, e sorriu para eles.
O que estava na cerca do chiqueiro olhou-o de cara feia, mas depois disse: “Ei, se você não consegue subir para ver os porcos, puxe aquela tábua de baixo, que por ali também dá para olhar.” Dava, com tal oferta, a impressão de ser gentil.
Bevel nunca tinha visto um porco de verdade, mas os conhecia de um livro e sabia que eram bichos gordos, rosados, de cara redonda e sorridente, rabo enrolado e gravata-borboleta. Abaixou-se, pois, cheio de expectativa, e puxou a tábua.
“Mais força”, disse o menino menor. “Isso daí tá tudo podre. Puxa o prego, que sai.”
Da madeira fofa, de fato, ele tirou um pregão enferrujado.
“Agora é só suspender a tábua e enfiar a cara no…”, começou uma voz tranquila.
Sendo o que ele havia feito, uma outra cara, cinzenta, molhada e brava, já se contrapunha à sua e acabou por derrubá-lo de costas ao escapar pelo buraco afora. Veio grunhindo sobre ele, tomou distância e voltou a atacar: rolava-o para um lado, depois para outro, para a frente e para trás, e o fazia berrar pelo terreno, enquanto a perseguição prosseguia.
Os três Connins assistiam a tudo de onde estavam. O da cerca, usando o próprio pé pendurado, logo fixou no lugar a tábua solta. Seus rostos sisudos, a rigor, não se animaram, mas pareciam menos tensos, como se uma grande necessidade tivesse sido atendida em parte. “A mãe não vai gostar de ele ter soltado o leitão”, disse o menor de todos.
Mrs. Connin estava na varandinha dos fundos e acudiu Bevel quando ele chegava aos degraus. O porco correu para debaixo da casa e sossegou, ofegante, mas o menino continuou se esgoelando por mais cinco minutos. Quando finalmente ela conseguiu acalmá-lo, trouxe-lhe o café da manhã, deixando que o tomasse em seu colo. Já o porco, tendo subido ao topo dos dois degraus da varandinha, agora olhava para eles pela portinhola de tela, cabisbaixo, trombudo. Tinha as pernas compridas, era corcunda e perdera parte de uma orelha numa mordida.
“Sai já daí!”, Mrs. Connin gritou. “Esse é o favorito de Mr. Paradise, o dono do posto”, ela disse. “Lá no culto você vai ver quem é. Teve câncer na orelha e vem sempre mostrar que ele não foi curado.”
O leitão continuou ali mais um pouco, espiando-os com os olhos entreabertos, e depois saiu lentamente. “Não quero ver esse bicho!”, disse Bevel.
Foram andando para o rio. Mrs. Connin na frente, com ele e os três enfileirados atrás, e Sarah Mildred, a menina alta, de cerra-fila, para avisar se alguém se desviasse da linha. Eram como a armação de um barco antigo, com as duas extremidades pontudas, que vagasse lentamente à margem da rodovia. O sol branco de domingo, que os seguia a curta distância, passou ligeiro por uma nuvem cinza, como se quisesse ultrapassá-los. Bevel, o que estava mais na beira, dava a mão a Mrs. Connin e ia olhando a valeta cor de laranja e roxa que se estendia ao seu lado.
Julgava ter dado sorte dessa vez, por terem chamado Mrs. Connin, que o levava para passar o dia fora, e não uma babá comum, que no máximo iria até a praça ou ficaria com ele em casa. Saindo de casa é que a gente descobria mais coisas. Naquela manhã, já descobrira ter sido feito por um carpinteiro chamado Jesus Cristo, função que antes atribuía ao chamado Sladewall, um médico gordo, de bigode amarelo, que lhe aplicava injeções e achava que o nome dele era Herbert, o que aliás devia ser brincadeira. Piadas e brincadeiras, na sua terra, eram muito comuns. Se houvesse pensado nisso antes, talvez tomasse Jesus Cristo por uma palavra, assim como “oh” ou “merda” ou “Deus”, ou por alguém que, de certa feita, os tivesse logrado em qualquer coisa. Quando ele perguntou quem era aquele homem com o lençol na imagem sobre a cama, Mrs. Connin, boquiaberta, fitou-o por algum tempo. E continuou a olhar firme para ele, mesmo depois de dizer: “É Jesus.”
Afinal ela se levantou e foi até o outro cômodo pegar uma coisa. “Este livro”, disse, abrindo-o para mostrar, “pertenceu à minha bisavó. Não me separo dele por nada.” Numa página manchada, correu o dedo pelo que estava escrito, escrito e gasto, e leu: “Emma Stevens Oakley, 1832.” Depois disse: “É mesmo para se guardar com cuidado, não é? E cada palavra aqui é a verdade do evangelho. Passou à página seguinte, leu para ele o título, A vida de Jesus Cristo para menores de doze anos, e acabou lendo o livro inteiro.
Era um livrinho de capa marrom-clara, com os cantos dourados e um cheiro de estuque velho. Entre as muitas figuras que o ilustravam havia a de um carpinteiro enxotando, de dentro de um homem, um bando de porcos. Porcos mesmo, porcos de verdade, cinzentos, de cara enfezada, e Mrs. Connin disse que Jesus tinha expulsado o bando todo de dentro daquele homem. Quando acabou de ler, deixou que ele se sentasse no chão para olhar de novo as figuras.
Pouco antes de saírem para o culto, e sem que ela o notasse, ele dera um jeito de enfiar o livro por dentro do forro de seu paletó, que agora caía mais para um lado, por efeito do peso. Sua mente se mantinha serena e sonhadora ao andarem e, quando dobraram da rodovia asfaltada para uma longa estrada de terra que serpenteava entre moitas de madressilva, ele começou a dar pulos de alegria e a arrastá-la pela mão, como se quisesse ir correndo para agarrar o sol, que a essa altura se afastava à frente deles.
Depois de andarem algum tempo pelo chão de barro vermelho, atravessaram um campo pontilhado de plantinhas roxas e entraram nas sombras de um extenso arvoredo, cujo solo se cobria de pinhas. Ele, que nunca pusera os pés na mata, pisava com atenção e olhava para todos os lados, como se estivesse ingressando em terra estranha. Passaram por uma trilha apertada que se retorcia morro abaixo, entre folhas vermelhas que estalavam, e ele de súbito, ao se agarrar num galho para não cair, viu-se em face do ouro verde de dois olhos gelados, incrustados na escuridão de um oco de pau. No pé do morro, a mata se abria, e de repente era um pasto, salpicado de vacas de pelo preto e branco dispersas, que continuava descendo pouco a pouco até um rio largo e alaranjado, onde o reflexo do sol era um diamante engastado.
Havia um grupo de pessoas cantando, em pé, perto da margem. Ao redor, umas mesas compridas instaladas e uns poucos carros e caminhões estacionados numa estradinha que seguia o rio. Ao atravessarem o pasto, eles foram na maior correria, porque Mrs. Connin, de longe, protegendo os olhos com a mão, pôde ver que o pastor já estava lá dentro d’água. Pondo numa das mesas sua cesta, à sua frente ela pôs os três moleques e empurrou-os para o ajuntamento, livrando-os assim da tentação do farnel. Bevel, ela levava pela mão, e abriu caminho, resoluta, para o ponto central.
O pastor se achava em pé dentro do rio, a uns três metros da margem, onde a água quase lhe chegava aos joelhos. Era um rapaz alto, de calça cáqui, que ele tinha enrolado para não molhar. Estava com uma camisa azul e um cachecol vermelho no pescoço, mas sem chapéu. Tinha o cabelo muito claro e costeletas curvas que avançavam pelas bochechas. Seu rosto era puro osso e a luz rubra refletida do rio. Aparentava ter uns dezenove anos. Estava cantando com voz fanhosa e alta, mais alta do que a cantoria na margem, com a cabeça inclinada para trás e as mãos cruzadas nas costas.
Terminou seu hino com um agudo e se manteve em silêncio, olhando para a água onde seus pés se mexiam. Depois olhou para as pessoas à espera na margem, cujos rostos solenes, cheios de expectativa, bem juntos, estavam todos de olho nele, que mexeu com os pés novamente.
“Posso saber ou não saber”, disse com sua voz fanhosa, “por que vocês vieram aqui. Se não vieram por Jesus, não vieram por mim. Se alguém aí só veio aqui para ver se conseguiria se livrar de uma dor entrando n’água, esse não veio por Jesus. Não se pode largar sua dor dentro do rio. Eu nunca disse isso a ninguém.” Parou, baixou a vista e olhou para seus próprios joelhos.
“Já vi uma mulher ser curada por seus poderes!”, gritou alguém da multidão bruscamente. “Uma que puxava da perna quando chegou, mas que depois se levantou e saiu andando normalmente.”
O pastor ergueu um pé e logo o outro. Parecia quase, mas não ainda, a ponto de sorrir. “Pode ir voltando para casa, se é por isso que veio”, disse.
Depois, erguendo cabeça e braços, bradou: “Ouçam o que eu tenho a dizer, minha gente! Existe apenas um rio, que é o Rio da Vida, e ele é feito do Sangue de Jesus. É nesse rio que vocês têm de largar seus sofrimentos, o Rio da Fé, o Rio da Vida, o Rio do Amor, o rio do Sangue de Jesus, vermelho e bom!”
Sua voz se tornou, a essa altura, suave e musical. “Todos os rios vêm desse Rio e correm para ele de volta, como se fosse o mar oceano, e os que têm fé podem largar aí sua dor, se libertando dos seus padecimentos, porque esse é o Rio que foi feito para carregar os sombras de um extenso arvoredo, cujo solo se cobria de pinhas. Ele, que nunca pusera os pés na mata, pisava com atenção e olhava para todos os lados, como se estivesse ingressando em terra estranha. Passaram por uma trilha apertada que se retorcia morro abaixo, entre folhas vermelhas que estalavam, e ele de súbito, ao se agarrar num galho para não cair, viu-se em face do ouro verde de dois olhos gelados, incrustados na escuridão de um oco de pau. No pé do morro, a mata se abria, e de repente era um pasto, salpicado de vacas de pelo preto e branco dispersas, que continuava descendo pouco a pouco até um rio largo e alaranjado, onde o reflexo do sol era um diamante engastado.
Havia um grupo de pessoas cantando, em pé, perto da margem. Ao redor, umas mesas compridas instaladas e uns poucos carros e caminhões estacionados numa estradinha que seguia o rio. Ao atravessarem o pasto, eles foram na maior correria, porque Mrs. Connin, de longe, protegendo os olhos com a mão, pôde ver que o pastor já estava lá dentro d’água. Pondo numa das mesas sua cesta, à sua frente ela pôs os três moleques e empurrou-os para o ajuntamento, livrando-os assim da tentação do farnel. Bevel, ela levava pela mão, e abriu caminho, resoluta, para o ponto central.
O pastor se achava em pé dentro do rio, a uns três metros da margem, onde a água quase lhe chegava aos joelhos. Era um rapaz alto, de calça cáqui, que ele tinha enrolado para não molhar. Estava com uma camisa azul e um cachecol vermelho no pescoço, mas sem chapéu. Tinha o cabelo muito claro e costeletas curvas que avançavam pelas bochechas. Seu rosto era puro osso e a luz rubra refletida do rio. Aparentava ter uns dezenove anos. Estava cantando com voz fanhosa e alta, mais alta do que a cantoria na margem, com a cabeça inclinada para trás e as mãos cruzadas nas costas.
Terminou seu hino com um agudo e se manteve em silêncio, olhando para a água onde seus pés se mexiam. Depois olhou para as pessoas à espera na margem, cujos rostos solenes, cheios de expectativa, bem juntos, estavam todos de olho nele, que mexeu com os pés novamente.
“Posso saber ou não saber”, disse com sua voz fanhosa, “por que vocês vieram aqui. Se não vieram por Jesus, não vieram por mim. Se alguém aí só veio aqui para ver se conseguiria se livrar de uma dor entrando n’água, esse não veio por Jesus. Não se pode largar sua dor dentro do rio. Eu nunca disse isso a ninguém.” Parou, baixou a vista e olhou para seus próprios joelhos.
“Já vi uma mulher ser curada por seus poderes!”, gritou alguém da multidão bruscamente. “Uma que puxava da perna quando chegou, mas que depois se levantou e saiu andando normalmente.”
O pastor ergueu um pé e logo o outro. Parecia quase, mas não ainda, a ponto de sorrir. “Pode ir voltando para casa, se é por isso que veio”, disse.
Depois, erguendo cabeça e braços, bradou: “Ouçam o que eu tenho a dizer, minha gente! Existe apenas um rio, que é o Rio da Vida, e ele é feito do Sangue de Jesus. É nesse rio que vocês têm de largar seus sofrimentos, o Rio da Fé, o Rio da Vida, o Rio do Amor, o rio do Sangue de Jesus, vermelho e bom!”
Sua voz se tornou, a essa altura, suave e musical. “Todos os rios vêm desse Rio e correm para ele de volta, como se fosse o mar oceano, e os que têm fé podem largar aí sua dor, se libertando dos seus padecimentos, porque esse é o Rio que foi feito para carregar os pecados. Ele mesmo é um Rio cheio de dor que corre para o Reino de Cristo, aonde chega devagar, bem devagar, minha gente, como a água barrenta deste rio velho em meus pés.”
Ele cantava: “Em Marcos, ouçam bem, eu li a história de um leproso, li em Lucas a respeito de um cego, e em João li sobre um morto! Pois fiquem vocês sabendo que o mesmo sangue que faz vermelho este Rio curou aquele leproso, como fez o cego ver e o morto andar! Vocês que estão com problemas”, gritou, “larguem seus sofrimentos neste Rio de Sangue, neste Rio de Dor, e vejam como ele corre para o Reino de Cristo!”
Os olhos fatigados de Bevel, enquanto a pregação progredia, seguiam os círculos vagarosos que dois passarinhos em silêncio traçavam alto no ar. Do outro lado do rio, um bosque de açafrão vermelho e dourado e baixo, tinha por trás umas colinas com o azul-escuro das árvores e o recorte eventual de algum pinheiro a se destacar no horizonte. Depois, ao longe, como uma penca de verrugas na encosta da montanha, a cidade. Os passarinhos, baixando, foram pousar de asas dobradas, como se sustentassem o céu, no topo do pinheiro mais alto.
“Se é no Rio da Vida que vocês querem largar seus sofrimentos”, dizia o pastor, “então venham, é aqui que devem deixá-los. Mas não pensem vocês que isso é o fim, porque este velho rio vermelho não acaba aqui. Velho, barrento e sofredor, o mesmo rio continua a fluir, indo lentamente para o Reino de Cristo. Serve para o Batismo, o rio velho, e é bom para receber sua fé e os sofrimentos que nele são largados, mas não será esta água lamacenta que há de salvar vocês. Estive por aí, ao longo do rio, para cima e para baixo, no decorrer da semana”, ele disse. “Na terça-feira em Fortune Lake, no dia seguinte em Ideal; na sexta eu e minha esposa fomos a Lulawillow de carro para estar com um doente. E ninguém, aonde eu fui, viu cura alguma.” Seu rosto, por um instante, se inflamou ainda mais. “Eu nunca disse que iam ver.”
Uma figura tremulante, enquanto ele falava, tinha começado a se chegar para a frente numa espécie de andar de borboleta — uma velhota impelida por seu bater de braços, cuja cabeça balançava muito, como que a risco de cair de repente. Mesmo assim ela avançou até a beira do rio, onde se abaixou jogando os braços na água. Inclinou-se então ainda mais, para deixar todo o rosto em imersão um instante, e quando se reergueu afinal já estava bem encharcada. Sempre batendo os braços, olhava aqui e acolá, sem encontrar saída, até que alguém lhe deu a mão e a puxou novamente para o grupo.
“Faz treze anos que ela tem essa tremedeira”, gritou algum grosseirão. “Passem o chapéu para juntar o dinheiro do rapaz. Foi por isso que ele veio.” A ordem, dada para alcançar o rapaz dentro do rio, partiu de um velho gordo arriado, como uma pedra com um calombo no para-choque de um automóvel antigo, comprido e cinza. Cinza também era o chapéu do gordo, que caía de um lado, escondendo uma orelha, e se levantava de outro, deixando à vista, no extremo esquerdo da testa, um inchaço roxo. Curvado bem para a frente, com as mãos pendendo entre os joelhos, ele abria apenas um pouco seus olhos muito miúdos.
Bevel chegou a dar-lhe uma olhada, mas depois se escondeu por entre as dobras do casacão de Mrs. Connin.
De dentro d’água, o rapaz encarou rapidamente o velho e ergueu-lhe o punho fechado. “Acredite em Jesus, ou no Diabo!”, gritou. “Testemunhe a um ou a outro!”
“Por minha própria experiência”, bradou no meio do ajuntamento uma misteriosa voz de mulher, “sei que esse pastor pode curar. Meus olhos foram abertos! Eu testemunho a Jesus!”
Sem perder tempo, de braços para o alto, o pregador começou a repetir tudo o que havia dito antes sobre o Rio e o Reino de Cristo. O velho sentado no para-choque olhava para ele de esguelha, sendo observado de longe, por sua vez, do entorno de Mrs. Connin, pelos olhos de Bevel.
Um homem de macacão, com um paletó marrom por cima, dobrou-se sobre o rio, mergulhando e agitando a mão na água, para logo se endireitar outra vez, e uma mulher foi com um bebê para a beira, onde lhe molhava os pezinhos. Um outro, depois de se afastar um pouco para sentar-se à margem e tirar os sapatos, saiu andando água adentro; ficou alguns minutos por lá, com o rosto todo virado para o alto, e ao voltar foi se calçar novamente. O pastor cantava, durante todo esse tempo, e nem sequer parecia estar notando o que se passava ao redor.
Assim que ele parou de cantar, Mrs. Connin suspendeu Bevel no ar e disse: “Esse menino é da cidade, pastor, e hoje ficou por minha conta. A mãe dele está doente. Pede para o senhor rezar por ela, e ele, veja só que coincidência — se chama Bevel! O mesmo nome”, dizia, virando-se para as pessoas que estavam por trás. “Bevel! Não é uma coincidência notável?”
Houve alguns murmúrios e Bevel, se virando também, abriu-se num riso largo, por cima do ombro dela, para os rostos que o fitavam. “Bevel”, disse em voz alta e triunfante.
“Aliás, Bevel”, perguntou Mrs. Connin, “você já foi batizado?”
Ele se limitou a sorrir.
Mrs. Connin, franzindo o cenho, disse para o pastor: “Acho que não.”
“Me dá ele aqui”, disse o pastor que, a passos largos, foi pegar o menino.
Reclinando-o num dos braços, olhou seu rosto sorridente. Bevel revirava os olhos de um modo cômico e chegou o rosto bem para a frente, quase o colando no do pastor. “Meu nome é Beveeel”, disse em voz profunda e alta, com a ponta da língua a deslizar pela boca.
O pastor não achou graça. Seu rosto ossudo se mantinha rígido, e os olhos, cinzentos e estreitos, refletiam o céu quase sem cor. Mas o velho sentado no para-choque do carro deu uma gargalhada, e Bevel, agarrando-se na gola do pregador por trás, ali grudou. Com o sorriso sumido de sua face, teve o súbito pressentimento de que aquilo não era brincadeira. Tudo, onde ele morava, era levado em geral na brincadeira. Mas pela cara do homem, ele soube de imediato que nada do que o pastor dizia ou fazia era piada. “É o nome que a mãe me deu”, disse rápido.
“Você já foi batizado?”, o pastor perguntou.
“Fui o quê?”
“Se eu te batizar”, disse o pastor, “você vai poder entrar no Reino de Cristo. Será lavado no rio dos sofrimentos, meu filho, e irá pelo rio fundo da vida. Você quer?
“Quero”, o menino disse e pensou: oba, então eu vou por baixo d’água, não vou ter de voltar pro apartamento!
“Você já não será mais o mesmo”, disse o pastor. “Você agora está entre os que contam.” E voltou a pregar, virado para os presentes, enquanto Bevel, por cima de seu ombro, via os pedaços de sol branco espalhados no rio. Lá pelas tantas o pastor avisou: “Bem, agora eu vou te batizar” e, sem mais dizer, agarrou-o com força, para o virar de cabeça para baixo e assim afundar no rio. Mantendo-o embaixo de Cristo. O velho sentado no para-choque olhava para ele de esguelha, sendo observado de longe, por sua vez, do entorno de Mrs. Connin, pelos olhos de Bevel.
Um homem de macacão, com um paletó marrom por cima, dobrou-se sobre o rio, mergulhando e agitando a mão na água, para logo se endireitar outra vez, e uma mulher foi com um bebê para a beira, onde lhe molhava os pezinhos. Um outro, depois de se afastar um pouco para sentar-se à margem e tirar os sapatos, saiu andando água adentro; ficou alguns minutos por lá, com o rosto todo virado para o alto, e ao voltar foi se calçar novamente. O pastor cantava, durante todo esse tempo, e nem sequer parecia estar notando o que se passava ao redor.
Assim que ele parou de cantar, Mrs. Connin suspendeu Bevel no ar e disse: “Esse menino é da cidade, pastor, e hoje ficou por minha conta. A mãe dele está doente. Pede para o senhor rezar por ela, e ele, veja só que coincidência — se chama Bevel! O mesmo nome”, dizia, virando-se para as pessoas que estavam por trás. “Bevel! Não é uma coincidência notável?”
Houve alguns murmúrios e Bevel, se virando também, abriu-se num riso largo, por cima do ombro dela, para os rostos que o fitavam. “Bevel”, disse em voz alta e triunfante.
“Aliás, Bevel”, perguntou Mrs. Connin, “você já foi batizado?”
Ele se limitou a sorrir.
Mrs. Connin, franzindo o cenho, disse para o pastor: “Acho que não.”
“Me dá ele aqui”, disse o pastor que, a passos largos, foi pegar o menino.
Reclinando-o num dos braços, olhou seu rosto sorridente. Bevel revirava os olhos de um modo cômico e chegou o rosto bem para a frente, quase o colando no do pastor. “Meu nome é Beveeel”, disse em voz profunda e alta, com a ponta da língua a deslizar pela boca.
O pastor não achou graça. Seu rosto ossudo se mantinha rígido, e os olhos, cinzentos e estreitos, refletiam o céu quase sem cor. Mas o velho sentado no para-choque do carro deu uma gargalhada, e Bevel, agarrando-se na gola do pregador por trás, ali grudou. Com o sorriso sumido de sua face, teve o súbito pressentimento de que aquilo não era brincadeira. Tudo, onde ele morava, era levado em geral na brincadeira. Mas pela cara do homem, ele soube de imediato que nada do que o pastor dizia ou fazia era piada. “É o nome que a mãe me deu”, disse rápido.
“Você já foi batizado?”, o pastor perguntou.
“Fui o quê?”
“Se eu te batizar”, disse o pastor, “você vai poder entrar no Reino de Cristo. Será lavado no rio dos sofrimentos, meu filho, e irá pelo rio fundo da vida. Você quer?
“Quero”, o menino disse e pensou: oba, então eu vou por baixo d’água, não vou ter de voltar pro apartamento!
“Você já não será mais o mesmo”, disse o pastor. “Você agora está entre os que contam.” E voltou a pregar, virado para os presentes, enquanto Bevel, por cima de seu ombro, via os pedaços de sol branco espalhados no rio. Lá pelas tantas o pastor avisou: “Bem, agora eu vou te batizar” e, sem mais dizer, agarrou-o com força, para o virar de cabeça para baixo e assim afundar no rio. Mantendo-o embaixo d’água enquanto fazia sua oração de batismo, só depois ele o puxou de volta e olhou sério para a criança engasgada, que tinha os olhos dilatados e turvos. “Você agora é uma pessoa”, disse o pastor. “Você, que antes nem contava.”
Bevel, de tão apavorado, nem chorava. Cuspiu a água lamacenta e passou pelos olhos, depois por todo o rosto, sua manga encharcada.
“Não se esqueça da mãe dele”, disse Mrs. Connin. “Ele quer que o senhor reze por ela, que está doente.”
“Senhor”, disse o pastor, “rezamos por alguém em aflição, que não está aqui para testemunhar. Sua mãe está doente, no hospital?”, ele perguntou. “Está sentindo muita dor?”
O menino olhou para ele. “Ela ainda nem saiu da cama”, disse aturdido em voz alta. “Tá de ressaca.” O ar estava tão sereno que ele até podia ouvir os cacos do sol quebrado batendo n’água.
O pastor fez uma cara feia de espanto. O sangue desapareceu de seu rosto, e o céu deu a impressão de escurecer em seus olhos. Mas da margem veio uma boa risada, e Mr. Paradise gritou, batendo com uma das mãos no joelho: “Quero ver você curar essa aí, que está sofrendo de ressaca!”
“Ele teve um dia cheio”, disse Mrs. Connin, em pé ao lado do menino, à porta do apartamento, e olhando bem para a sala onde ia longe a festinha. “Já deve ser mais do que hora de ele ir para a cama, não é?” Bevel tinha um dos olhos fechado, o outro mal se mexia; respirava só pela boca, por isso a mantinha aberta, e vinha de nariz escorrendo. Um lado do seu paletozinho xadrez todo ensopado caía mais para baixo.
Deve ser aquela ali, deduziu Mrs. Connin, a de calça preta — calça preta de cetim, sandálias de pés de fora e unhas vermelhas. Deitada em metade do sofá, pernas cruzadas para cima e a cabeça apoiada num braço, ela nem se levantou.
“Oi, Harry”, limitou-se a dizer. “Foi um dia cheio, então?” Tinha um rosto comprido, pálido, apático, inexpressivo; e o cabelo liso, cor de batata-doce, puxado para trás.
O pai foi apanhar o dinheiro. Havia outros dois casais na sala. Um dos homens, um louro de olhinhos de um azul-violeta, inclinou-se da cadeira em que estava e disse: “E aí, Harry, meu chapa, dia cheio, né?”
“O nome dele não é Harry”, disse Mrs. Connin. “É Bevel.”
“O nome dele é Harry sim”, disse ela do sofá. “Quem já soube de alguém chamado Bevel?”
O garotinho parecia estar dormindo em pé; cabeceava sem parar, mas de repente conseguiu se conter e abriu um olho; o outro estava colado.
“Ué, mas hoje cedo ele me disse que se chamava Bevel”, disse, espantada, Mrs. Connin. “O mesmo nome do nosso pastor. Passamos o dia num culto à beira do rio, com sessões de cura. E ele disse que se chamava Bevel, que tinha o nome do pastor. Foi o que ele me disse.”
“Bevel!”, disse a mãe do menino. “Meu Deus, que nome!”
“Pois é o nome do pastor, Bevel, e pregador melhor do que ele, aqui pela região, não se encontra”, disse Mrs. Connin. “E tem mais”, acrescentou em tom desafiador, “hoje de manhã ele batizou o menino.”
A mãe se endireitou, resmungando: “Que atrevimento!”
“Além disso”, Mrs. Connin disse, “o pastor Bevel rezou para que a senhora se cure, e ele tem feito muitas curas.”
“Me cure!”, disse a mãe, quase num berro. “Mas me cure de quê, pelo amor de Deus?”
“Do seu problema”, disse secamente Mrs. Connin.
O pai tinha voltado com o dinheiro e, em pé ao lado de Mrs. Connin, com os olhos riscados de vermelho, esperava para lhe pagar. “Se ainda tem mais”, disse ele, “vamos, fale. Quero saber mais coisas sobre o problema dela. A exata natureza desse problema me escapa…”, e exibiu a nota que trazia. Sua voz porém falhou. “Curar rezando nunca sai muito caro”, murmurou.
Mrs. Connin, olhando um instante pela sala, mais parecia, de tão pasma, um esqueleto capaz de tudo ver. Logo depois, sem pegar o dinheiro, virou-se e fechou a porta atrás de si. O pai, sorrindo meio sem graça, fez meia-volta e deu de ombros. Os restantes olhavam para Harry. O menino se encaminhava para o quarto, mas ia arrastando os pés.
“Chegue aqui, Harry”, disse-lhe a mãe. Automaticamente ele mudou de direção e foi para perto dela, sem conseguir porém abrir os olhos de vez. Com ele já a seu alcance, ela disse: “Me conte o que aconteceu hoje” e começou a livrá-lo do paletó.
“Não sei”, ele balbuciou.
“Sabe sim”, ela disse, sentindo que o paletó estava mais pesado de um lado. Abriu o bolso do forro e, assim que apareceram, pegou o livro e o lenço usado. “De onde você tirou isso?”
“Não sei”, disse ele, tentando apossar-se deles. “São meus. Ela me deu.”
A mãe jogou o lenço no chão e levantou o livro bem alto, para ele não o alcançar, e começou a ler um trecho, assumindo seu rosto, logo a seguir, uma exagerada expressão cômica. Os outros a rodearam, olhando o livro por cima de seu ombro. “Meu Deus!”, alguém disse.
Um dos homens, por trás de óculos grossos, examinou-o com atenção. “Isso vale dinheiro”, disse. “É coisa de colecionador.” Tomou o livro dos outros e foi sentar-se à parte com ele.
“Se vacilarem, o George leva pra casa”, disse sua namorada.
“Eu não falei que é valioso?”, George disse. “1832.”
Bevel, mudando de direção outra vez, para voltar ao rumo original, tinha ido para o quarto no qual dormia. Fechou a porta assim que entrou e foi bem devagar pelo escuro para a cama e sentou-se para tirar os sapatos e se enfiou nas cobertas. Uma nesga de luz, no momento seguinte, trouxe-lhe a silhueta esguia de sua mãe, que atravessou o quarto na pontinha dos pés, para sentar-se na beirada da cama. “O que foi que o tal pastor bobalhão falou de mim?”, ela perguntou num sussurro. “E que mentiras você andou contando, hein, meu anjinho?”
Ele, de olhos fechados, ouviu-lhe a voz como que vinda de longe, de muito longe, como se ele estivesse no fundo e ela na superfície do rio. Ela o sacudiu pelos ombros. Debruçou-se, pôs a boca em seu ouvido e disse: “Harry, me diz o que ele falou.” Forçou-o a ficar sentado, puxando-o como podia, e ele se sentiu como se o puxassem da água. “Me diz”, sussurrou, e seu bafo muito forte cobriu-lhe o rosto.
Ele viu, colado a ele no escuro, assim tão perto, aquele pálido oval. “Disse que eu não sou mais o mesmo”, murmurou. “Que agora eu conto.”
Largando a camisa pela qual o sustinha, ela o largou no travesseiro. Parada um instante sobre ele, pousou os lábios de leve em sua testa. Depois se ergueu e se foi, dando ligeiras reboladas pela nesga de luz.
Já não era tão cedo quando ele acordou, mas o apartamento ainda estava fechado e escuro. Ora mexendo no nariz, ora nos olhos, permaneceu por algum tempo deitado. Sentou-se depois na cama e olhou pela janela. O sol entrava esbatido, com manchas cinza da vidraça. Do outro lado da rua, no Empire Hotel, uma faxineira negra olhava para baixo de uma janela no alto, com o rosto posto nos seus braços dobrados. Ele se levantou, calçou os sapatos, foi ao banheiro e chegou à sala. Comeu os dois biscoitos com pasta de anchova que encontrou na mesinha, bebeu a sobra de refrigerante de uma garrafa e procurou por seu livro, que ali porém não se via.
Só o leve zumbir da geladeira quebrava o silêncio do apartamento. Ele foi à cozinha, achou duas fatias de pão com passas, pôs meio vidro de pasta de amendoim entre elas, escalou o banquinho altão da cozinha e sentou-se para comer devagar seu sanduíche, limpando, de quando em quando, o nariz no ombro. Ao acabar, achou também e bebeu um leite achocolatado. Viu uma garrafa de refrigerante, que teria preferido, mas os abridores de garrafa eles tinham posto no alto, fora de seu alcance. Pesquisou, por um tempo, o que havia de sobra na geladeira — verduras murchas das quais ela nem mais se lembrava, laranjas podres que comprou mas se esqueceu de espremer, queijo de uns três ou quatro tipos e, numa sacola de papel, alguma coisa que talvez fosse peixe; no mais, um osso de porco, e só. Ele deixou a porta da geladeira aberta e, já de volta à sala escura, foi sentar-se no sofá.
Deduziu que eles ficariam dormindo até a uma da tarde e que teriam de sair para almoçar num restaurante. Não estando ele ainda à altura da mesa, o garçom, por certo, traria uma cadeirinha de neném, para a qual já era grande. Tinha sentado no meio do sofá, e dava-lhe com os calcanhares. Depois disso ele se levantou e perambulou pela sala, fiscalizando as guimbas nos cinzeiros, como se fosse um hábito. Em seu quarto, tinha livros ilustrados e joguinhos de armar, mas quase todos estavam estragados; o modo de conseguir brinquedos novos, como ele havia descoberto, era estragar os velhos. Havia muito pouco o que fazer ali, a qualquer hora, a não ser comer; ele, contudo, não era gordo.
Resolveu esvaziar alguns cinzeiros no chão. Se esvaziasse só uns poucos, ela poderia pensar que eles tinham caído. Esvaziou portanto dois, sem se esquecer de esfregar a cinza no tapete com o dedo. Depois deitou-se um pouco no chão, pesquisando os pés que pôs para cima. Seus sapatos ainda estavam molhados, e o rio lhe veio ao pensamento.
Sua expressão começou a mudar bem devagar, como se ele visse aparecer pouco a pouco alguma coisa que nem mesmo sabia estar procurando. Mas de repente ele soube o que queria fazer.
Levantou-se, foi na ponta dos pés ao quarto deles e, na escuridão que ali dominava, tentou localizar a bolsa da mãe. Seu olhar passou por um braço, o braço pálido e comprido que ela espichava da cama para o chão, pelo montinho branco que seu pai fazia embolado e pela cômoda entulhada de coisas, até enfim ir dar com a bolsa, pendurada numa cadeira, da qual ele retirou uma passagem de bonde e um saquinho de balas. Depois saiu do apartamento e tomou o bonde na esquina. Saiu sem mala, porque nada havia ali que ele quisesse levar.
Saltou do bonde no fim da linha e foi descendo pela rua que ele e Mrs. Connin tinham pegado na véspera. Sabia que não haveria ninguém na casa dela, porque os três garotos e a menina iam à escola, e Mrs. Connin, como ela mesma lhe dissera, sairia para fazer uma testa. Depois se ergueu e se foi, dando ligeiras reboladas pela nesga de luz.
Já não era tão cedo quando ele acordou, mas o apartamento ainda estava fechado e escuro. Ora mexendo no nariz, ora nos olhos, permaneceu por algum tempo deitado. Sentou-se depois na cama e olhou pela janela. O sol entrava esbatido, com manchas cinza da vidraça. Do outro lado da rua, no Empire Hotel, uma faxineira negra olhava para baixo de uma janela no alto, com o rosto posto nos seus braços dobrados. Ele se levantou, calçou os sapatos, foi ao banheiro e chegou à sala. Comeu os dois biscoitos com pasta de anchova que encontrou na mesinha, bebeu a sobra de refrigerante de uma garrafa e procurou por seu livro, que ali porém não se via.
Só o leve zumbir da geladeira quebrava o silêncio do apartamento. Ele foi à cozinha, achou duas fatias de pão com passas, pôs meio vidro de pasta de amendoim entre elas, escalou o banquinho altão da cozinha e sentou-se para comer devagar seu sanduíche, limpando, de quando em quando, o nariz no ombro. Ao acabar, achou também e bebeu um leite achocolatado. Viu uma garrafa de refrigerante, que teria preferido, mas os abridores de garrafa eles tinham posto no alto, fora de seu alcance. Pesquisou, por um tempo, o que havia de sobra na geladeira — verduras murchas das quais ela nem mais se lembrava, laranjas podres que comprou mas se esqueceu de espremer, queijo de uns três ou quatro tipos e, numa sacola de papel, alguma coisa que talvez fosse peixe; no mais, um osso de porco, e só. Ele deixou a porta da geladeira aberta e, já de volta à sala escura, foi sentar-se no sofá.
Deduziu que eles ficariam dormindo até a uma da tarde e que teriam de sair para almoçar num restaurante. Não estando ele ainda à altura da mesa, o garçom, por certo, traria uma cadeirinha de neném, para a qual já era grande. Tinha sentado no meio do sofá, e dava-lhe com os calcanhares. Depois disso ele se levantou e perambulou pela sala, fiscalizando as guimbas nos cinzeiros, como se fosse um hábito. Em seu quarto, tinha livros ilustrados e joguinhos de armar, mas quase todos estavam estragados; o modo de conseguir brinquedos novos, como ele havia descoberto, era estragar os velhos. Havia muito pouco o que fazer ali, a qualquer hora, a não ser comer; ele, contudo, não era gordo.
Resolveu esvaziar alguns cinzeiros no chão. Se esvaziasse só uns poucos, ela poderia pensar que eles tinham caído. Esvaziou portanto dois, sem se esquecer de esfregar a cinza no tapete com o dedo. Depois deitou-se um pouco no chão, pesquisando os pés que pôs para cima. Seus sapatos ainda estavam molhados, e o rio lhe veio ao pensamento.
Sua expressão começou a mudar bem devagar, como se ele visse aparecer pouco a pouco alguma coisa que nem mesmo sabia estar procurando. Mas de repente ele soube o que queria fazer.
Levantou-se, foi na ponta dos pés ao quarto deles e, na escuridão que ali dominava, tentou localizar a bolsa da mãe. Seu olhar passou por um braço, o braço pálido e comprido que ela espichava da cama para o chão, pelo montinho branco que seu pai fazia embolado e pela cômoda entulhada de coisas, até enfim ir dar com a bolsa, pendurada numa cadeira, da qual ele retirou uma passagem de bonde e um saquinho de balas. Depois saiu do apartamento e tomou o bonde na esquina. Saiu sem mala, porque nada havia ali que ele quisesse levar.
Saltou do bonde no fim da linha e foi descendo pela rua que ele e Mrs. Connin tinham pegado na véspera. Sabia que não haveria ninguém na casa dela, porque os três garotos e a menina iam à escola, e Mrs. Connin, como ela mesma lhe dissera, sairia para fazer uma faxina. Passou assim pelo quintal para seguir pelo caminho antes tomado por eles para chegar ao rio. Depois de casinhas simples, muito longe umas das outras, a estrada de terra terminava na rodovia asfaltada, por cuja beira ele continuou andando.
Passou por um barracão com uma bomba de gasolina alaranjada na frente, mas não viu o velho na porta tomando um refrigerante e vendo o tempo passar. Ao acabá-lo lentamente, o velho, por cima da garrafa, deu uma olhada enviesada na figurinha de paletó xadrez que ia sumindo na estrada. Pôs então a garrafa vazia sobre um banco e, olhando sempre para lá, enxugou a boca na manga da camisa. Depois entrou no barracão, onde apanhou na prateleira de doces uma barra de chocolate mentolado de trinta centímetros de comprimento por cinco de largura, que pôs no bolso. Por fim entrou em seu carro, no qual lentamente, estrada abaixo, foi seguindo o garotinho.
Coberto de poeira e suor, Bevel, ao chegar ao campo pontilhado de plantinhas roxas, atravessou-o num galope, para entrar o mais rápido possível na mata. Nela, errou de árvore em árvore, tentando encontrar a trilha que eles haviam seguido. Afinal deu com uma linha contínua, mais pisada, por entre as pinhas, e por ali enveredou e avistou, descendo abrupta por entre as árvores, a trilha toda tortuosa.
Mr. Paradise, tendo deixado seu carro lá na estrada, e bem lá atrás, caminhou para o lugar em que estava acostumado a sentar-se quase todos os dias, segurando sua vara de pesca que nunca um peixe mordia e contemplando o rio que passava por ele. Quem o visse de longe poderia pensar ter visto um pedregulho velho semioculto no mato.
Bevel nem o notou. Viu apenas o rio, com seu brilho amarelo-avermelhado, no qual entrou de paletó e sapatos e do qual tomou um gole. Engoliu um pouco, cuspiu o resto. E ali ficou, com a água lhe batendo no peito e olhando em volta. O céu estava todo de um azul-claro bem leve, de ponta a ponta — exceto no buraco onde o sol se encaixava —, e as copas das árvores o adornavam como franjas ao redor da parte mais baixa. Seu paletó boiou na superfície, envolvendo-o como as folhas flutuantes de uma estranha planta aquática, e ele se abriu em sorrisos para o sol. Não queria mais saber de pastores, nem queria mais bancar o bobo: ele mesmo ia se batizar dessa vez e continuar sempre em frente, até encontrar, no rio, o Reino de Cristo. Não querendo mais perder tempo, enfiou a cabeça embaixo d’água e se foi.
Num segundo, botando água pela boca e ofegando, sua cabeça voltou à tona; ele mergulhou outra vez e o mesmo aconteceu. O rio não o queria. Tentou de novo e, engasgado, de novo flutuou. Quando o pastor o segurou embaixo d’água, tinha sido assim também — algo puxava seu rosto para cima, contra a sua vontade. De repente ele parou e pensou: é brincadeira, não passa de mais uma brincadeira! Pensou no quanto tinha andado por nada, e começou a dar socos, tapas e pontapés no rio imundo. Seus pés já não pisavam em nada. Um grito baixo, de indignação e de dor, lhe veio à boca. E ele ouviu um grito alto, logo a seguir, e virou a cabeça e viu o que parecia ser um porco gigante que corria atrás dele, brandindo um caniço vermelho e branco e continuando a gritar. Mergulhou mais uma vez, e agora a correnteza que esperava o pegou, qual longa mão delicada, e levemente o levou para a frente e o fundo. Por um instante ele foi tomado de surpresa: depois, como se movia cada vez mais rápido e sabia estar indo a algum lugar, toda a zanga e o medo o abandonaram.
A cabeça de Mr. Paradise aparecia de vez em quando na superfície da água. Por fim, bem rio abaixo, o velho se ergueu fazendo esforço como um monstro fluvial muito antigo, e lá ficou de mãos vazias, seguindo a linha do rio até onde podia alcançar com seu olhar desanimado.
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