domingo, 27 de junho de 2021

Ela era feia. David Pinski

 




Ela era feia, impiedosamente feia.

Um rosto bexiguento, que parecia uma peneira de ervilhas. Um nariz largo e achatado, implantado na face com tamanha força que afundada com o septo entre os olhos e deixara entre as maçãs uma larga nesga de carne e duas amplas e compridas narinas. O choque catastrófico do nariz com o rosto também esparramara-lhe os dentes pela boca. Nasceram eles em canhestra desordem, crescendo uns sobre os outros, empurrando-se uns aos outros, atrapalhando um o caminho do outro.

Mas o corpo era bonito, esbelto e gracioso, musculoso e flexível, revestido de esplêndida cútis branca, que seria luxuriosamente acarinhada pela mão de um homem. Adornado com dois pequenos e rijos seios, duas níveas pombinhas, e encimado por um pescoço, como que de alabastro, na linguagem poética.

Vista por trás, os homens corriam em seu encalço. Com admiração, com entusiástica expectativa, prontos a deleitar-se com a face que os olhos deveriam descobrir. Ao alcançá-la, estremeciam. Retrocediam como que violentamente repelidos. As pernas fraquejavam, os olhos enchiam-se de asco, nos lábios rogava uma maldição.

Ela ouvia os passos ansiosos às suas costas e via o terrível desengano de quem a alcançava. No começo, isso lançava-a no desespero, quase no suicídio, mas logo começou a acelerar os passos, a fim de não ser alcançada. O seu andar pelas ruas tornou-se uma fuga e uma perseguição. Depois passou a ocultar o rosto, mais tarda à feiura acrescentou um olhar irado e maligno, que aumentava o susto do perseguidor.

Bem depois quis tornar-se indiferente, mas não deu resultado. Seu belo corpo sadio ansiava por alegria, pela alegria do amor, por abraços, pelo favor masculino. De noite, na cama, esticava-se, contorcia-se e curvava-se, com o pulso palpitante e o olhar ardente. Almejava os passos perseguidores, esperava-os, escutava-os.

Até que, por fim, passou a acolher o perseguidor com um sorriso nos lábios. Talvez o sorriso escondesse a feiura, diminuísse o susto, mantivesse no perseguidor algo da anterior curiosidade maravilhada. O sorriso devia sugerir que ria do desencanto dele e convidava-o a rir com ela.

Se fosse rica, por certo compraria um homem. Não há feiura em que a gente não se apegue, contanto que seja recoberta de ouro.

Mas era uma pobre escrava assalariada, que muitas vezes economizava no pão e gastava em vestidos, porque o belo corpo exigia. Mas, nos períodos de desemprego, pensava que, se obtivesse trabalho, começaria a juntar um dote…

Ou, se o medo do pecado não a envolvesse como uma cerca de arame farpado, sem dúvida lograria um apreciador. Um apreciador temporário que, na escuridão da noite, olvidaria a feiura do rosto e lembraria apenas a ternura e o esplendor de seu corpo jovem. Ela imaginou como haveria de consegui-lo: velaria o rosto e sairia à noite pelas ruas… Mas envergonhou-se desses pensamentos, cuspiu… Seu coração latejava. Oh! Não, jamais faria isso!

Morava em um prédio a lesta da Third Avenue, um andar acima do elevator. Na trepidação de trens, bondes, automóveis, caminhões que passavam incessantemente, sobre a dura ponte de pedra, misturada com vozes humanas. Acima desse rumor, ela no seu quarto, que dava para a rua, não ouvia a própria voz, mas tampouco os próprios pensamentos, nem o seu anseio de alegria, nem o seu chamado à vida.

Era uma noite de primavera, quando um grito de júbilo bradou nela, acima do tumulto da rua, uma noite insone, exaustiva. Seu corpo era-lhe tão doce e tão pesado. Ela o afagava e alisava e queria ficar livre dele, libertar-se. A noite inteira assim. Virou-se, contorceu-se, sem encontrar a paz.

De manhã, não foi ao trabalho. Não tinha forças, fez um gesto com a mão: seja!

Sentada junto à janela, de camisola, olhava os trens que passavam, desatenta, cansada, sonolenta. As composições corriam abarrotadas de gente, que se dirigia apressadamente às suas ocupações. Rostos desfilavam à sua frente, incontáveis rostos de homens e mulheres, e ela os encarava. Não pensava em nada, só olhava e algo a preencheu. Como seria bom se pudesse ficar assim sentada a vida inteira!

Um jovem, na plataforma de uma composição que passou a toda velocidade, notou a figura quase nua da mulher à janela e estremeceu. Não percebeu a feiura dela, deu-lhe um sorriso, gritou algo e atirou-lhe um beijo.

Um segundo apenas.

O trem levou-o rapidamente embora, mas no ar, atrás dele, continuou a pender um sorriso, uma exclamação e um beijo. Ela os viu à sua frente: balançavam-se embaixo, sobre o parapeito de ferro do trem elevado no caminho de sua janela. Um sorriso, uma palavra e um beijo.

Ela apertou fortemente a face contra a vidraça, depois ergueu a janela, pôs a cabeça de fora, ficou a olhar o trem que desaparecia. Quando não mais conseguiu divisá-lo, voltou os olhos para o local onde continuavam a pender no ar o sorriso, a palavra e o beijo. Meigo sorriso aflorou-lhe os lábios. A alma exangue no corpo exangue sentiu prazer.

Um trem irrompeu. Ela observou os semblantes e buscava um olhar. Ainda uma vez, um sorriso, uma palavra e um beijo… Ela baixou a janela. Sob as vidraças, veriam a sua nudez, mas não a sua feiura…

Ocorreu-lhe algo. Um cálido afluxo de sangue derramou-se por seu corpo. Seus olhos ardiam. Ponderou por mais um momento… e depois deixou cair a camisola. Ficou completamente nua.

Um comboio de cinco vagões irrompeu, passou, apinhado de gente dentro e fora, nas plataformas. Notaram um corpo nu de mulher junto à janela. No primeiro, no segundo vagão, no terceiro, no quarto, no quinto… Um frêmito percorreu todos os corpos masculinos. Um gritar, um suspirar, um volver de cabeças, um curvar-se das janelas, um amontoar-se de uns sobre os outros, no primeiro vagão, no segundo, no terceiro, no quarto, no quinto… Frear o trem… Detê-lo… Dar marcha à ré… Um lamentar-se porque o trem corre tão depressa… No primeiro vagão lamentaram, porque não estavam ao mesmo tempo no segundo, no segundo lamentaram porque não estavam no terceiro e assim por diante.

Na plataforma traseira do quinto vagão houve uma aglomeração, um empurra-empurra, que por pouco não termina em desastre.

Havia muito que deixara de ser visível, mas os olhos permaneciam como que jungidos ao local da janela. Logo o prédio de cinco andares também sumiu na confusão do casario. Mas não paravam de debruçar-se, de torcer as cabeças, de espirar com os olhos…

Ela viu a agitação que provocara, os debruçamentos e os torcimentos, sentiu o grito e o estremecimento, captou os inumeráveis olhares, e continuou como que pregada ao lugar, tremendo com todos os membros.

Quando o trem se desvaneceu, mal conseguiu arrancar-se da janela. Exausta, atirou-se À cama, ainda mais exausta do que antes, mas com a extraordinária sensação de satisfação, completamente.

Homens, muitos homens, vagão após vagão, lhe atiraram olhares famintos, ansiosos, acotovelando-se e debatendo-se para vê-la. Levaram consigo o seu corpo nu. Hão de carregá-lo o dia inteiro. À noite, quando voltarem para casa, hão de procurá-la nas janelas. E, na manhã seguinte, tornarão a procurá-la, irão esperá-la, sentir-se-ão desenganados, quando não a virem, contarão e falarão, contá-la-ão como uma maravilha, ela se tornará uma lenda.

Mas o corpo dela também há de lembrar. Lembrará os incontáveis olhares, a sua curiosidade, a fome que havia neles.

Seu corpo transbordou de alegria.

Podia rir, rir.

Mas escondeu a cabeça no travesseiro e chorou amargamente.

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