domingo, 6 de junho de 2021

História alegre. Anton Tchekhov

 1886 


  Doze horas de um claro dia de inverno. Neva muito, está um frio de doer, Nadya dá-me o braço, seus cachos e lábios estão cobertos por gelo prateado. Estamos no alto do outeiro. De nossos pés até lá embaixo estende-se um declive regular, no qual o sol se reflete, como em um espelho. Perto de nós, um pequeno trenó guarnecido de lã de um vermelho vivo. 

 – Vamos escorregar, Nadyezhda Petrovna – digo, suplicante. – Só uma vez! Garanto-lhe que chegaremos sãos e salvos.

   Nadya, porém, tem medo. Todo o espaço que vai de suas pequenas botas até a base do monte de gelo parece-lhe um precipício apavorante, de uma incomensurável profundidade. Desfalece, perde o fôlego quando olha para baixo ou quando apenas lhe proponho sentar-se ao trenó. Será um risco, ela poderá cair no abismo! Morrerá ou perderá a razão.

  – Peço-lhe... Não deve ter medo – insisto –, não compreende que é pusilanimidade, pura covardia?

 Ela acaba por ceder, e eu percebo, em seu rosto, que teme perder a vida. Faço-a sentar-se, lívida, trêmula, no trenó: enlaço-a e precipitamo-nos no abismo. 

  O trenozinho voa como uma bala. O ar que cortamos fustiga-nos o rosto, uiva, assobia-nos aos ouvidos, faz arder nossa pele, belisca-nos cruelmente, procura arrancar-nos a cabeça do pescoço. A velocidade do vento nos corta a respiração. Dir-se-ia que o diabo em pessoa nos agarra e, urrando, nos arrasta ao inferno.  Em torno, os objetos misturam-se em uma longa faixa que foge, vertiginosamente... Mais um instante e estaremos mortos. 

 – Amo-a, Nadya – digo, baixinho. 

 O trenó começa a diminuir marcha, o uivo do vento e o rangido das lâminas estão menos assustadores, a respiração não mais nos falta e eis-nos, finalmente, aqui embaixo. Nadya, mais morta do que viva, lívida, mal respira. Ajudo-a a se levantar. 

 – Por nada no mundo recomeçaria – diz-me, fitando-me com seus grandes olhos cheios de medo. – Por nada no mundo! Quase morri! 

Ao cabo de um instante, recupera-se e olha-me interrogativamente: terei sido eu quem pronunciou aquelas palavras, ou ela imaginou tê-las escutado, no turbilhão? 

 E eu, de pé, diante dela, fumo e examino atentamente minhas luvas. Nadia toma-me o braço e caminhamos um pouco em torno do monte de neve. Visivelmente, o enigma não a deixa repousar. As palavras teriam sido pronunciadas por mim ou não? Sim ou não? Sim ou não? É uma questão de amor-próprio, de honra, de vida, de felicidade, uma questão muito grave, a mais grave do mundo. 

 Ela me atira olhares impacientes, tristes, olhares perscrutadores, responde-me vagamente, espera que eu fale. Oh! Que jogo expressivo, nesse encantador palminho de rosto! Que jogo expressivo! Vejo-a lutar contra si própria, sinto sua necessidade de falar, de indagar... mas sinto, também, que não encontra as palavras, que está envergonhada, que a felicidade a inibe... 

– Sabe...? – diz-me, sem me olhar. 

– O quê? – pergunto. 

– Diga... o que acha de fazermos outra descida? 

Subimos ao alto do monte, pela escada. Novamente, faço-a sentar-se no trenozinho, lívida, trêmula; e mais uma vez nos entregamos ao remoinho assustador, mais uma vez o vento uiva e as lâminas do trenó rangem, mais uma vez, em pleno ruído, em plena corrida, digo, baixinho: 

– Amo-a, Nadenka.

 Quando o trenó para, ela envolve com um olhar o outeiro que acabamos de descer, depois perscruta, longamente, meu rosto, escuta minha voz indiferente e fria... e toda a sua pessoa, até mesmo seu regalo e seu capuz, toda a sua pessoa expressa uma perplexidade extrema.

 Lê-se em seu rosto: “O que está acontecendo? Quem pronunciou essas palavras? Ele... ou eu apenas as sonhei?” Tal incerteza a inquieta, faz com que perca a paciência. A pobre criança não responde às perguntas, faz beicinho, está prestes a chorar. 

– E se voltássemos? – proponho. 

– É que... gosto do trenó – diz ela, corando. Vamos a mais outra descida. “Gosta” do trenó. Isso, porém, não impede que, quando se sente, fique lívida, mal respire, trema de pavor. 

Fizemos uma terceira descida e percebo que ela olha em meu rosto e vigia meus lábios. Mas eu os cubro com um lenço, tusso. Quando atingimos o meio da rampa, consigo articular: 

– Amo-a, Nadya. E o enigma continua enigma. 

Nadya, silenciosa, sonha... Reconduzo-a à casa, ela tenta retardar o andar, arrasta os passos e espera, sempre. Mas eu não vou pronunciar as palavras. Vejo que sofre, que faz enorme esforço para não dizer: “Não pode ter sido o vento... E eu não quero que tenha sido o vento.” 

No dia seguinte, recebo este bilhete: “Se vai passear de trenó hoje, venha me buscar. N.” 

E desde então vou diariamente passear de trenó com ela, e, a cada descida, repito as palavras de sempre: – Amo-a, Nadya. 

Logo ela se acostumou com essa frase, assim como nos acostumamos ao vinho, ou à morfina. 

Já não pode viver sem ela. É verdade que a descida no trenó a assusta tanto quanto antes, mas agora o medo e o perigo acrescentam um encanto particular às palavras de amor, às palavras que, como antes, constituem um enigma e enlanguescem sua alma. 

As suspeitas caem sobre os mesmos personagens: o vento e eu. Qual dos dois lhe confessa seu amor, ela não sabe. Aparentemente, já não importa de onde vem a confissão: que importância tem o frasco, diante da embriaguez do perfume? 

Certa vez, ao meio-dia, me dirijo sozinho ao trenó. No meio da multidão, vejo Nadya aproximar-se do outeiro e procurar-me com os olhos. Depois, sobe timidamente a escada... 

 É terrível descer sozinha, como é terrível! Está branca como a neve, treme, tem-se a impressão de que está a caminho do suplício, mas continua, olhando em frente, resoluta. Sem dúvida, decidiu fazer uma experiência: ouvirá as doces e maravilhosas palavras sem que eu esteja? 

Vejo-a sentar-se no trenó, lívida, boca entreaberta de medo, fechar os olhos e lançar-se, depois de enviar um adeus para sempre à terra... As lâminas do trenó rangem... Estará ouvindo as palavras? Não sei... Vejo-a, depois, sair do trenó esgotada, sem forças. E leio em seu rosto que continua sem saber se ouviu ou não alguma coisa. O pavor da descida tirou-lhe a faculdade de ouvir, de distinguir os sons, de compreender. 

E veio março. E a primavera. O sol torna-se mais acariciante, nosso outeiro de gelo escurece, perde seu brilho e termina por fundir-se. Adeus, passeios de trenó! Não há mais onde a pobre Nadya possa ouvir palavras de amor, não há mais alguém para pronunciá-las, pois já não há mais vento e eu vou partir para São Petersburgo por muito tempo, talvez para sempre. 

 Dois dias antes de minha partida, estava sentado em meu jardim, onde uma alta paliçada, eriçada por causa das pontas, separava-me da casa de Nadya. Fazia ainda bastante frio, ainda havia neve sob o estrume, as árvores dormiam ainda, mas tudo isso já anunciava a primavera; e os corvos, que se instalavam para dormir, crocitavam ruidosamente. 

 Aproximei-me da paliçada e olhei longamente por uma fenda. Vi Nadya aparecer no alto da escadaria e erguer para o céu um olhar triste, dolorido. O vento primaveril, como um chicote, fustigava seu rosto pálido e abatido... 

 Lembrava-lhe, talvez, o vento que uivava a nossos ouvidos, no outeiro, quando ouviu as palavras de amor. Seu rosto assumiu uma expressão triste, e uma lágrima deslizou sobre ele. A pobre criança estendeu os braços, como se suplicasse à nortada que lhe trouxesse essas palavras, uma vez mais. 

Então, aproveitando uma lufada, murmurei: 

– Amo-a, Nadya.

 Deus, o que lhe estaria acontecendo? Ela soltou um grito, um sorriso iluminou-lhe o rosto. Estendeu os braços para o vento, alegre, feliz, arrebatada! E eu fui arrumar minha mala. Isso foi há muito tempo. Nadya, agora, está casada: casou-se, ou casaramna, pouco importa, com o secretário da Câmara da Nobreza, e tem três filhos. 

Jamais esqueceu o tempo em que íamos andar de trenó, quando o vento levava até ela palavras de amor: “Amo-a, Nadenka.” E, no momento, é a mais feliz recordação, a mais tocante, a mais bela de sua vida. E eu, agora, mais amadurecido, não compreendo por que dizia tais palavras, por que me divertia com aquela brincadeira. 

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