segunda-feira, 19 de julho de 2021

Um anjo de caridade. Necdet Ökmen






Tinha nevado a noite inteira. De manhã, quando a neve deixou de cair, o solo estava coberto; derreteu-se um pouco na hora em que a gente começou a sair de casa para se dirigir ao trabalho e um pálido sol hibernal fez a sua aparição.

Durante a noite, com a nevada, verificou-se um leva aumento de temperatura, mas ao alvorecer, o frio voltara a ser intensíssimo. O vento tinha gelado os cândidos flocos em fragmentos de cristal e das goteiras pendiam longas fileiras de pedrinhas de gelo. Todas as vezes que um passarinho pousava nos fios do telégrafo, a neve que neles estava acumulada caía ao solo, em manchas irregulares. A calçada não se diferenciava mais da rua onde os transeuntes afundavam até os tornozelos.

Nem bem terminou a faina da cozinha, a moça que habitava na pequena casa amarela, no grupo dos edifícios modernos alinhados nos dois lados da rua, passou para a sala de visitas, levantou a coberta da estuda, olhou satisfeita o vívido fogo esplendente e, depois de haver atirado algumas panzadas de carvão, estendeu para as chamas as suas belas mãos brancas, esfregando-as uma contra a outra. Depois, virou as costas para a estufa e somente quando se sentiu bem aquecida também desse lado, foi sentar-se junto à janela.

O calor já havia dissolvido a leva camada de gelo que durante a noite se formara sobre os vidros; permanecia apenas uma exígua linha em baixo. Ela correu sobre a mesma unha bem tratada e o tépido contato da ponta do dedo bastou para apagar também esse delgado traço. Então, esgotada toda a possibilidade de distração, apoiou a testa na vidraça, para olhar o que ia lá por fora.

A neve brilhava sob o sol com uma claridade ofuscante. Além dos capotes habituais, os passantes traziam também certos pesados capuzes que lhes cobriam todo o resto, deixando livres apenas os olhos. Alguns pequenos escolares brincavam na rua, atirando-se uns aos outros na neve acumulada contra os passeios, e pisando os pontos onde o branco tapete se apresentava virgem de rastos. Por fim até mesmo os filhos dos pobres, que não possuíam galochas de borracha, pisavam entre os montes de neve, sem se preocuparem com a umidade e o frio.

O carro da limpeza estava parado adiante; das narinas do cavalo que esperava paciente, pendiam duas minúsculas estalactites. Os varredores esforçavam-se em limpar o passeio; com as maçãs do rosto violáceas e as mãos feridas pelas frieiras, transportavam a neve para o carro, onde outros homens munidos de pás, os esperavam. Apesar do frio, tinham o ar de quem se diverte: riam e brincavam alegremente.

Também a moça, embora admirada por aquela alegria que parecia contrastar com o rigor da estação, surpreendeu-se a rir. O carvão, havia pouco, ajuntado ao fogo, tinha feito subir a temperatura interna e um langor acariciante lhe penetrava o sangue. Levemente aturdida, acomodou-se melhor na poltrona e, um instante depois, esqueceu a neve, o gelo, os meninos divertidos, os varredores de mãos arroxeadas, para se abandonar a pensamentos mais doces e mais agradáveis.

Ainda estava imersa nessa fantasmagoria quando viu um moleque que, hirto diante do portãozinho do jardim, fazia-lhe sinal com a mão. Ergueu a cabeça e aguçou os olhos para ver melhor, procurando no entanto imaginar o que poderia querer o inesperado visitante. Mas este, reconhecendo que não teria jamais conseguido fazê-la compreender seu pensamento a tal distância, já havia entrado no jardim, aproximando-se da janela.

Teria, quando muito, catorze anos. Seu rosto era magro e sujo, a camisa aberta até o umbigo, as calças reduzidas a farrapos. Através dos buracos do pano se entrevia a pela escura, seca como um pergaminho. Estava coberto de sujeira da cabeça aos pés: os cabelos emplastados e os dedos inteiramente enegrecidos. Num pé calçava velho sapato rasgado; no outro uma sola de couro amarrada por barbante. Arrepiado de frio, procurava cobrir pelo menos o peito com a camisa rasgada.

A moça descerrou a janela a fim de lhe perguntar o que desejava.

Ele respondeu lançando-lhe um olhar sabiamente calculado, para induzi-la a sentimentos de caridade.

– Minha irmã – disse – tenho fome. Se a senhora tem carvão para partir, posso encarregar-me disso. Posso também retirar a neve diante da casa. Mas preciso comer alguma coisa.

Depois, abaixando os olhos, ajuntou:

– Sinto tanto frio!

No primeiro momento, a moça pensou em lhe responder que tinha já pronto o carvão para usar nas duas semanas próximas; mas o aspecto infeliz do menino que se queixava do frio e o tom suplicante de sua comovera-a.

Com um leve arrepio, sem dar conta do que fazia, ele levantou o paletó para agasalhar a garganta.

– Está bem, menino – disse. – Dê a volta à casa. A carvoaria é lá no fundo. Espere-me um minuto, o tempo de ir buscar a chave.

Um sorriso fugitivo aflorou aos lábios sujos e rachados do menino, que se apressou em contornar o jardim, afundando na neve até os tornozelos. Diante da carvoaria a moça lhe mostrou de que tamanho deviam ser os pedaços de carvão, depois de precipitou na cozinha a fim de lhe preparar qualquer coisa para comer. Fazia-o com zelo, com entusiasmo, como acontece com as pessoas que, não tendo o hábito de realizar boas obras, sentem-se felizes quando podem dar uma prova das suas inclinações caridosas.

No guarda-comida encontrou um pouo de sopa que sobrara do jantar da véspera: “Já que ninguém a quis” – disse para si mesma, enquanto a punha a esquentar no gás – “vou dá-la a este pobrezinho”.

A ideia de praticar uma ação caridosa lhe proporcionava tanto prazer que se sentiu incapaz de permanecer tranqüila. É preciso fazer o bem na terra, para alcançar-se o céu”, meditava: “Deus sabe que o menino está com fome. Sem dúvida, esta manhã não comeu coisa alguma, e a mesma coisa ontem de noite. Claro que não comeu. E como tremia de frio! Não tem nada a cobri-lo, a bem dizer. Um bom prato de sopa quente lhe restaurará as forças… Ah! Que bom ter o coração amável! Faz tanto prazer que se sentiu incapaz de permanecer tranqüila. “E logo se vê quando uma pessoa é boa. É uma coisa que se lê na fisionomia!”.

Neste ponto do solilóquio a moça sentiu o desejo de verificar qual era o seu aspecto ao realizar uma boa ação: fazendo um esforço para não mudar de atitude, “para manter a pose”, correu ao espelho do banheiro, na intenção de apanhar ao menos um relâmpago daquela transfiguração. Esperava ver-se refletida com um luminoso sorriso à maneira de Mona Lisa; no entanto, não encontrando no próprio rosto nada desse gênero, ao contrário, mais que desiludida, ressentida:

– Os lábios não estão muito bem – disse para consigo mesma. – Sou por demais sensível. Não posso suportar a vista do sofrimento alheio. Embora tenha o coração delicadamente bom, não transparece. Com certeza é devido aos lábios.

Sua mística exaltação se desvaneceu com a mesma subitaneidade com que aparecera. Voltando sem pressa à cozinha, decidiu não dar o doce ao menino.

– Em sua casa certamente ele nunca comeu isso. Por que motivo havia de comê-lo aqui? Um prato de sopa é mais que suficiente.

Mas, enquanto enchia o prato, mudou novamente de ideia:

– Enfim, posso dar-lhe um pedacinho. Qualquer coisa doce lhe dará prazer. Quando se deseja alcançar o Paraíso, deve-se realizar algum esforço. Provavelmente ninguém chegou ao Céu com um simples prato de sopa. Desde que os tenho, posso fazer caridade até o fim. Conheço pessoas que teria batido a porta na cara, a esse pobre menino! Nem todos são bons como eu. Deus quis submeter-me a uma prova. Deus quis certificar-se de que eu sei praticar verdadeiramente o bem. Portanto, é preciso alimentar como se deve aquele infeliz.

Tomou o grosso naco de marmelada que estava na prateleira do guarda-comida e colocou num prato generosa porção. Depois, tirou da caixa do pão algumas fatias amanhecidas, reuniu tudo em uma bandeja e se dirigiu ao patamar, a fim de chamar o menino. Enquanto ele subia os degraus de escada, enxugando as mãos nas calças e levantando o braço para alcançar a bandeja, teve nos olhos um estranho clarão.

– Já terminou o trabalho? – perguntou a moça.

– Ainda não, irmãzinha. Mas falta pouco.

– Está bem. Você terminará depois de haver comigo. Tome a bandeja. Eis uma boa sopa que o aquecerá. Coma-a logo, antes que esfrie.

– Que Deus a abençoe.

A frase agradou a moça.  Não se tratava de uma simples forma obsequiosa, tão habituais nos mendigos comuns que invocam o nome de Deus somente para enganar o próximo. Qualquer pessoa compreenderia que aquela frase era a espontânea reação de um pobre menino colocado diante de uma cheirosa sopa fumegante e um belo pedaço de marmelada.

– Gratidão sincera – pensou ela. – Aquelas palavras lhe subiam ao coração. Ah! Que prazer o de praticar uma obra meritória!

Dirigindo-se ao menino, disse em voz alta:

– Bom apetite! Aproveite a comida enquanto está quente! Deu-me muito trabalho para que ficasse assim gostosa.

O menino voltou à carvoaria, sustentando com cautela a bandeja para não entornar a sopa. Praticamente, a moça esperaria um novo agradecimento: mas se consolou com a reflexão de que já tinha ouvido agradecer uma vez e com uma entonação tão sincera que isso poderia bastar-lhe muito bem.

Minutos depois o menino reapareceu. Na bandeja não havia mais uma migalha que fosse. O peito ossudo do pobrezinho, que o pano rasgado não podia resguardar do frio e do vento, comoveu a mulher.

– Por que você não abotoa a camisa? – perguntou. – Deve estar gelado até os ossos.

– Tenho frio – respondeu com um sorriso embaraçado. – Mas não posso abotoar a camisa. Caíram todos os botões.

No primeiro instante ela pensou em dar-lhe uma agulha. Depois se lembrou de haver guardado no fundo de uma velha canastra a blusa de malha do esposo, a qual tinha encolhido de tal maneira que ele já não podia vesti-la. Foi procurá-la e quando a encontrou pôs-se a esperar com impaciência que o menino terminasse o trabalho, para entregá-la.

Finalmente, ele apareceu com a chave da carvoaria.

– Tem mais alguma coisa para eu fazer?

Ela o espiava, atenta, para surpreender o efeito da surpresa que estava para lhe fazer.

– Não, menino. Acabou. Cá está o dinheirinho. E olhe o que lhe vou dar de presente: um belo casado de malha do meu marido. Vejamos se serve para você.

E ela lho entregou, para que experimentasse.

O menino fixava-a admirado.

– É para mim? De verdade?

Feliz por haver provocado a reação desejada, a moça lhe respondeu com satisfação:

– Claro que é para você! Morreria de frio se não tivesse qualquer coisa de pesado para vestir! Com isto, não sentirá mais a mordida do gelo!

O menino sorriu e a moça observou que ele tinha os dentes extraordinariamente brancos. Como se não fosse capaz de convencer-se da mórbida tepidez daquela lã, ele continuava a apalpar o casado.

– Não. Com isto não se deve sentir frio… – disse, repetindo as frases dela.

– E agora? Que espera para vesti-lo?

Ele envergou-o sobre a camisa esfarrapada. As mangas eram um pouco compridas: arregaçou-as e acariciou de novo a lã, com a palma da mão.

– Fica que é uma luva para você – observou a mulher. – Gosta deste casaco?

– Sim, muito. É magnífico. Que Deus a abençoe. Que Deus a abençoe sempre, senhora!

– Está bem. Então, até à vista.

Hesitante, o moleque voltou as costas para se ir embora. Mas, parando de repente, voltou no mesmo pé.

– Dê-me uma pá, minha irmã; removerei a neve do pátio.

Ela julgou que o menino quisesse fazer um trabalho extraordinário, para lhe agradecer o presente.

– Não, não paga a pena. Não precisa descontar o casaco. A neve pode ficar onde está. Agora, vá-se embora…

Mas ele insistiu:

– Bastarão cinco minutos.

Para falar a verdade, a moça não poderia ficar mais contente.

– Ora, eu fui tão generosa com ele! Pode muito bem prestar-me também esse serviço – pensou, indo à procura da pá.

Meia hora depois, o menino, removida a neve do pátio, foi-se embora e a moça retomou seu lugar junto à lareira da sala.

– Esses pobrezinhos são fáceis de contentar – pensava. – Uma palavra amiga, algum dinheiro, um velho casado e um prato de sopa… para a sua felicidade. No momento de partir, esteve vai-não-vai para se ajoelhar e beijar as minhas mãos. Parecia verdadeiramente pasto da minha generosidade. Ele me fez lembrar aquele cachorrinho que, outro dia, encontrei a morrer de fome. Pobre animal! Quando lhe dei um naco de pão passado no molho, tive até medo de que enlouquecesse. Louco de alegria! Exatamente como este menino, que não conseguia encontrar palavras para manifestar a sua satisfação. Só Deus sabe o que eu represento a seus olhos. Um anjo de caridade que lhe deu de comer quando tinha fome, que lhe proporcionou a maneira de cobrir seu pobre corpo fraco e seminu. Uma criatura sublime… um ser sobrenatural!… Está tão cheio de reconhecimento, que por mim faria fosse o que fosse. Estou certa. Fosse o que fosse. Quando entrou, tinha uma expressão muito abatida, mas depois lhe brilhavam os olhos de alegria. E por quê? Porque teve a felicidade de encontrar uma mulher de coração. Está bem: realizei a minha boa ação deste dia. Tal qual como quando recolhi aquele pobre cachorrinho. Deus ama os que são bons com os homens e com os animais, que dão de comer aos esfomeados, que se esforçam por fazer o bem.

Se se tivesse mirado ao espelho, naquele momento, a moça veria em seus lábios um orgulhoso sorriso de complacência, pois conseguira subjugar um ser humano, conquistando-lhe a gratidão do seu estômago; sentia-se convicta de poder mandar sobre ele e, mais do que isso, persuadira-se de haver dado a Deus uma grande prova de caridade cristã, o que a enchia de contentamento. Apoiando-se comodamente no espaldar da poltrona, elevou ao Onipotente, com grande fervor, o pedido de enviar-lhe outros cachorros vagabundos, outros meninos esfomeados.

Cerca de meio-dia, sacudida finalmente do dorso daquela indolência feita de suave tepidez e de uma sutil convicção da sua superioridade moral, a moça saiu para fazer as compras. Depois da farmácia e do açougue, parou na quitanda; estava examinando as laranjas de Jafa, quando ouviu perto de si uma voz conhecida:

– Ali, olhe o meu casaco!

Arriscou um olhar; sim, era o seu moleque, que não a tinha visto.

– É bonito, não?

– Onde você o encontrou?

– Deu-mo de presente uma senhora que mora aqui perto. Em troca de lhe partir o carvão.

– E, ao invés de pagar, impingiu-lhe esse casaco?

– Você é maluco? Pagou-me. O casaco me foi dado de inhapa. Hum… Se você a visse… Que lasca! É de fazer crescer a água na boca! Quando se abaixou, para me mostrar de que tamanho deviam ser os pedaços de carvão, vi-lhe o colo. Os dois seios, sabe? Redondos e brancos como leite.

– Você não está mentindo?

A conversação fez corar a moça. Perturbada e confusa, abaixou a cabeça, como se todos os transeuntes pudessem identificá-la como “a senhora” de quem o menino estava falando. Um instante depois, deixando cair a laranja que tinha na mão, afastou-se apressada. Mas ainda teve tempo de ouvir a continuação da conversa:

– E não é tudo, sabe? Para me dar o prato de sopa, saiu para o patamar e eu, do ponto em que estava, admirei um panorama! As pernas e o resto, que você pode imaginar. A bandeja quase me caiu das mãos, é o que lhe digo!


 

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