sábado, 3 de julho de 2021

A ilha perdida. Luis Sepúlveda

 



Chama-se Mali Losinj e, vista do ar, é uma mancha ocre no Mar Adriático em frente da costa de um país que se chamou Jugoslávia. Cheguei lá uma vez sem planos nem prazos de maior, e numa velha casa de Artatore escrevi o manuscrito do que viria a ser o meu primeiro romance.

Por toda a parte floresciam as ameixieiras, os loendros e as pessoas. Florescia, por exemplo, Olga, uma bela croata que partilhava os deveres da sua pensão com o seu amor pela voz dilacerada de Camarón de la Isla. Florescia Stan, um esloveno que todas as tardes acendia o churrasco, abria umas garrafas de sliwovitz e convidava vizinhos e transeuntes a disfrutarem da hospitalidade da sua esplanada. Florescia Goyko, um montenegrino que fornecia peixe e lulas para a festa, e Vlado, um macedónio que cantava árias incompreensíveis e nem por isso menos belas. Com as suas histórias bem desfiadas, florescia Levinger, o farmacêutico bósnio, judeu, ex-membro do serviço de saúde dos resistentes antifascistas. Às vezes, Pantho, um sérvio expulso da Marinha, tocava acordeão, cantávamos todos, e à segunda garrafa de sliwovitz irmanávamo-nos no carinho dos diminutivos: Olgitza, Stanitza, Goylitza, Vladitza,  Panthitza. Entendíamo-nos graças a uma salada babélica de italiano, alemão, espanhol, francês e servo-croata.

- O que interessa é que nos entendemos - diziam-me.

- Na Jugoslávia a gente entende-se - repetiam. Tschibili, salud, prosit, salute, santé.

Mali Losinj foi durante vários anos o meu paraíso secreto, até que aconteceu qualquer coisa, qualquer coisa que víamos aproximar-se e que nenhum dos meus amigos era capaz de explicar, mas que se notava numa alteração de humor ou numa resistência quando se tratava de falar da história do país.

Quando a bestialidade do nacionalismo sérvio tirou dos museus a parafernália chetnik e a bestialidade do nacionalismo croata se vestiu de ustacha, a ilha não ficou alheia ao conflito.

Olga fechou as portas do seu coração ao flamenco e as mulheres da sua pensão a todos aqueles que não fossem croatas. Pantho apareceu uma manhã a caminhar sozinho pelas ruas de Artatore arrastando uma bandeira sérvia e um velho ódio misturado com álcool. O alegre analfabeto que tocava acordeão repetia o discurso grosseiro de todos os nacionalistas e atacava especialmente o judeu Levinger, acusando-o de ser, como bósnio, um fundamentalista islâmico. Stan foi para Liubliana e da sua bela casa em Artatore só lhe restam umas fotografias mutiladas pela tesoura do rancor. Goyko e Vlado também abandonaram a ilha, atemorizados por Pantho, que insistia em alinhá-los para o seu triste desfile em honra de uma grande Sérvia, e por causa de Olga, que viu neles um perigo ortodoxo para a sua grande Croácia católica.

Levinger instalou-se em Sarajevo pouco antes do ataque sérvio. Escreveu-me de lá uma carta dolorida: “faltaram-nos pelo menos duas gerações para nos livrarmos do cancro nacionalista cujo único sintoma é o ódio”.

De cada vez que vejo a mancha de Mali Losinj num mapa, sei que a ilha continua lá, no Adriático, mas também sei que a perdi para sempre. Que aconteceu? Conheço a história dos Balcãs, mas não consigo entender o problema contemporâneo, e tenho a certeza de que a maioria dos sérvios, croatas, montenegrinos, kosovares, eslovenos, bósnios e macedónios também não o entendem, porque apenas conheceram a efectiva manipulação da História oficial, a que é escrita pelos vencedores.

Talvez, como Levinger diz na sua carta, essas duas gerações que faltaram se tivessem atrevido a olhar de frente para a sua acidentada história para que a ideia sempre fraternal da justiça abrisse caminho à única transição possível - a que esmaga os ódios e impõe a razão.

Dói-me a ilha perdida, e repete-me que os povos que não conhecem a fundo a sua História caem facilmente nas mãos de vigaristas, de falsos profetas, e voltam a cometer os mesmos erros.


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