Chama-se Mali Losinj e, vista do ar, é uma mancha ocre no Mar Adriático em frente da costa de um país que se chamou Jugoslávia. Cheguei lá uma vez sem planos nem prazos de maior, e numa velha casa de Artatore escrevi o manuscrito do que viria a ser o meu primeiro romance.
Por toda a parte
floresciam as ameixieiras, os loendros e as pessoas. Florescia, por exemplo,
Olga, uma bela croata que partilhava os deveres da sua pensão com o seu amor
pela voz dilacerada de Camarón de la Isla. Florescia Stan, um esloveno que
todas as tardes acendia o churrasco, abria umas garrafas de sliwovitz e
convidava vizinhos e transeuntes a disfrutarem da hospitalidade da sua
esplanada. Florescia Goyko, um montenegrino que fornecia peixe e lulas para a
festa, e Vlado, um macedónio que cantava árias incompreensíveis e nem por isso
menos belas. Com as suas histórias bem desfiadas, florescia Levinger, o
farmacêutico bósnio, judeu, ex-membro do serviço de saúde dos resistentes
antifascistas. Às vezes, Pantho, um sérvio expulso da Marinha, tocava acordeão,
cantávamos todos, e à segunda garrafa de sliwovitz irmanávamo-nos no carinho
dos diminutivos: Olgitza, Stanitza, Goylitza, Vladitza, Panthitza. Entendíamo-nos graças a uma salada
babélica de italiano, alemão, espanhol, francês e servo-croata.
- O que interessa é
que nos entendemos - diziam-me.
- Na Jugoslávia a
gente entende-se - repetiam. Tschibili, salud, prosit, salute, santé.
Mali Losinj foi
durante vários anos o meu paraíso secreto, até que aconteceu qualquer coisa,
qualquer coisa que víamos aproximar-se e que nenhum dos meus amigos era capaz
de explicar, mas que se notava numa alteração de humor ou numa resistência
quando se tratava de falar da história do país.
Quando a
bestialidade do nacionalismo sérvio tirou dos museus a parafernália chetnik e a
bestialidade do nacionalismo croata se vestiu de ustacha, a ilha não ficou
alheia ao conflito.
Olga fechou as
portas do seu coração ao flamenco e as mulheres da sua pensão a todos aqueles
que não fossem croatas. Pantho apareceu uma manhã a caminhar sozinho pelas ruas
de Artatore arrastando uma bandeira sérvia e um velho ódio misturado com
álcool. O alegre analfabeto que tocava acordeão repetia o discurso grosseiro de
todos os nacionalistas e atacava especialmente o judeu Levinger, acusando-o de
ser, como bósnio, um fundamentalista islâmico. Stan foi para Liubliana e da sua
bela casa em Artatore só lhe restam umas fotografias mutiladas pela tesoura do
rancor. Goyko e Vlado também abandonaram a ilha, atemorizados por Pantho, que
insistia em alinhá-los para o seu triste desfile em honra de uma grande Sérvia,
e por causa de Olga, que viu neles um perigo ortodoxo para a sua grande Croácia
católica.
Levinger instalou-se
em Sarajevo pouco antes do ataque sérvio. Escreveu-me de lá uma carta dolorida:
“faltaram-nos pelo menos duas gerações para nos livrarmos do cancro
nacionalista cujo único sintoma é o ódio”.
De cada vez que vejo
a mancha de Mali Losinj num mapa, sei que a ilha continua lá, no Adriático, mas
também sei que a perdi para sempre. Que aconteceu? Conheço a história dos
Balcãs, mas não consigo entender o problema contemporâneo, e tenho a certeza de
que a maioria dos sérvios, croatas, montenegrinos, kosovares, eslovenos,
bósnios e macedónios também não o entendem, porque apenas conheceram a efectiva
manipulação da História oficial, a que é escrita pelos vencedores.
Talvez, como Levinger
diz na sua carta, essas duas gerações que faltaram se tivessem atrevido a olhar
de frente para a sua acidentada história para que a ideia sempre fraternal da
justiça abrisse caminho à única transição possível - a que esmaga os ódios e
impõe a razão.
Dói-me a ilha
perdida, e repete-me que os povos que não conhecem a fundo a sua História caem
facilmente nas mãos de vigaristas, de falsos profetas, e voltam a cometer os
mesmos erros.
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