domingo, 4 de julho de 2021

Diario de a bordo. Albert Camus




 Cresci no mar e a pobreza me foi faustosa; depois, quando perdi o mar, todos os luxos passaram a ter para mim aparência opaca e a miséria tornou-se intolerável. Desde então espero. Espero as naves do retorno, a morada das águas, o dia límpido. Aguardo pacientemente com todas as minhas forças muito bem brunidas.

 Quando me vêem passar pelas ruas belas e sábias, admiro as paisagens, aplaudo como todo o mundo, dou a mão, mas não sou eu quem fala. Se recebo louvores, sonho um pouco; se me ofendem, espanto-me menos ainda. Depois, esqueço e sorrio a quem me ultraja ou então cumprimento com excessiva cortesia a quem estimo. Que fazer, se minha memória existe apenas para uma só imagem? Por fim, sou intimado a dizer quem sou. “Nada ainda, nada ainda..;”

 E nos enterros que costumo superar-me. Na realidade, sobrepujo-me a mim mesmo. Caminho com passo lento pelos arrabaldes floridos de ferros velhos, sigo por amplas ruas ajardinadas, plantadas de árvores de cimento e que conduzem aos buracos de terra fria. Ali, sob o penso de gaze levemente avermelhada do céu, olho com atenção companheiros corajosos sepultarem meus amigos a três metros de profundidade. Nesses momentos, a flor que me é entregue por uma mão qualquer suja de barro, jamais erra o alvo da fossa quando atirada por mim. 

Tenho a dose precisa de piedade, o exato grau de emoção, a nuca convenientemente inclinada. Admiram-se de que minhas palavras sejam justas. Porém, não tenho nenhum mérito: espero. Espero há muito tempo. Por vezes, tropeço, perco a mão, deixo de acertar. Isso pouco importa, estou só nesses momentos. Assim, acordo no meio da noite e parece-me ouvir, ainda semiadormecido, um barulho de ondas, movimento de águas a respirar. Totalmente desperto, reconheço o vento nas folhagens e o rumor infausto da cidade deserta. Quando isso ocorre, todas as artimanhas que possa empregar parecem-me ainda insuficientes para esconder minha angústia ou trajá-la com as vestes da moda. Noutras ocasiões, ao contrário, sou ajudado. 

Em Nova York, certos dias, perdido no fundo desses poços de pedra e aço onde vagueiam milhões de homens, eu corria de um para outro, sem conseguir avistar o cimo, já esgotado, a ponto de cair ao chão, e sendo sustentado apenas pela própria massa humana que também busca a uma saída. Sentindo-me à beira da asfixia, meu pânico ia gritar. Mas, cada vez que isso acontecia, o chamamento longínquo de um rebocador vinha lembrar-me que essa cidade, cisterna solitária, era uma ilha, e que na extremidade da Battery a água de meu batismo esperava-me negra e podre, coberta de cortiças ocas. 

Assim, eu, que nada possuo, que a outros dei minha fortuna, que costumo acampar junto a todas as minhas casas, sinto-me, apesar de tudo, plenamente satisfeito quando quero; a todas as horas preparo-me para levantar ferros, o desespero me ignora.

 Não existe pátria para quem desespera e, quanto a mim, sei que o mar me precede e me segue, e minha loucura está sempre pronta. Aqueles que se amam e são separados podem viver sua dor, mas isso não é desespero: eles sabem que o amor existe. Eis porque sofro, de olhos secos, este exílio. Espero ainda. Um dia chega, enfim... Os pés nus dos marinheiros percorrem mansamente a coberta. Partimos ao nascer do dia. Desde o instante em que abandonamos o porto, um vento rápido e denso espanca vigorosamente o mar, que se revolve em pequenas vagas sem espuma. Um pouco mais tarde, o vento refresca e semeia as águas de camélias, logo desvanecidas. Assim, durante toda a manhã nossas velas estalam sobre um alegre viveiro. As águas estão pesadas, escamosas, cobertas de espumas frescas. De vez em quando, ouve-se o grito das ondas batendo na roda de proa; uma espuma amarga e untuosa, saliva dos deuses, escorre ao longo da madeira até chegar dentro da água, onde se dispersa em desenhos que morrem e de novo renascem, penugem de alguma vaca azul e branca, besta aguada que deriva ainda por muito tempo, seguindo nossa esteira. 

Desde o momento da acompanhando nosso navio, aparente, quase sem bater as partida, gaivotas vêm sem qualquer esforço asas. A bela navegação retilínea dessas aves apóia-se, muito de leve, sobre a brisa. De súbito, algo cai dentro d’água, num mergulho barulhento e brutal, proveniente da altura das cozinhas, provocando um alarme guloso entre as gaivotas, destruindo-lhes toda a beleza do vôo e inflamando um braseiro de asas brancas. Os pássaros giram loucamente em todas as direções e, depois, sem nada perder em rapidez, vão deixando, um a um, a confusão do bando para lançar-se ao mar em vôo picado. Após alguns segundos, ei-los novamente reunidos boiando no mar, ruidoso galinheiro que deixamos para trás, aninhado no côncavo das ondas que desfolham lentamente os detritos. 

Ao meio-dia, sob um sol atordoante, o mar, extenuado, ondula quase imperceptivelmente. A água, quando torna a cair sobre si mesma, rompe o silêncio com um som sibilante. Após uma hora de cocção, a água pálida, qual imensa placa de chapa metálica quase branca de tão brilhante, se encrespa. Encrespa-se, fumega, acabando por escaldar de calor. Dentro em pouco irá se voltar, a fim de oferecer ao sol seu rosto úmido, agora submerso nas ondas e nas trevas. 

Passamos pelas portas de Hércules, o promontório onde morreu Anteu. Mais além, o oceano está em toda parte e, de um só bordejo, dobramos Hornos e Boa Esperança, os meridianos esposam as latitudes, o Pacífico bebe o Atlântico. Logo em seguida, surge o cabo sobre Vancouver, depois nos dirigimos lentamente aos mares do sul. A mais algumas braças de distância, as ilhas de Páscoa, Desolação e Hébridas desfilam em comboio diante de nós.

 Certa manhã, bruscamente, as gaivotas desaparecem. Estamos sós, distantes de toda terra, com nossas velas e nossas máquinas. Sozinhos também diante do horizonte. As vagas vêm do leste invisível, uma a uma, pacientemente; chegam até nós e, pacientemente, tornam a partir em direção ao oeste desconhecido, uma a uma. Longo curso, jamais iniciado, jamais terminado... 

O riacho e o rio passam, o mar passa e permanece. Assim deveria ser o amor, fiel e fugitivo. Desposo o mar. Mar alto. O sol desce, sendo absorvido pela bruma muito antes do horizonte. Um breve instante, o mar fica rosado de um lado, azul do outro. Depois as águas escurecem. A andorinha do mar desliza, minúscula, na superfície de um círculo perfeito, no metal espesso e embaciado. 

E, na hora de maior quietude, no entardecer que se aproxima, centenas de cetáceos surgem das águas, caracolam durante alguns momentos em torno de nós, para logo desaparecerem em direção ao horizonte sem homens. Quando eles partem, restam o silêncio e a angústia das águas primitivas.

 Um pouco mais tarde ainda, encontro de um iceberg sobre o Trópico. Invisível certamente, após a longa viagem através dessas águas calorentas, mas eficaz: passa ao longo do navio a estibordo, onde os cordames ficam levemente borrifados por uma fina camada de geada, enquanto a bombordo vai-se findando um dia seco. 

A noite não cai sobre o mar; emerge do fundo das águas, que se vão escurecendo pouco a pouco com as cinzas densas do sol afogado, e sobe em direção ao céu ainda pálido. Um breve instante, Vênus permanece solitária por cima do negrume das ondas. Apenas o tempo de fechar os olhos, de tornar a abri-los, e as estrelas brotam na noite líquida. A lua apareceu no horizonte. A princípio ilumina debilmente a tona das águas e, quando se eleva mais, escreve na maciez da superfície. Ao atingir o zênite, por fim, sua luz estende-se através de uma longa faixa de mar, opulento rio leitoso que com o movimento o navio deságua sobre nós inesgotavelmente na escuridão do oceano. Eis a noite tépida, a fresca noite pela qual tanto ansiara em meio às luzes aparatosas, ao álcool, à turbulência do desejo. 

Ao navegar sobre espaços tão vastos, temos a sensação de que jamais atingiremos a meta final. Sol e lua surgem e desaparecem alternativamente, num mesmo encadeamento de luz e de sombra. Dias passados no mar, todos parecidos uns aos outros, como a felicidade... 

Esta é a vida rebelde ao esquecimento, rebelde à lembrança, de que fala Stevenson. 

Amanhece. Cortamos o Trópico de Câncer perpendicularmente, as águas gemem e se convulsionam. O dia vai nascendo sobre um mar encapelado, cheio de lantejoulas de aço. O céu está branco de bruma e de calor, com um brilho mortiço mas insustentável, como se o sol se houvesse liquefeito na espessura das nuvens sobre toda a extensão da abóbada celeste. Céu doentio por cima de um mar transtornado. 

À medida que a hora avança, o calor aumenta no ar lívido. Durante o dia inteiro, a roda de proa vai desalojando bandos de peixes voadores, pequeninos pássaros de ferro, obrigando-os a sair de suas guaridas nas ondas.

 À tarde, cruzamos com um paquete que vem subindo de volta às cidades. A saudação trocada por nossas sirenes com três longos gemidos de animais pré-históricos, os acenos dos passageiros perdidos sobre o mar e alertados pela presença de outros homens, a distância que vai crescendo pouco a pouco entre os dois navios e, finalmente, a separação sobre as águas malévolas, tudo isso provoca aperto no coração. 

Esses dementes obstinados, agarrados a pranchas, atirados sobre a crina dos imensos oceanos em busca de ilhas à deriva, quem, dentre aqueles que amam a solidão e o mar, poderá jamais deixar de amá-los? Na exata metade do Atlântico vergamos sob os ventos selvagens que sopram interminavelmente de um polo ou outro. Todos os brados que lançamos se perdem, esvaindose nos espaços sem limites. Contudo, um desses gritos, levado pelos ventos, dia após dia, aportará por fim numa das extremidades achatadas da terra e ressoará longamente contra as paredes enregeladas até o instante em que um homem, algures, perdido em sua concha de neve o escute e contente se digne de sorrir.

 Cochilava sob o sol das duas horas, quando um ruído tremendo me despertou. Vi o sol no fundo do mar, as vagas reinavam no céu revolto. De repente, o mar ardia, o sol escorria em longos tragos gelados por dentro de minha garganta. Em torno a mim, os marinheiros riam e choravam. Amavam-se uns aos outros, mas não podiam perdoar-se. Nesse dia, compreendi o mundo tal como era, decidi aceitar o fato de que o bem que nele existia pudesse ser, a um só tempo, maléfico, e suas perversidades, salutares. Nesse dia, compreendi que existiam duas verdades, das quais uma jamais deveria ser dita. 

A singular lua austral, um tanto limada, nos acompanha durante várias noites e, depois, desliza rapidamente do céu até cair dentro da água, que a engole. Permanecem o Cruzeiro do Sul, as estrelas raras, o ar poroso. No mesmo momento, o vento para por completo. O céu rola e joga da popa à proa, por cima de nossos mastros imóveis. O motor parado, o velame descido, apitamos na noite quente enquanto a água golpeia nossos flancos amigavelmente.

 Nenhuma ordem, as máquinas emudecem. Na verdade, por que continuar e por que retornar? Estamos plenamente satisfeitos, uma silenciosa loucura nos adormece, invencível. Assim chega um dia que tudo realiza; então, é necessário deixar-se levar pela corrente, como aqueles que nadaram até o esgotamento. Realizar o quê? Desde sempre caloa mim mesmo a resposta. Õ amargo leito, cama principesca, a coroa está no fundo das águas! 

Pela manhã, nossa hélice faz espumar suavemente a água morna. Recuperamos velocidade. Por volta do meio-dia, vindo de longínquos continentes, um bando de cervos cruza nosso caminho, nos ultrapassa, nadando com regularidade em direção ao norte, seguido por pássaros multicores que de tempos em tempos vêm repousar em suas galhadas. Esta floresta ruidosa desaparece vagarosamente no horizonte. Um pouco mais tarde, o mar se cobre de estranhas flores amarelas. Ao entardecer, um cântico invisível nos precede durante longas horas. Adormeço confiante. Com as velas todas abertas, enfunadas por uma brisa transparente, navegamos velozmente sobre um mar claro e vigoroso. No auge da velocidade, a cana do leme a bombordo. 

E quando se aproxima o fim do dia, retificando uma vez mais nosso curso, adernados a estibordo, a tal ponto que nosso velame chega a aflorar a água, passamos em marcha muito veloz ao longo de um continente austral que reconheço por tê-lo sobrevoado, certa vez, às cegas, encerrado no bárbaro ataúde de um avião. Rei vadio, minha carruagem se arrastava nessa época; esperava o mar sem jamais alcançá-lo. O monstro urrava, decolava nos guanos do Peru, arremessava-se impetuosamente por cima das praias do Pacífico, sobrevoava as brancas vértebras quebradas dos Andes e, depois, a imensa planície da Argentina, coberta de rebanhos de moscas unia com um só golpe de asa os prados uruguaios inundados de leite aos rios negros da Venezuela, aterrissava, continuava a urrar, tremia de cobiça diante de novos espaços vazios ainda por devorar e, apesar de tudo isso, nunca cessava de não avançar ou, pelo menos, de avançar somente com uma lentidão convulsiva, obstinada, uma energia desvairada e fixa, intoxicada. Nesses momentos, encerrado em minha cela metálica, eu estava morrendo e sonhava com carnificinas e orgias. Sem espaço, não pode haver nem inocência nem liberdade! A prisão, para quem não pode respirar, significa morte ou loucura; que fazer, senão matar e possuir?

 Atualmente, em vez disso, sinto-me repleto de ventos, todas as nossas asas estalam no ar azul, vou gritar de velocidade, atiramos ao mar nossos sextantes e nossas bússolas. Sob o vento imperioso, nossas velas são de ferro. A costa deriva a toda velocidade diante de nossos olhos, florestas de palmeiras imperiais, cujos pés estão de molho nas lagoas cor-de-esmeralda, baía tranquila, cheia de velas vermelhas, areias de luas. Enormes arranhacéus surgem, já rachados, sob a pujança da floresta virgem que começa no pátio de serviço; aqui e ali um ipê amarelo ou uma árvore com galhos roxos arrebentam uma janela, o Rio desmorona, finalmente, por trás de nós e a vegetação recobrirá suas ruínas novas, onde os macacos da Tijuca estourarão de riso. 

Ainda mais depressa, ao longo das grandes praias onde as ondas se derramam em feixes de areia, mais depressa ainda, os carneiros do Uruguai entram no mar, tingindo-o de amarelo no mesmo instante. Depois, sobre o litoral argentino, grandes piras grosseiras, a intervalos regulares, levantam em direção ao céu metades de bois que vão grelhando lentamente. 

De noite, os gelos da Terra do Fogo batem no casco de nosso navio durante horas, o barco diminui a marcha de forma quase imperceptível e faz meia volta. 

Pela manhã, o único vagalhão do Pacífico, cuja fria barrela verde e branca borbulha sobre os milhares de quilômetros da costa chilena, ergue-nos vagarosamente, ameaçando encalhar-nos. O leme o evita, dobra os Kerguelen. 

Na tarde adocicada, as primeiras embarcações malaias avançam em direção a nós. “Ao mar! Ao mar!” gritavam os garotos maravilhosos de um livro de minha infância. 

Esqueci tudo sobre o livro, exceto esse grito. “Ao mar!” e, pelo Oceano Indico até o baluarte do Mar Vermelho, de onde se ouvem, a estalarem uma a uma, as pedras do deserto, que gelam depois de terem ardido, retornamos ao mar antigo e, ali, os gritos se calam. 

Certa manhã, afinal, arribamos a uma baía plena de estranho silêncio, balizada por velas fixas. No céu, apenas algumas aves marinhas disputam entre si pedaços de palha. A nado chegamos a uma praia deserta; passamos o dia inteiro entrando na água, para depois nos secar estendidos sobre a areia. Ao entardecer, sob o céu que se torna verde e recua, o mar, embora já tão calmo, aquieta-se ainda mais. Vagas curtas sopram uma barrela de espuma sobre a praia morna. As aves marinhas desapareceram. Resta apenas um espaço, oferecido à viagem imóvel. 

Certas noites, cuja doçura se prolonga, sim, é verdade que nos ajuda a morrer a certeza de que elas voltarão depois de nós sobre a terra e o mar. Grande mar, sempre lavrado, sempre virgem, minha religião com a noite! O mar nos lava e nos sacia em seus sulcos estéreis, liberta-nos e nos mantém de pé. Em cada onda, uma promessa, sempre a mesma. Que diz a onda? Se eu tivesse de morrer rodeado de montanhas frias, ignorado pelo mundo, renegado pelos meus, já completamente sem forças, enfim, o mar, no derradeiro instante, encheria minha cela, viria sustentar-me acima de mim mesmo e ajudar-me a morrer sem ódio. 

À meia-noite, sozinho na praia. De novo esperar, e partirei. O próprio céu está parado, com todas as suas estrelas, como esses barcos cobertos de luzes que, a essa mesma hora, no mundo inteiro, iluminam as águas sombrias dos portos. 

O espaço e o silêncio pesam como um fardo único sobre o coração. Um amor arrebatado, uma grande obra, um ato decisivo, um pensamento que transfigura, produzem em certos momentos a mesma intolerável ansiedade, duplicada por um encanto irresistível. Deliciosa angústia de ser, proximidade singular de um perigo cujo nome não conhecemos — viver, então, será expor-se à sua perda? Uma vez mais, sem demora, exponhamo-nos à nossa própria perda. 

Tenho tido sempre a impressão de viver em alto-mar, ameaçado, no cerne de uma felicidade digna de um rei.

Nenhum comentário:

Postar um comentário