sábado, 19 de junho de 2021

Praça de Londres. Lídia Jorge.



  Tudo isto aconteceu agora. Caminhava eu ao longo do passeio, vinda do escritório do advogado. Pendurados dos meus braços trazia dois sacos repletos de dossiers com as provas da minha inocência. As pedras da calçada eram o prolongamento da mesa onde tinham estado as provas, bem como os códigos civis e penais, abertos nos artigos referentes aos meus presumíveis crimes. Vinha a pensar nos crimes que assim se cometem e nas leis com suas teias, ovos e aranhas, que os punem. Vinha a pensar nisso tudo, e na forma como o advogado tentava imaginar os meus crimes vistos do lado de lá, e a procurar deduzir os nomes para as minhas faltas, os meus roubos, as minhas trafulhas, as minhas ordens de liquidação deliberadas para ficar rica e opulenta, vinha eu a pensar nisso tudo, nesses gestos que já nem sei se não serão de facto mesmo meus, de tanto me serem atribuídos, sim, vinha eu concentrada, a olhar para a biqueira dos sapatos, mês de novembro fora, noite já caída, crepúsculo iluminado pelas lâmpadas, mês ainda sem chuva nem frio, já com enfeites brilhantes por aqui e por ali, mas ainda longe daquele momento em que os sinos das lojas começam a cantar desesperadamente Jingle bells, Jingle bells, em vez de cantarem, sem subterfúgio, Compra aqui, Compra aqui, pois vinha eu. Como ia a dizer, vinha eu mergulhada nesse princípio de noite, Praça de Londres adiante, a pensar nos meus eventuais crimes de furto, burlice e danos a outrem, meus gestos manhosos e danosos, vinha a pensar unicamente nisso, quando de súbito levantei os olhos, naquela hora em que a rua estava quase deserta, e eu vi uma coisa. Sim, é verdade, eu vi uma nítida coisa. 


     Pois que coisa?


Aparentemente era só um homem de cabelo cinzento, segurando nos braços uma criança de tenra idade, caminhando pelo passeio lateral da Praça de Londres, rua abaixo, na direção da Mexicana. Mas se fosse apenas isso, homem caminhando com criança, isso não seria uma coisa. A coisa, seu núcleo duro e assombroso, inexplicável e indistinguível, residia no facto, dizia eu, de o homem de cabelo cinzento, próximo dos sessenta, não muito mais dos sessenta, alto, encorpado, camisa cor de vinho, sapatos de ténis, ventre raso e passada rápida, trazer uma criança de tenra idade nos braços e beijá-la sofregamente, à medida que descia pelo passeio lateral da Praça de Londres. Aí residia a coisa. Assim, a criança de tenra idade, coberta de roupas brancas felpudas, carapuço da mesma cor, deitada nos braços estendidos do homem, não deveria ter mais de dois anos e era beijada. E a criança, em resposta, revolvendo-se de alegria, nos braços do homem, soltava curtas gargalhadas. Homem quase velho beijando a criança, e a criança respondendo em gargalhadas breves e dobradas, a deslocarem-se ambos pela sombra fugidia das árvores, pelos lugares iluminados pelas luzes cruzadas das lâmpadas altas, pela calçada quadriculada, miúda, por onde passavam. Criança eufórica, nos braços do homem quase velho, elástico, plástico, andar silencioso, solas de sapatos de borracha, pavimento afora, braços estendidos, a caminhar na direção contrária àquela por onde eu ia avançando com o saco dos papéis da prova contra meus presumíveis crimes, ali, como por encanto, separando o mundo dos crimes do mundo das outras realidades, ali vinha uma coisa. Caminhando, a coisa. Pus os sacos no chão para ver o homem quase velho com uma criança de tenra idade, os dois a aproximarem-se, cada vez mais a aproximarem-se. Cada vez mais. 


     Então eu pousei os sacos. 


     E agora mesmo estão eles a passar por mim. Sim, ambos a passarem por mim. A coisa inteira e indistinguível a passar. Os beijos de um e as gargalhadas do outro a passarem perto, a dois metros de distância, a coisa íntegra e intocável a deslocar-se como se deslocava quando ainda vinha longe do meu corpo e eu já estava parada. Meu Deus. Parada a olhar agora para as costas do homem grisalho, cabelo farfalhudo, cinzento quase branco, camisa vermelha cor de vinho, bago de romã, coração de boi, a descer rua abaixo, e as roupas brancas da criança de súbito encobertas pelos seus ombros. Enquanto uma mulher tem pousados no chão os seus dois pesados sacos, contendo os dossiers relacionados com os putativos crimes que comete desde há anos, desde que publica e desconfiam dela, imaginando-a com uma unha avara e ladra que dizem estar dentro dela, disfarçada por fora por um anel normal que até é de oiro, uma mulher dessas ainda ali, tão perto do escritório do seu advogado, não pode voltar para trás, não pode perseguir rua fora um homem grisalho que vai beijando uma criança. Não, não pode. 


     Pois não pode, não. 


     A verdade, porém, é que o homem e a criança correm o risco de se afastarem para sempre, de desaparecerem para nunca mais, e uma pessoa, embaraçada com aquela bagagem, arrisca-se a ficar cega por uma imagem tão fugaz, tão fátua, que nunca mais verá outra vez na vida, e assim, o melhor é tentar prolongá-la tanto quanto puder, ou tanto quanto for possível, e por isso, o que deve é pegar nos sacos e tentar alcançar o homem quase velho com a criança pequena, embora não deva em caso algum alcançá-los mesmo, apenas ficar por perto, tentar ainda uma vez mais só que seja vislumbrar o homem quase velho com a criança ao peito, revê-lo de frente, naquele momento em que o homem, concentrado sobre o corpo reboludo da criança, lhe poisa os beijos no babo, e eu a ver nitidamente os olhos dele descidos sobre aquele bocado de gente envolvido em roupas e em felpas. Repito, uma vez mais só que seja, e por isso é preciso correr com urgência atrás daquilo, daquela coisa inexplicável que vai caminhando lesta, já para além da Mexicana, e eu aqui ainda tão longe, tão à pressa e ainda tão distante, os meus sapatos tique tique na calçada, e a boá, a minha boá preta a querer saltar do pescoço e a escorregar para o chão. A boá a ser retirada do chão e a ser levada ao pescoço novamente, enquanto o homem se afasta. É preciso mesmo correr atrás dele se ainda o quiser ver, pelo menos mais uma vez de frente, a ele e à criança, e os beijos sôfregos, e as sombras das árvores e as luzes das lâmpadas cruzadas sobre eles. Uma só vez mais que seja. Força. Os sacos são pesados como chumbo, são os papéis e os presumíveis crimes, e com tudo isso a pender dos braços, é preciso mesmo correr rua abaixo. Por favor, esperem um momento, um momento só que seja. 


     E no entanto, não há momento. 


     Pois agora o homem já parou diante duma porta, a porta pelos vistos já se abriu. Ele já entrou. Tenho a certeza. Então nunca mais será. A coisa, nunca mais. De facto, estou aquém do vidro da porta e a coisa está muito além do vidro, embora para surpresa minha uma parte do objeto inominável se tenha transformado enquanto o homem subia os três degraus de mármore, pois agora o homem já está de costas para a porta diante do elevador e a criança, levantada ao ombro do homem, a criança ela mesma é quem olha para a porta. Vejo-a. A criança está virada de face para mim. Para o vidro da porta. Ali está, o rosto redondo e rosado, os olhos claros como os de um bebé sueco, a touca farfalhuda branca, e um atilho que se desprende da touca cai nas costas cor de vinho do homem. Isto é, a criança é menina. Tenho a certeza. 


     O homem leva ao colo uma menina. 


     Agora os dois braços da menina estão abertos no ar como os de uma boneca de pano que oscila. Entre felpas. Estão os dois diante do elevador que desce, ele amparando o corpo da menina com uma das mãos, com a outra abrindo a grade do elevador, e ambos, de costas, desaparecendo na sombra quadriculada do elevador que sobe. Ambos sobem, para sempre, sobem. Meus sacos com meus crimes, ou não crimes, logo se verá se serão ou não, encontram-se no portal. Só que eu não posso ficar assim. É injusto ficar assim. Apoio o indicador no botão que diz POR de porteira e primo com determinação. Estou a chamar a porteira. Senhora porteira, eu vi uma coisa. Quero saber que coisa é esta que subiu por este prédio acima. Ou mais precisamente, o que eu quero mesmo é ver uma outra vez a mesma coisa. Sim, talvez no último andar. Aqui estou eu decidida, a premir o botão, a premir com toda a força do meu punho. E resulta. Pressionado deste modo o botão, já aí está a resposta do interior da casa. 


     “Quem é? Quem é que fala?”


Primo o botão de novo. Sim, sou eu, senhora porteira, tenho o dedo apoiado no botão porque estou com muita urgência. Eu sou apenas uma pessoa que acaba de enxergar um homem já grisalho a beijar sofregamente uma criança. Mas será que posso apresentar-me assim, pelo intercomunicador da casa? 


     “Diga o que quer…” – Primo o botão de novo. 


     “Mas o que é que quer?” 


     Senhora porteira, pois o que eu queria mesmo era saber se uma pessoa que desapareceu no elevador, um homem com uma criança, se ainda aí estão para eu os ver mais uma vez a rirem e a beijarem-se. Mais precisamente, um cavalheiro a beijar uma criança, se faz favor. 


     “Mas quem está aí, quem é que fala? E o que é que deseja?…” 


     Senhora porteira, é verdade, sou testemunha, ia eu a caminhar pela Praça de Londres afora, e cruzei-me com ele e com a criança, e também com a sombra e a luz que incidiam sobre eles, ali mesmo, um pouco acima da Mexicana. Está a ver? Por essa razão, aqui está de novo o meu dedo no botão. Desculpe. E a porteira, de súbito, a gritar do lado de lá – “Um momentóoooo…” Retiro o dedo. Pois claro, a porteira exige o que lhe é devido. É razoável, toquei de mais sem dizer nada, e a porteira deste prédio, onde a coisa desapareceu, pede um momento para refletir. Efetivamente, não é todos os dias, ao cair da noite, que se toca a uma porta sem pronunciar palavras. E até talvez ela venha espreitar do alto dos três degraus de escada. E talvez ela olhe para mim, que estou a olhar pelo vidro, e entenda logo tudo. Há coincidências magníficas nesta vida. Talvez ela perceba na minha cara, sem eu precisar de dizer quem sou nem ao que estou, pois aquilo que eu pretendo é qualquer coisa relacionada com o habitante do quarto andar, suponho, o que tem uma criança que o habitante passeia pela rua, nove horas duma noite de novembro, beijando-lhe o peito e o babo. Talvez. Desculpe. E na verdade ela aí vem, o meu coração diminui à medida que a porta lateral da porteira gira e se abre. Abre-se acima dos degraus de mármore, e POR de porteira ali está, a lamber-se do seu jantar. Mas, infelizmente, é mulher indignada. Indignada com razão. Por causa da coisa, aquela mulher está a olhar para mim, interrogadora, ameaçadora, interpondo-se entre mim e a coisa. 


     Senhora porteira, por favor. 


     Pois que favor? 


     Agora toda ela já avançou, está diante do elevador a olhar para a porta. Tem madeixas amarelas na cabeça e calça bota alta. Ainda remói, ainda se lambe, com aquela comida na boca não deveria perguntar – Quem é? O que é que deseja? – Mas pergunta. E eu. Senhora porteira, eu vi um homem a beijar sofregamente uma criança, e ambos subiram no elevador. Não, não posso dizer. Se eu disser, talvez ela se lamba de verdade e me responda – Você viu um homem a beijar uma criança? Se viu um homem a beijar na rua uma criança é porque não era dele. Se fosse dele não precisava de a beijar na rua. Não tem nada que saber. Essa criança que você viu não lhe pertence… Ou pior do que isso, agora que a porteira de POR ameaça mesmo aproximar-se, encarrapitada nas suas botas altas, descendo de lado, como as princesas das revistas, para se encarar com a criatura que prime o botão da campainha, já a ouço dizer – Vê-se mesmo que você não é daqui. Por aqui, toda a gente sabe de quem se trata. Sim, é dele, mas criança beijada no meio da rua quer dizer filhote da terceira piara, com certeza. Conheço-o muito bem… Os filhos da primeira mulher não beijou ele, não… Tão-pouco os da segunda. Agora os da terceira, já ele sabe beijar… Filho duma moça da idade das netas dele, você entende? Mas afinal quem é você?… – E ela a descer entre os vasos de loiça, cada par em seu degrau, com begónias, filodendros, pantálias. A descer de lado. Desculpe. E se acaso a porteira atinge a porta e a abre, e diz isso mesmo, exatamente o que eu estou pensando? As mesmas sentenças, as mesmas palavras? 


     Rápido, muito rápido. É preciso, eu preciso. 


     Sobre o portal, estão os dois sacos de plástico contendo os dossiers pesados como chumbo. São cartas, recibos, contratos, declarações, ordenações, pedidos, cópias de cheques ainda nítidas como espelhos, outras já amareladas como lixo, lixo onde o meu advogado espera encontrar uma pérola a brilhar que me salve e o causídico contrário, pelo seu lado, espera descobrir o gume aguçado de minhas faltas graves contra outrem, já o disse. Eu a levantar tudo isso do chão, a arrastar tudo isso como uma clocharde fugidia, uma clocharde rápida. Muito rápida. Upa! Depressa, antes que a mulher chegue rente ao vidro, vou andando. Meu Deus. Eu vi esta noite uma coisa, achei-a e não a quero perder. Aqui vou eu, apressada, rua acima, com medo de perder a coisa. Ainda olho para trás. Lá está POR de porteira a olhar as minhas costas, a decifrar o lado de trás da minha roupa, meu calçado, minha nuca, minha boá, lá está ela. Não, não. Antes assim, meu Deus. Eu vi uma vez a coisa muito nítida, e a coisa sem olhar olhou para mim. Por que razão desejo eu ver duas vezes? Uma só vez não chega, não? Aqui estou eu de novo a praticar o vício da sofreguidão, a querer tudo em vez de alguma coisa. Se os meus acusadores sabem, como não hão-de proclamar o meu suposto vício de açambarcamento e locupletação? Claro que me chega o que Deus me deu. Olho de novo para trás, a mulher ainda está na porta, ainda me espia, e eu ainda espio o prédio onde a coisa se meteu para sempre. Espiam-se as espias. Vendo bem, fazendo render o sestércio que o cair desta noite me ofereceu, eu devo mas é seguir em frente, sempre a direito, sempre a direito, agora que a Praça de Londres possui não só a Pastelaria Mexicana, nem só a Igreja de São João de Deus, nem só o Ministério do Trabalho e do Desemprego, não só a loja country da Laura Ashley ou a estátua do Junqueiro. Devo seguir em frente, agora, que além de tudo isso, existe no meio da praça aquela coisa que ninguém no mundo pode macular. Uma coisa indestrutível. Formidável. Eterna, para a mulher dos sacos e seus eventuais crimes, enquanto ela, criminosa putativa, estiver viva. Existe aquele homem beijando a barriga da criança, sem explicação de permeio. Sem origem nem destino. Grande atraso, longa noite, rente às montras. Pesados sacos nos meus braços. Não faz mal. 

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