sábado, 26 de junho de 2021

A temporada do divórcio. John Cheever

                                       
  
                                                  
Minha mulher tem cabelos castanhos, olhos pretos e um temperamento bondoso. Por causa do temperamento bondoso, às vezes acho que ela mima as crianças. Não consegue lhes negar nada. Sempre levam a melhor em cima dela. Ethel e eu estamos casados há dez anos. Nós dois viemos de Morristown, New Jersey, e não consigo nem lembrar como nos conhecemos. Nosso casamento sempre me pareceu feliz e desimpedido. Moramos num prédio sem elevador no East Fifties. Nosso filho, Carl, de seis anos, frequenta um bom colégio particular, e nossa filha, de quatro, só começa a estudar ano que vem. Sempre botamos defeito na educação que recebemos, mas parece que estamos começando a criar nossos filhos da mesma maneira que fomos criados e, quando chegar a hora, creio que eles estudarão no mesmo colégio e nas mesmas faculdades em que nós estudamos.


Ethel se formou numa faculdade para mulheres no leste e depois esteve um ano na universidade de Grenoble. Trabalhou durante um ano em Nova York depois de retornar da França e então nos casamos. Uma vez ela pendurou o diploma em cima da pia da cozinha, mas foi uma piada que teve vida curta e não sei onde aquele diploma foi parar. Ethel é animada e versátil, além de bondosa, e nós dois pertencemos àquela enorme camada da classe média que se distingue pela capacidade de relembrar os bons tempos. A perda de dinheiro é tão presente em nossas vidas que às vezes me faz pensar nos expatriados, num grupo que se adaptou com tenacidade a um solo estrangeiro mas que se recorda, de tempos em tempos, das falésias de seu litoral nativo. Como nossas vidas são delimitadas pelo meu parco salário, a superfície da vida de Ethel é fácil de descrever.


Ela levanta às sete e liga o rádio. Depois de se vestir, acorda as crianças e prepara o café da manhã. Nosso filho precisa ser acompanhado até o ônibus da escola às oito horas. Quando Ethel retorna desse trajeto, precisa fazer as tranças nos cabelos de Carol. Saio de casa às oito e meia, mas sei que cada movimento de Ethel pelo restante do dia será pautado pelo trabalho doméstico, pela cozinha, pelas compras e pelas necessidades das crianças. Sei que às terças e quintas ela vai ao supermercado entre as onze e o meio-dia, que em todas as tardes de tempo bom ela senta no mesmo banco do parquinho entre as três e as cinco, que limpa a casa às segundas, quartas e sextas e que lustra a prataria quando chove. Quando chego em casa às seis, em geral ela está lavando as verduras ou preparando qualquer outra coisa para o jantar. Então, quando as crianças já comeram e tomaram banho, quando o jantar está pronto, quando a mesa está com os pratos em ordem e a comida posta ela fica parada no meio da sala como se tivesse perdido ou esquecido alguma coisa, e esse instante de reflexão é tão profundo que ela não me escuta se eu falar com ela, tampouco escuta as crianças se a chamarem. E de repente termina. Ela acende as quatro velas brancas em seus castiçais de prata e sentamos para comer um picadinho de carne enlatada ou qualquer outra refeição modesta.


Saímos uma ou duas vezes por semana e buscamos entretenimento em média uma vez por mês. Por motivos práticos, quase todo mundo que conhecemos mora no bairro. É comum virarmos a esquina para comparecer às festas do generoso casal Newsome. As festas dos Newsome são grandes e confusas e permitem que os impulsos arbitrários da amizade ajam com liberdade.

Numa dessas noites na casa dos Newsome, nos aproximamos, por razões que nunca compreendi, de um casal chamado dr. e sra. Trencher. Acho que foi a sra. Trencher quem tomou a iniciativa, e depois de nosso primeiro encontro ela ligou para Ethel três ou quatro vezes. Fomos jantar na casa deles e eles vieram à nossa casa, e às vezes, à noite, quando o dr. Trencher estava passeando com seu velho dachshund, ele aparecia para nos fazer uma visitinha. Dava a impressão de ser uma presença agradável. Ouvi outros médicos dizerem que ele é um bom profissional. Os Trencher têm cerca de trinta anos; ele, pelo menos, tem. Ela é mais velha.


Eu diria que a sra. Trencher é uma mulher insípida, mas sua insipidez é difícil de especificar. Ela é baixa, tem uma boa postura e traços genéricos, e suspeito que a impressão de insipidez surge de uma modéstia interior, uma espécie de visão desnecessariamente estreita das suas capacidades. O dr. Trencher não fuma nem bebe, e não sei se há alguma relação com isso, mas a cor de seu rosto delgado é muito viva — suas bochechas são rosadas e seus olhos azuis são límpidos e intensos. Tem o otimismo singular de um médico bem de vida — a sensação de que a morte é uma infelicidade aleatória e de que o mundo físico não passa de um palco para a conquista. Na mesma medida em que a esposa parece insípida, ele parece jovem.

Os Trencher moram numa casa confortável e despretensiosa do nosso bairro. A casa é antiga; as salas de estar são amplas, os corredores são sombrios e os Trencher parecem não gerar calor humano suficiente para animar o local, de modo que se guarda deles, no fim da noite, a imagem de muitos quartos vazios. A sra. Trencher tem um apego óbvio aos seus pertences — às suas roupas, às joias e aos enfeites que comprou para a casa — e a Fräulein, o velho dachshund. Alimenta Fräulein com os restos da mesa, discretamente, como se tivesse sido proibida de fazê-lo, e depois do jantar Fräulein se deita ao lado dela no sofá. Com a luz verde do televisor a brincar em seu rosto abatido enquanto ela acaricia Fräulein com as mãos finas, a sra. Trencher me deu a impressão de ser, numa dessas noites, uma alma caridosa e sofredora.


A sra. Trencher começou a ligar para Ethel de manhã a fim de bater papo ou de convidá-la para um almoço ou uma matinê. Ethel não pode sair durante o dia e alega não gostar de longas conversas telefônicas. Reclamou que a sra. Trencher era uma fofoqueira incansável e agressiva. Até que, certa tarde, o dr. Trencher apareceu no parquinho onde Ethel leva nossos dois filhos para brincar. Ele estava passando a pé por ali, a avistou e sentou ao seu lado até a hora de ela trazer as crianças de volta para casa. Apareceu de novo uns dias depois, e Ethel me contou que a partir daí seus encontros com ela no parquinho se tornaram regulares. Ethel achou que talvez ele não tivesse muitos pacientes e, como ficava sem nada para fazer, aproveitava a chance de conversar com qualquer pessoa. Uma noite, quando estávamos lavando a ouça, Ethel pensou bem no assunto e disse que o comportamento de Trencher com ela parecia um tanto estranho. “Ele fica me encarando”, ela disse. “Suspira e fica me encarando.” Sei qual é a aparência da minha mulher no parquinho. Ela usa um velho casaco de tweed, galochas e luvas do exército, e vai com um lenço amarrado sob o queixo. O parquinho é um terreno cercado e calçado que fica entre uma vizinhança pobre e o rio. Era difícil levar a sério a imagem daquele médico bem-vestido e de bochechas rosadas se derretendo por Ethel num cenário daqueles. Depois disso ela ficou vários dias sem falar nele e achei que as visitas tinham cessado. O aniversário de Ethel caiu no fim do mês e não lembrei da data, mas, quando cheguei em casa aquela noite, havia rosas por toda a sala de estar. Um presente de aniversário de Trencher, ela me disse. Fiquei decepcionado comigo mesmo por ter esquecido o aniversário, e as rosas de Trencher me enfureceram. Perguntei se ela o vira recentemente.


“Oh, sim”, ela disse, “continua aparecendo no parquinho quase todas as tardes. Não te contei, né? Ele se declarou. Ele me ama. Não pode viver sem mim. Ele andaria sobre brasas pra poder escutar a melodia da minha voz.” Riu. “Foi o que ele disse.”

“Quando foi que ele disse isso?”

“No parquinho. E no caminho pra casa. Ontem.”

“Há quanto tempo ele sente isso?”

“Essa é a parte engraçada”, ela disse. “Ele sabia mesmo antes de me conhecer na casa dos Newsome aquela noite. Me viu esperando um ônibus umas três semanas antes daquele dia. Apenas me viu e disse que então soube, no mesmo minuto. Claro, ele é maluco.”

Eu estava cansado aquela noite, preocupado com impostos e dívidas, e só pude pensar na declaração de Trencher como um erro cômico. Ele me parecia um homem prisioneiro de compromissos financeiros e emocionais, como todos os homens que conheço, e tão livre para se apaixonar por uma mulher estranha que viu na rua quanto para atravessar a Guiana Francesa a pé ou recomeçar a vida em Chicago com um nome fictício. Sua declaração, a cena do parquinho, tudo isso me lembrava um daqueles encontros ao acaso que fazem parte do cotidiano de toda cidade grande. Um cego pede ajuda para atravessar a rua e, quando você está prestes a se despedir, ele agarra o seu braço e retribui o favor com um relato emotivo sobre a crueldade e a ingratidão dos filhos; ou o ascensorista que está levando você para o andar de uma festa se vira de repente e diz que o neto tem paralisia infantil. A cidade é repleta de revelações acidentais, pedidos abafados de ajuda e estranhos dispostos a contar tudo ao primeiro sinal de empatia, e Trencher me parecia ser como o cego ou o ascensorista. Sua declaração de amor pesava tanto em nossas vidas quanto interrupções desse tipo.

As conversas telefônicas da sra. Trencher tinham cessado e nós paramos de ir à casa dos Trencher, mas às vezes eu o avistava pela manhã no ônibus, quando me atrasava para ir trabalhar. Parecia compreensivelmente constrangido ao me ver, mas o ônibus estava sempre lotado àquela hora do dia e não era preciso esforço para que nos evitássemos. Além disso, naquela mesma época cometi um erro nos negócios e causei uma perda de vários milhares de dólares para a empresa em que trabalho. Não havia muita chance de que eu perdesse o emprego, mas a possibilidade nunca me saía totalmente da cabeça, e diante disso, e da contínua urgência em ganhar mais dinheiro, a lembrança do excêntrico médico acabou enterrada. Passaram três semanas sem que Ethel tocasse no nome dele, até que uma noite, quando eu estava lendo, percebi que Ethel estava diante da janela, olhando a rua.


“Ele está mesmo ali.”

Quem?”

“Trencher. Venha aqui ver.”
Fui até a janela. Havia apenas três pessoas na calçada do outro lado da rua. Estava escuro e teria sido difícil reconhecer alguém, mas uma das pessoas estava caminhando em direção à esquina com um dachshund na coleira, e poderia muito bem ser Trencher.

“Bom, e daí?”, eu disse. “Ele só está levando o cachorro pra passear.”

“Mas ele não estava passeando com o cachorro quando vim olhar pela janela. Estava ali parado, olhando pro nosso prédio. É isso que ele diz que faz. Ele vem aqui e fica olhando as nossas luzes acesas.”


“Quando ele disse isso?”

“No parquinho.”

“Achei que você estava indo em outro parquinho.”

“Oh, eu estou, estou, sim, mas ele me seguiu. Ele é louco, querido. Sei que é louco, mas tenho pena dele. Diz que passa uma noite após a outra olhando as nossas janelas. Diz que me vê em toda parte — minha nuca, minhas sobrancelhas —, diz que ouve a minha voz. Diz que nunca abriu mão de nada na vida e que não vai abrir mão disso. Tenho pena dele, querido. Não consigo evitar de ter pena dele.”


Pela primeira vez a situação me pareceu séria, pois soube que, movido por seu desamparo, ele poderia acabar tocando num sentimento imensurável e volúvel que Ethel tem em comum com certas mulheres — a incapacidade de resistir a qualquer pedido de ajuda, de rechaçar qualquer voz digna de pena. Não é um sentimento racional, e teria sido quase preferível que ela sentisse desejo em vez de pena dele. Aquela noite, quando estávamos nos preparando para deitar, o telefone tocou e ninguém respondeu quando eu atendi dizendo alô. Quinze minutos depois, o telefone tocou novamente e, como o silêncio se repetiu, comecei a berrar e a xingar Trencher, mas ele não respondeu — não houve sequer o clique da ligação sendo encerrada — e fiquei me sentindo um idiota. Como me senti um idiota, acusei Ethel de ter lhe dado motivos, de tê-lo incentivado, mas as acusações não a afetaram e, quando terminei, estava me sentindo pior ainda, pois sabia que ela era inocente e que precisava sair para fazer compras e soltar um pouco as crianças, e que não havia força de lei que pudesse impedir Trencher de permanecer lá à espera dela ou de ficar observando nossas luzes.


Fomos à casa dos Newsome uma noite da semana seguinte e, quando estávamos tirando os casacos, eu escutei a voz de Trencher. Ele foi embora poucos minutos após nossa chegada, mas sua atitude — o olhar triste que lançou a Ethel, o modo como se esquivou de mim, a maneira lamentável como recusou o pedido dos Newsome para que ficassem mais e os galanteios que dedicou à coitada da esposa — me enfureceu. Então reparei em Ethel e vi que estava ruborizada, os olhos brilhando, e que, enquanto elogiava os sapatos da sra. Newsome, seus pensamentos estavam em outro lugar. Ao chegarmos em casa, a babá nos disse, contrariada, que nenhuma das crianças havia dormido. Ethel tirou a temperatura delas. Carol estava bem, mas o menino tinha uma febre de quarenta graus. Nenhum de nós conseguiu dormir muito aquela noite, e de manhã Ethel me telefonou no escritório para dizer que Carl estava com bronquite. Três dias depois, a irmã adoeceu da mesma coisa.


Nas duas semanas seguintes, as crianças doentes ocuparam a maior parte do nosso tempo. Precisavam tomar remédio às onze da noite e de novo às três da manhã, e isso nos fez perder um bom período de sono. Era impossível arejar e limpar a casa e, quando eu chegava do trabalho, depois de vir caminhando no frio desde o ponto de ônibus, encontrava um fedor de xarope contra tosse, tabaco, restos de fruta e leitos enfermos. Havia cobertores, travesseiros, cinzeiros e vidros de remédio por todo lado. Fizemos uma divisão razoável do combate à doença e nos revezávamos para acordar no meio da noite, mas eu caía no sono com frequência na minha mesa ao longo do dia e Ethel apagava numa poltrona da sala após o jantar. O cansaço parece diferir para adultos e crianças somente no sentido de que os adultos o reconhecem, e com isso não são derrubados por algo indefinível; por mais definido que ele fosse, porém, o fato era que nos derrubava e, quando ficávamos cansados, acabávamos nos tornando irracionais, briguentos e suscetíveis a depressões transcendentes. Uma noite, quando o pior da doença tinha passado, cheguei em casa e encontrei rosas na sala. Ethel disse que haviam sido trazidas por Trencher. Ela não o deixara entrar. Tinha batido a porta na cara dele. Peguei as rosas e joguei no lixo. Não brigamos. As crianças foram dormir às nove, e pouco depois das nove eu fui me deitar. Mais tarde, algo me despertou.


Havia uma luz acesa no corredor. Levantei. O quarto das crianças e a sala estavam às escuras. Encontrei Ethel na cozinha, sentada à mesa, bebendo café.


“Preparei um café fresquinho”, ela disse. “Carol começou a tossir forte de novo, fiz uma nebulização. Agora os dois estão dormindo.”


“Há quanto tempo está acordada?”


“Desde meia-noite e meia. Que horas são?”


“Duas.”


Servi-me de uma xícara de café e sentei. Ela levantou da mesa, enxaguou a xícara e se olhou no espelho pendurado em cima da pia. Era uma noite de ventania. Um cachorro estava uivando num dos apartamentos abaixo do nosso e uma antena de rádio solta ficava raspando na janela da cozinha.


“Parece um galho”, ela disse.


Na luz fraca da cozinha, apropriada para descascar batatas e lavar louça, ela parecia muito cansada.


“Será que as crianças já vão poder sair amanhã?”


“Oh, espero que sim”, ela disse. “Já se deu conta de que faz duas semanas que não consigo sair deste apartamento?” Seu comentário foi áspero e isso me pegou desprevenido.


“Não chegam a ser duas semanas.”


“Foram mais que duas semanas”, ela disse.


“Bem, vamos calcular”, falei. “As crianças adoeceram numa noite de sábado. Era dia 4. Hoje é dia…”


“Pare, pare”, ela disse. “Eu sei há quanto tempo foi. Faz duas semanas que não calço os sapatos.”


“Você fala como se fosse uma coisa horrível.”


“E é. Não vesti algo decente nem arrumei o cabelo esse tempo todo.”


“Podia ser pior.”


“Os cozinheiros da minha mãe tinham uma vida melhor.”


“Duvido.”


“Os cozinheiros da minha mãe tinham uma vida melhor”, ela repetiu alto.


“Você vai acordar as crianças.”


“Os cozinheiros da minha mãe tinham uma vida melhor. Dormiam em quartos agradáveis. Ninguém podia entrar na cozinha sem a permissão deles.” Ela despejou a borra do café na lata de lixo e começou a lavar o bule.


“Quanto tempo Trencher ficou aqui hoje à tarde?”


“Um minuto. Já disse.”


“Não acredito. Ele entrou na casa.”


“Não entrou. Não deixei ele entrar. Não deixei ele entrar porque eu estava com uma aparência horrorosa. Não queria desagradar ele.”


“Por que não?”


“Não sei. Ele pode ser um idiota. Pode ser maluco, mas me senti maravilhosa com as coisas que ele me disse, ele fez eu me sentir maravilhosa.”


Você quer ir embora?”


“Ir embora? Ir embora pra onde?” Ela tirou o dinheiro da carteira que fica na cozinha para pagar as compras e contou dois dólares e trinta e cinco centavos. “Ossining? Montclair?”


“Com Trencher, quero dizer.”


“Não sei, não sei”, ela disse, “mas quem poderia dizer que não devo? Que mal faria? Que bem faria? Vai saber. Amo as crianças, mas isso não é o bastante, está longe de ser o bastante. Seria incapaz de machucar elas, mas será que eu as machucaria tanto assim se abandonasse você? Será que o divórcio é mesmo algo tão medonho? E, das coisas que mantêm um casamento, quantas são boas?” Sentou-se à mesa.


“Em Grenoble”, ela disse, “escrevi um longo estudo sobre Charles Stuart em francês. Um professor da universidade de Chicago me escreveu uma carta. Hoje eu não conseguiria nem ler um jornal em francês sem a ajuda de um dicionário, e não tenho tempo de acompanhar jornal nenhum, e tenho vergonha da minha incompetência e vergonha da minha aparência. Oh, acho que te amo, e amo as crianças, mas eu me amo, amo a minha vida, ela tem valor e tem futuro para mim, e as rosas de Trencher me fazem sentir que estou perdendo isso, que estou perdendo o respeito por mim mesma. Sabe do que estou falando, entende do que estou falando?”


“Ele é louco”, eu disse.


“Sabe do que estou falando? Entende do que estou falando?”


“Não”, falei. “Não.”


Carl acordou e começou a chamar a mãe. Mandei Ethel voltar para a cama. Apaguei a luz da cozinha e entrei no quarto das crianças.



As crianças estavam se sentindo melhor no dia seguinte e, já que era domingo, eu as levei para um passeio. O sol da tarde estava brando e puro e somente as sombras matizadas me faziam lembrar que estávamos no meio do inverno, que os navios de cruzeiro estavam voltando para casa e que dali a uma semana os narcisos estariam custando vinte e cinco centavos o buquê. Caminhando pela Lexington Avenue, ouvimos no céu um som grave e repetitivo como o de um órgão de igreja, e junto com todos os outros na calçada olhamos para o alto com piedade e arrebatamento, como uma congregação devota e estúpida, e vimos uma formação de bombardeiros pesados avançando em direção ao mar. O dia foi ficando cada vez mais frio, límpido e plácido, e em meio a essa placidez a fumaça das chaminés ao longo do East River parecia articular, com a clareza do avião da Pepsi-Cola, palavras e frases inteiras. Sossego. Desastre. Era difícil discerni-las. Parecia ser a vazante do ano — um dia mortal para gastrites, sinusites e doenças respiratórias — e, lembrando outros invernos, a marcação das luzes me convenceu de que essa era a temporada do divórcio. Foi uma tarde longa. Levei as crianças de volta para casa antes que escurecesse.


Acho que a seriedade do dia afetou as crianças e, ao chegar em casa, elas ficaram quietas. Essa seriedade me voltava à mente o tempo todo, trazendo a sensação de que a mudança, tal qual um fenômeno da velocidade, estava afetando tanto nossos relógios como nossos corações. Tentei lembrar da disposição com que Ethel acompanhou meu regimento durante a guerra, de West Virginia até as Carolinas e Oklahoma, dos vagões de passageiros e quartos em que ela havia morado, da rua de San Francisco onde nos despedimos antes de eu sair do país, mas nada disso podia ser colocado em palavras e nenhum de nós encontrou nada para dizer. Algum tempo depois de escurecer, as crianças tomaram banho e foram postas na cama, e então nos sentamos para jantar. Perto das nove, a campainha tocou e, quando atendi e reconheci a voz de Trencher no interfone, pedi a ele que subisse.


Ele surgiu dando a impressão de estar atormentado e exaltado. Ficou hesitando na beirada do nosso carpete. “Sei que não sou bem-vindo aqui”, disse com a voz firme, como se fôssemos surdos. “Sei que não gosta de minha presença aqui. Respeito seus sentimentos. Este é o seu lar. Respeito o que um homem sente por seu lar. Não costumo ir à casa de um homem a não ser que tenha recebido um convite. Respeito o seu lar. Respeito o seu casamento. Respeito os seus filhos. Acho que tudo deve ficar às claras. Vim aqui dizer que amo a sua esposa.”


“Saia”, falei.


“Você precisa me escutar”, ele disse. “Amo a sua esposa. Não posso viver sem ela. Tentei, mas não consigo. Cheguei a pensar em ir embora — em me mudar para a Costa Oeste —, mas sei que não faria diferença alguma. Quero me casar com ela. Não sou romântico. Tenho os pés no chão. Tenho os pés firmes no chão. Sei que vocês têm dois filhos e que não têm muito dinheiro. Sei que há problemas de custódia, propriedade e coisas assim a serem resolvidos. Não sou romântico. Sou realista. Já tratei do assunto todo com a sra. Trencher e ela concordou em me conceder o divórcio. Não sou dissimulado. Sua mulher poderá lhe dizer isso. Tenho consciência de todos os aspectos práticos a serem considerados — custódia, propriedade e tudo mais. Tenho muito dinheiro. Posso dar a Ethel tudo que ela precisa, mas tem as crianças. Vocês terão que decidir entre vocês o que será feito delas. Trouxe um cheque. Está preenchido para Ethel. Quero que ela pegue o cheque e vá para Nevada. Sou um homem prático e entendo que nada pode ser decidido até que ela obtenha o divórcio.”


“Vá embora daqui!”, falei. “Vá pro inferno!”


Ele começou a sair pela porta. Havia um gerânio no vaso em cima do consolo da lareira. Arremessei o vaso contra ele. Eu o atingi na parte de baixo das costas e quase o derrubei. O vaso se espatifou no chão. Ethel gritou. Trencher continuava saindo. Eu o segui, peguei um castiçal e mirei na sua cabeça, mas errei e acertei a parede. “Suma já daqui!”, gritei, e ele bateu a porta. Voltei para a sala. Ethel estava pálida, mas não estava chorando. Bateram forte no aquecedor, um apelo dos vizinhos de cima por decoro e silêncio — urgente e inexpressivo como as comunicações que os presos trocam através do encanamento da penitenciária. A noite sossegou.


Fomos dormir e a uma certa altura da noite eu despertei. Não consegui ver o relógio no criado-mudo, portanto não sei que horas eram. Não havia ruído no quarto das crianças. A vizinhança estava totalmente parada. Nenhuma janela iluminada em lugar nenhum. Então entendi que Ethel tinha me acordado. Estava deitada no seu lado da cama. Estava chorando.
“Por que está chorando?”, perguntei.

“Por que estou chorando?”, ela disse. “Por que estou chorando?” Ao ouvir a minha voz e falar, ela desatou a chorar de novo, agora com soluços cruéis. Sentou, enfiou os braços nas mangas de um roupão e tateou a mesa à procura de um maço de cigarros. Vi seu rosto úmido quando acendeu o cigarro. Ouvi seus movimentos na escuridão.

“Por que está chorando?”
“Por que estou chorando? Por que estou chorando?”, ela perguntou, impaciente. “Estou chorando porque vi uma velha esbofeteando um garotinho na Terceira Avenida.” Recolheu a colcha que estava nos pés da nossa cama e foi andando com ela até a porta. “Estou chorando porque meu pai morreu quando eu tinha doze anos e porque minha mãe casou com um homem que eu detestava, ou achava que detestava. Estou chorando porque tive que usar um vestido feio — um vestido de segunda mão — numa festa há vinte anos e não me diverti. Estou chorando por causa de alguma grosseria da qual não me lembro muito bem. Estou chorando porque estou cansada — porque estou cansada e não consigo dormir.” Ouvi-a se acomodar no sofá, e depois tudo ficou em silêncio.

Gosto de pensar que os Trencher foram embora, mas ainda o vejo de vez em quando no ônibus quando estou indo atrasado para o trabalho. Também vi a esposa dele entrando na biblioteca do bairro com Fräulein. Ela parece envelhecida. Não sou bom em estimar idades, mas não me surpreenderia se descobrisse que a sra. Trencher é quinze anos mais velha que o marido. Agora, quando chego em casa à noite, Ethel continua sentada num banco em frente à pia, lavando verduras. Vou com ela ao quarto das crianças. A luz lá dentro é muito clara. Elas construíram alguma coisa usando uma caixa de laranjas, algo ascendente e sem sentido, e sua doçura, sua compulsão para construir coisas e a intensidade da luz são perfeitamente refletidas e ampliadas no rosto de Ethel. Então ela dá comida para as crianças, dá banho nelas, põe a mesa e fica parada um instante no meio da sala, tentando fazer alguma conexão entre a noite e o dia. E de repente termina. Ela acende as quatro velas e sentamos para jantar.

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