sábado, 10 de julho de 2021

A década perdida. Francis Scott Fitzgerald


Todo tipo de gente entrava na redação da revista e Orrison Brown tinha todo tipo de relações com eles. Fora dali, ele era “um dos editores”, mas, durante o expediente, era apenas um rapaz de cabelos encaracolados que no ano anterior fora editor da Jack-O-Lantern, de Dartmouth, e agora ficava contente em pegar as tarefas que ninguém mais queria, desde reescrever artigos ilegíveis até ser uma espécie de moço de recados, sem o título.
Ele vira o visitante entrar na sala do editor — um homem alto e pálido de seus quarenta anos, de cabelo louro e parecido com cabelo de estátua e um jeito que não era nem inseguro nem tímido, nem transcendente como o de um monge, mas que tinha um pouco dos três. O nome em seu cartão, Louis Trimble, evocava alguma vaga lembrança, mas, sem ter por onde começar, Orrison não esquentou a cabeça com aquilo — até a campainha soar em sua mesa e sua experiência adverti-lo de que ele teria o sr. Trimble ao almoço.


“Senhor Trimble, senhor Brown...”, disse a Fonte de todas as verbas de almoço. “Orrison, o senhor Trimble esteve fora por muito tempo. Ou ele acha que foi por muito tempo, quase doze anos. Algumas pessoas, se pudessem, também prefeririam ter perdido esta última década.”
“É verdade”, disse Orrison.
“Não posso almoçar hoje”, continuou o chefe. “Leve-o ao Voisin ou ao 21, ou a qualquer lugar que ele queira. O senhor Trimble acha que há vários lugares que ele não conhece.”
Trimble objetou educadamente: “Posso me virar sozinho...”
“Eu sei, meu velho. Ninguém conheceu este lugar como você no passado — e se Brown tentar lhe explicar o que é uma carruagem sem cavalo, mande-o de volta para a redação. E você voltará às quatro, não é?”
Orrison pegou seu chapéu.
“Ficou fora dez anos?”, perguntou, ao descerem pelo elevador.
“Eles estavam começando a construir o edifício Empire State”, disse Trimble.
“Quando foi isso?”
“Cerca de 1928. Mas, como disse o chefe, o senhor não perdeu nada.” E, para espicaçá-lo, acrescentou: “Provavelmente tinha coisas mais interessantes para ver”.
“Não posso dizer que não.”
Chegaram à rua e, pela maneira com que o rosto de Trimble se contraía ao rugido do tráfego, Orrison arriscou mais um palpite. “Esteve fora da civilização?”
“De certa forma.”
As palavras eram tão calculadas que Orrison concluiu que esse homem não falaria nada que não quisesse — ao mesmo tempo, perguntou-se se ele não teria passado a década de 30 numa prisão ou num hospício.
“Esse é o famoso 21”, informou Orrison. “Ou prefere outro lugar?” Trimble parou, olhando atentamente para a fachada marrom.
“Ainda me lembro de quando o nome 21 ficou famoso”, disse, “mais ou menos na mesma época que o Moriarity’s.”
E continuou, como se desculpando:
“Talvez pudéssemos andar pela Quinta Avenida por uns cinco minutos e almoçar em qualquer lugar. Algum lugar com pessoas jovens que se possam espiar”.
Orrison deu-lhe uma olhada de esguelha e de novo pensou em grades, paredes cinza e mais grades; perguntou-se se sua obrigação incluía apresentar ao sr. Trimble algumas moças obsequiosas.
Mas o sr. Trimble não dava a impressão de que isso estivesse lhe passando pela cabeça; a expressão dominante era de uma absoluta e profunda curiosidade, e Orrison tentou ligar seu nome ao esconderijo do almirante Byrd no Pólo Sul ou ao de aviadores perdidos nas selvas brasileiras.
Que era, ou tinha sido, um grande sujeito, era óbvio. Mas as únicas pistas a respeito de sua origem — pistas que, para Orrison, não levavam a nada — eram sua obediência interiorana aos sinais de trânsito e sua predileção por andar na calçada rente às lojas, e não à rua.
Em dado momento, parou e admirou a vitrine de uma camisaria. “Gravatas de crepe”, disse. “Não vejo uma desde que saí da faculdade.”
“Onde estudou?”
“Em Massachusetts, tecnologia.”
“Grande lugar.”
“Vou dar uma passada lá na semana que vem. Vamos comer em algum lugar por aqui mesmo”, estavam na altura da rua 50, “você escolhe.”
Havia um bom restaurante com um pequeno toldo bem na esquina. “O que gostaria de ver?”, perguntou Orrison quando se sentaram. Trimble pôs-se a pensar.
“Bem... a nuca das pessoas”, sugeriu. “Os pescoços... como as cabeças se juntam aos corpos. Gostaria de ouvir o que aquelas duas meninas estão dizendo para o pai delas. Não exatamente o que estão dizendo, mas saber se as palavras afundam ou bóiam, ou se elas fecham a boca depois de falar. É uma questão de ritmo... Cole Porter voltou para os Estados Unidos em 1928 porque sentiu que havia novos ritmos aqui.”
Orrison agora tinha certeza de que estava na pista certa, mas, com grande delicadeza, não avançou por ela nem um milímetro — mesmo reprimindo um súbito desejo de dizer que havia um ótimo concerto no Carnegie Hall naquela noite.
“O peso das colheres”, disse Trimble, “tão leves. Uma tigelinha com um cabinho preso. O olhar daquele garçom. Eu o reconheci, mas ele não se lembrará de mim.”
Mas, ao saírem do restaurante, o garçom olhou para Trimble confuso, como se tivesse a impressão de conhecê-lo.
Quando saíram, Orrison riu:
“Depois de dez anos, as pessoas esquecem.”
“Eu jantei ali no último mês de maio...”
Calou-se de forma abrupta.
É muito louco, concluiu Orrison — e transformou-se de repente num guia turístico.
“Daqui pode-se ver bem o Rockefeller Center”, apontou, “e o edifício Chrysler, e o Armistead, que é o pai de todos eles.” “O edifício Armistead.”
Trimble olhou obedientemente.
“Sim... fui eu que o projetei.”
Orrison sacudiu a cabeça, animado; estava habituado a sair com todo tipo de gente.
Mas a história de ele ter ido àquele restaurante em maio...
Parou diante de uma placa de metal na fachada do edifício. “Construído em 1928”, dizia.
Trimble assentiu com a cabeça.
“Mas eu passei aquele ano inteiro bêbado... Bêbado tempo integral. De modo que esta é a primeira vez que o vejo.”
“Ah.” Orrison hesitou.
“Gostaria de entrar?”
“Já estive dentro dele — uma porção de vezes. Mas nunca o vi. E agora não é o que eu gostaria de ver. Nem seria capaz de vê-lo agora. Quero apenas ver como as pessoas andam na rua e que cara têm suas roupas, sapatos e chapéus. E seus olhos e suas mãos. Importa-se de apertarmos as mãos?”
“De modo algum, senhor.”
“Obrigado. Obrigado. Você é muito gentil. Imagino que pareça estranho, mas as pessoas vão pensar que estamos nos despedindo. Vou dar uma volta pela avenida, portanto estamos nos despedindo. Diga na redação que estarei lá às quatro.”
Orrison observou-o afastar-se, esperando que entrasse em algum bar. Mas não havia nada nele que sugerisse bebida, ou que um dia tivesse sugerido.
“Meu Deus”, concluiu. “Bêbado durante dez anos.”
Subitamente, Orrison sentiu-se com a textura do próprio casaco; depois, esticou o braço e apertou o polegar contra o granito do edifício

Nenhum comentário:

Postar um comentário