domingo, 11 de julho de 2021
A multidão. Ray Bradbury
Spallner levou as mãos ao rosto. Houve uma sensação de movimento no espaço, um grito de tortura, maravilhoso, o impacto do carro, a capotagem contra o muro, através do muro, a subida, a queda, como um brinquedo; e ele, arremessado fora do carro.
Depois... silêncio.
A multidão veio correndo. Dali, de onde estava deitado, ouviu-a correr, vagamente.
Pôde identificar idades, tamanhos, nos sons daqueles pés, tão numerosos, correndo pelo gramado de verão, pelas faixas do calçamento, pela rua de asfalto, caminhando, cuidadosos, pelos tijolos atropelados, até o lugar onde o carro se encontrava, pendurado pelo meio, com o bico voltado para o céu da noite, com as rodas ainda a girar, numa centrífuga inteiramente sem sentido.
De onde vinha a multidão, não sabia.
Esforçou-se para manter a consciência, e viu os rostos da multidão rodearem-no, debruçarem qual folhas largas, lustrosas, de árvores inclinadas. Formavam um anel de rostos que se moviam, comprimiam e mudavam sobre ele, olhando para baixo, para baixo, procurando, em seu rosto, identificar-lhe o tempo de vida, ou de morte, transformando-lhe o rosto num relógio lunar, em que, atrás do nariz, projetada nas maçãs do rosto, a sombra do luar informava o momentum da respiração, ou da não respiração, para nunca mais.
Puxa, pensou, a multidão anda depressa, é como a íris de um olho que se comprime a partir do nada.
Uma sirene.
Uma voz policial.
Movimento.
O sangue escorria-lhe dos lábios, e ele era colocado numa ambulância.
Alguém disse:
— Ele morreu?
Alguém respondeu:
— Não, não morreu não.
Alguém mais afirmou:
— Ele não vai morrer, não vai não.
Na noite, Spallner viu, por cima dele, os rostos da multidão, e pôde perceber, por aquelas expressões, que não iria morrer.
De uma maneira estranha.
Viu o rosto de um homem, magro, efusivo, pálido, que engolia em seco e mordia os lábios, muito doente. E também uma mulher baixa, de cabelos ruivos, e muito vermelho nas maçãs do rosto e nos lábios. E um menininho sardento. E outros rostos. Um velho, com o lábio superior enrugado, uma velha com um sinal de nascença no queixo.
Vieram todos... de onde?
Das casas, carros, ruas laterais, do mundo imediato, chocado, do acidente. Das ruas laterais, dos hotéis, dos bondes e, aparentemente, do nada.
A multidão o olhava. Spallner olhava a multidão e não gostava.
Em todos, pairava um grande equívoco, e ele não conseguia atinar qual. Eram bem piores que essa coisa metálica por que havia passado há pouco.
Bateram as portas da ambulância. Pelas janelas, viu a multidão olhando lá para dentro, olhando. Aquela mesma multidão que sempre chegava tão rápida, estranhamente rápida, e formava um círculo para bisbilhotar, sondar, embasbacar, perguntar, apontar, perturbar e destruir, por meio da curiosidade franca, a intimidade da agonia de outrem.
A ambulância partiu.
Spallner prostou-se de costas e os rostos ainda continuaram a olhá-lo; ele, já com os olhos fechados. Em sua cabeça, as rodas do automóvel giraram por dias a fio. Uma roda, quatro rodas, girando, girando, zumbindo, girando mais e mais. Mas aquilo estava errado. Havia algo de errado com aquelas rodas, com todo o acidente, com a pressa daqueles pés, com a curiosidade.
Os rostos da multidão misturavam-se, giravam com a rotação desenfreada das rodas.
Acordou. O sol, num quarto de hospital, u'a mão tomava-lhe o pulso.
O médico perguntou:
— Como está se sentindo?
As rodas desapareceram. Sr. Spallner olhou em volta.
— Bem... creio.
Procurou palavras. A respeito do acidente.
— Doutor?
— Pode falar.
— A multidão... foi ontem à noite?
— Já foi há dois dias. Você está aqui desde quinta-feira. Mas você está bem. Está reagindo bem. Não se levante para testar.
— A multidão. E rodas também. É comum as pessoas ficarem meio... fora de si, depois de um acidente desses?
— Às vezes, temporariamente.
Deitado, Spallner olha o médico.
— E afeta a noção de tempo?
— O pânico às vezes afeta.
— Faz um minuto parecer uma hora, ou, quem sabe, uma hora parecer um minuto?
— Faz.
— Então, vou contar-lhe algo.
Debaixo do corpo, Spallner sentiu a cama; no rosto, a luz do sol.
— O senhor vai pensar que eu sou maluco. Sei que estava dirigindo depressa. Agora me arrependo. Subi no meio-fio e acertei o muro. Eu me machuquei, fiquei paralisado, mas ainda me lembro. Principalmente... da multidão.
Fez uma pausa. Depois, decidiu continuar, pois, de repente, percebeu o que o incomodava.
— A multidão chegou muito depressa. Trinta segundos depois da batida, as pessoas já estavam lá, debruçadas por cima de mim, olhando... Não me parece verossímil que tenham chegado tão rápido assim, àquela hora da noite...
— É que o senhor pensa que haviam passado apenas uns trinta segundos, quando, na verdade, foram três ou quatro minutos. Os seus sentidos...
— Sei, claro... os meus sentidos... o acidente. Mas eu estava consciente! E me lembro de uma coisa, que resume as coisas, e dá a tudo um tom de estranheza, de muita estranheza. As rodas do carro, de cabeça para baixo. As rodas ainda estavam girando quando a multidão chegou ao local.
O médico sorria.
O homem deitado prosseguiu.
— Eu tenho certeza! As rodas ainda giravam, e rápidas... as rodas da frente! As rodas não giram por tanto tempo assim, a fricção as desacelera. E elas estavam girando de verdade!
— O senhor deve estar um pouco confuso.
— Não estou confuso não. A rua estava vazia. Nenhuma alma à vista. Em seguida, o acidente, as rodas ainda girando e aqueles rostos todos em cima de mim, rapidamente, sem defasagem de tempo. E, pela maneira com que me olharam, percebi que não ia morrer...
— Simples estado de choque!
O médico se afastou.
Duas semanas depois, Spallner recebeu alta do hospital. Foi de táxi para casa. Pessoas vieram visitá-lo durante as duas semanas que passou deitado, e, a todas, contou sua história, o acidente, as rodas girando, a multidão. Todo riram de sua preocupação e se foram.
Inclinou-se à frente, bateu na vidraça de proteção do motorista.
— O que é que está havendo? O motorista olhou para trás.
— Sinto muito, patrão. É uma parada dirigir nessa cidade! Foi um acidente ali adiante. O senhor quer que eu saia fora?
— Quero. Não! Não! Siga em frente. Quero dar uma olhada. O motorista seguiu em frente, buzinando, e resmungou:
— Que coisa estranha! Ei, seu...!
Tira essa geringonça da frente. Mais tranqüilo:
— Que coisa estranha! Mais gente ainda! Quanta gente curiosa!
O Sr. Spallner percebeu os dedos tremerem em cima dos joelhos.
— O senhor também notou?
— Claro. É toda hora! Sempre ajunta gente. Parece até que foi a mãe deles quem morreu!
O homem sentado no banco de trás observou:
— E eles chegam tão rápido!
— É incêndio, explosão, é sempre a mesma coisa. Ninguém à vista. Pam! Junta uma porção de gente. Sei lá...
— O senhor já presenciou algum acidente à noite?
O motorista confirmou com a cabeça.
— Claro. Tanto faz. Amultidão está sempre lá. Agora já podiam ver a batida. Um corpo caído no asfalto. Mesmo que não conseguisse vê-lo, qualquer um saberia que havia um corpo ali.
Por causa do ajuntamento. Do ajuntamento que ele, ali sentado no banco de trás, podia ver pelas costas. Spallner abriu a janela, e por pouco não começou a gritar. Não o fez por falta de coragem, pois, se gritasse, talvez a multidão se virasse. E ele sentiu medo de ver-lhes os rostos. No escritório, conversou. — Parece que eu tenho um pendor para acidentes. Quase fim de tarde.
O amigo, sentado do outro lado da escrivaninha, ouvia.
— Saí hoje de manhã do hospital e, no caminho de casa, passei por um atropelamento.
— As coisas têm seus ciclos — observou Morgan.
— Vou te contar meu acidente.
— Já me contaram. Já me contaram tudo.
— Você tem que admitir que foi estranho.
— É, foi sim. Mas... vamos tomar um aperitivo?
Conversaram por meia hora ou mais. Durante toda a conversa, no fundo do cérebro de Spallner, um reloginho tiquetaqueava; o reloginho dispensava corda.
Eram reminiscências de umas certas coisinhas. Rodas, rostos. Por volta das cinco e meia, na rua, um ruído de metal duro.
Morgan acenou com a cabeça, olhou pela janela, lá para baixo.
— Não falei? Ciclos. Um caminhão e um Cadillac creme. Claro, claro.
Spallner foi até a janela. Demonstrava muita frieza, consultava o relógio no pulso, o ponteiro dos segundos. Um, dois, três, quatro, cinco segundos — as pessoas corriam — oito, nove, dez, onze, doze — pessoas chegavam, correndo, de todas as direções — quinze, dezesseis, dezessete, dezoito segundos — mais gente, mais automóveis, mais buzinas.
Curiosamente alheio, Spallner contemplou aquela cena como uma explosão invertida, os fragmentos da detonação de volta ao ponto de impulsão. Dezenove, vinte, vinte e um segundos, e lá estava a multidão.
Spallner lançou-lhes um gesto, sem palavras.
Amultidão ajuntara-se depressa demais.
Spallner vira um corpo de mulher, instantes antes de ser engolido pela multidão.
— Você está abatido. Olhe, por que não termina o aperitivo?
— Eu estou bem. Estou bem. Quero ficar sozinho. Eu estou bem. Você está vendo aquela gente lá? Você consegue identificar alguém? Gostaria de vê-los mais de perto.
— Ei, onde é que você vai? — gritou Morgan.
Spallner saíra porta afora, desabalado, e Morgan fora atrás, escada abaixo.
— Venha e ande depressa.
— Calma, homem, você não está em boas condições!
Foram até a rua. Spallner forçou passagem. Pensou ter visto uma mulher ruiva com muito vermelho nas maçãs do rosto e nos lábios. Rápido, voltou-se para Morgan.
— Ali! Você a viu?
— Quem?
— Merda! Ela sumiu. Amultidão a escondeu!
A multidão se espalhava por todos os lugares, respirando, embaralhando, misturando, balbuciando e atravacando-lhe o caminho quando tentou passar.
Era evidente, a mulher ruiva o vira e desaparecera. Spallner viu outro rosto conhecido! Um garotinho sardento. Mas, existem tantos garotos sardentos no mundo! De qualquer modo, foi inútil, pois, antes que Spallner o alcançasse, o garotinho fugira, desaparecera na multidão.
Uma voz perguntou:
— Ela morreu? Ela morreu?
Alguém ponderou:
— Está morrendo. Vai morrer antes que chegue a ambulância. Não deveriam tê-la tirado do lugar. Não deveriam... Todos os rostos da multidão — conhecidos e tão desconhecidos debruçavamse, olhando, olhando.
— Ei, prezado, vê se não empurra!
— Pare de empurrar, companheiro!
Spallner retirou-se; Morgan o segurou antes que caísse, e chamou-o às falas:
— Você é mesmo teimoso. Você ainda está doente. O que é que tinha que vir fazer aqui na rua?
— Não sei... não sei mesmo. Eles tiraram o corpo dela do lugar, Morgan, e isso não se faz com um acidentado. É morte certa. É morte certa.
— Pois é, mas as pessoas são assim mesmo. Um bando de imbecis.
Com cuidado, Spallner organizava os recortes de jornais.
Morgan passava os olhos.
— Para que isso? Agora, depois do seu acidente, você pensa que qualquer tumulto no trânsito faz parte de você! Que recortes são esses?
— Recortes de desastres de automóveis e fotos. Dê uma olhada. Nos carros não. Na multidão em volta. Spallner apontava. — Olhe. Compare essa foto de um desastre no Distrito de Wilshire com essa outra de Westwood. Não existe semelhança alguma. Mas, agora, pegue essa foto de Westwood e coloque ao lado dessa outra, também do Distrito de Westwood, dez anos atrás. Spallner apontou novamente. — Esta mulher está nas duas fotografias. Coincidência, a mulher estava lá em 1936, e novamente em 1946. — Vá lá. Uma vez, pode ser coincidência. Mas doze vezes num período de dez anos, em acidentes que ocorreram a uns cinco quilômetros de distância uns dos outros, não é não. Olhe aqui. Spallner estendeu doze fotografias. — Ela está em todas.
— Ora, talvez seja uma pervertida!
— É mais do que isso! Como é que ela consegue chegar tão rápido ao local do acidente? E como é possível estar com a mesma roupa nessas fotografias tiradas num período de uma década?
— Não é que você tem razão!
— E, para encerrar, por que ela estava lá, em pé, debruçada em cima de mim, na noite do meu acidente, há duas semanas?
Foram tomar um aperitivo. Morgan passou os olhos na coleção.
— O que é que você fez? Contratou uma firma de pesquisa de jornais, enquanto esteve no hospital, para que colecionassem os recortes para você?
Spallner confirmou com a cabeça. Morgan tomou um gole do aperitivo. Ficava tarde. As luzes já se acendiam na rua lá embaixo.
— E isso tudo leva a quê?
— Não sei. Só sei que existe uma lei universal a respeito dos acidentes: as multidões. Sempre ajunta gente. E assim como você, como eu, as pessoas ficam a imaginar, por anos a fio, na tentativa de descobrir como a multidão consegue reunir-se tão rapidamente. E por quê? Eu sei a resposta. Ei-la. Spallner jogou os recortes sobre a mesa.
— Isso até me assusta.
— Essas pessoas, Spallner... não seriam caçadores de emoções, sensacionalistas pervertidos cujo desejo carnal se volta para o sangue, para a morbidez?
Spallner encolheu os ombros.
— E isso explicaria o fato de estarem em todos os acidentes? Repare. Elas se atem a certos territórios. Um acidente em Brentwood desentoca um determinado grupo. Em Huntington Park, outro grupo. Mas há um padrão, no que diz respeito aos rostos; uma certa percentagem aparece em todos os acidentes.
— Os rostos não são sempre os mesmos, não é verdade?
— Claro que não. Acidentes costumam atrair pessoas normais também, no curso do tempo. Mas esses aqui, eu estou vendo, são sempre os primeiros a chegar.
— Quem são? O que querem? Você faz as insinuações, mas não diz nada. Meu Deus, eu sei que você está com alguma idéia na cabeça. Você já se assustou, e agora quem está aflito sou eu.
— Eu já tentei abordá-los, mas alguém sempre atravessa no meu caminho, e eu sempre chego tarde. Eles se esgueiram pela multidão e desaparecem. Parece que a multidão oferece proteção a alguns de seus membros. Sempre me vêem chegar.
— Isso está me cheirando a uma espécie de bando.
— Uma coisa eles têm em comum. Sempre aparecem juntos. Em incêndios, explosões, na periferia das guerras, em qualquer demonstração pública dessa coisa chamada morte. Abutres, hienas, santos? Simplesmente não sei. Mas eu vou levar isso à polícia hoje à noite. Isso já foi longe demais. Hoje, um deles mexeu no corpo daquela mulher. Não deveriam ter tocado nela. Foi por isso que ela morreu. Spallner guardou os recortes na pasta. Morgan levantou-se e deslizou paletó adentro. Spallner fechou a pasta.
— Ou então... estou pensando...
— O que é? —... que talvez eles quisessem que ela morresse.
— Por quê?
— Sei lá. Quer ir comigo?
— Não vai dar. Já está tarde. Nos vemos amanhã. Boa sorte.
Os dois saíram juntos.
— Dê lembranças aos tiras. Você acha mesmo que eles vão acreditar em você?
— Claro, ora se vão! Até amanhã!
Rumo ao centro da cidade, Spallner dirigiu devagar. Disse para si mesmo:
— Quero chegar vivo!
Spallner chocou-se, mas, nem por isso, surpreendeu-se, quando, saindo de uma rua lateral, um caminhão veio diretamente de encontro a ele.
Foi no exato momento em que ele se parabenizava por possuir um senso de observação tão aguçado, e em que ensaiava, na cabeça, o que iria dizer ao policial, que o caminhão espatifou-se contra seu carro. Bem, o carro não era exatamente seu, e esse foi o aspecto desanimador da coisa. Com a preocupação a rondar-lhe o espírito, foi atirado primeiro para um lado, depois para o outro, e, enquanto isso, pensava: que pena, Morgan foi para casa, e deixou comigo seu segundo carro, por alguns dias, até que o meu fosse consertado, e aqui estou eu de novo.
O párabrisa bateu-lhe no rosto. Spallner foi jogado para trás, para a frente, em diversas sacudidelas-relâmpagos. Depois, todo o movimento aquietou, todo ruído, e apenas a dor o preencheu. Ouviu passos correrem, correrem. De mal jeito, tateou a porta. A porta estalou. Spallner caiu ao solo, meio desacordado, e ali ficou com o ouvido colado ao asfalto, a ouvi-los se aproximar. Como se fossem uma tempestade, com muitos pingos, pesados, leves, médios, a tocarem o chão. Esperou alguns segundos, ouviu-lhes a aproximação, a chegada. Depois, fraco, na expectativa, virou a cabeça e olhou.
A multidão lá estava.
Spallner sentiu-lhes a respiração, os odores mistos de muitas pessoas sugando, sugando o ar de que todo homem necessita para viver.
Ajuntavam-se, acotovelavam-se, sugavam, sugavam o ar que lhe envolvia o rosto arquejante, e ele ainda tentou dizer que recuassem, que o estavam fazendo viver num vácuo. A cabeça sangrava muito. Tentou mover-se, e percebeu que havia algo de errado com a coluna. Na hora do impacto, não sentira muito, mas a coluna estava mesmo avariada. Não ousou mover-se. Não conseguia falar. Abriu a boca, apenas engasgos saíram.
Alguém disse:
— Me ajudem aqui. Vamos virá-lo, levantá-lo e colocá-lo numa posição mais confortável. A cabeça de Spallner pareceu estilhaçar. Não, não toquem em mim!
Casual, a voz insistiu:
— Vamos tirá-lo daqui!
Seus imbecis, vocês vão me matar. Não façam isso! Nada do que disse fora audível. Dissera-o apenas no pensamento. Mãos o seguraram. Começaram a levantá-lo. Ele soltou um grito e a ânsia de vômito o asfixiou. Aprumaram-no, deitado, num monturo de agonia. Dois homens o fizeram. Um era magro, efusivo, pálido, atento, um jovem. O outro, muito velho, tinha o lábio superior enrugado.
Spallner já vira aqueles rostos antes.
Uma voz, conhecida, perguntou:
— Ele morreu? Outra voz, uma voz memorável, respondeu: — Não, ainda não. Mas vai morrer antes que chegue a ambulância.
Um ardil tolo, louco. Como qualquer acidente.
Spallner soltou um grito histérico, para aquela parede de rostos sólida. Estavam todos ao redor, esses juizes, jurados, com rostos que já vira antes. Contou-os, na dor. O garoto sardento, o velho com o lábio superior enrugado. A mulher ruiva, de maçãs do rosto vermelhas. Uma velha com um sinal de nascença no queixo.
Sei por que vocês estão aqui, pensou. Estão aqui porque vocês estão em todos os acidentes.
Para se certificarem de que as pessoas certas irão viver, e de que as pessoas certas irão morrer.
Foi por isso que me levantaram. Sabiam que isso iria me matar. Sabiam que, se não me tocassem, eu iria viver. E tem sido assim desde os primórdios do tempo, quando as multidões se encontram. É um meio mais fácil de assassinar.
O álibi é muito simples: vocês simplesmente não sabiam que não se deve mover o corpo de um acidentado. Não foi de propósito que o prejudicaram. Spallner olhou para eles, ali em cima, e sentiu a curiosidade de quem está debaixo d'água, bem no fundo, e olha as pessoas numa ponte.
Quem são vocês? De onde vêm, e como conseguem chegar tão depressa? Vocês são a multidão, que sempre atravanca a passagem, que consome o ar sadio de que carecem os pulmões de um moribundo, que tomam o espaço em que ele deveria permanecer só, deitado, que espezinham as pessoas para terem certeza de que elas irão morrer.
Vocês são isso mesmo. Conheço-os bem. Foi um monólogo cortês. Eles nada disseram. Rostos. O velho. A mulher ruiva. Alguém pegou a pasta de Spallner.
— De quem é? É minha! E está cheia de provas contra vocês todos!
Olhos entrecuzaram-se por cima dele. Olhos brilhantes, debaixo de cabelos desalinhados, ou de chapéus. Rostos.
Em algum canto... uma sirene.
A ambulância chegava. Ao olhar aqueles rostos, porém, a construção, o olhar, o formato, Spallner percebeu que era tarde demais. Pôde lê-lo naqueles rostos. Eles sabiam. Spallner tentou falar. Pronunciou algo, muito pouco.
— Parece... que... em breve... estarei com vocês. Acho que... daqui por diante... farei parte... deste grupo.
Cerrou os olhos e esperou pelo investigador
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