sexta-feira, 18 de junho de 2021

Maria pintada de prata . Dalton Trevisan



Grandalhão, voz retumbante, é adorado pelos filhos. João não vive bem com Maria - ambiciosa, quer enfeitar a casa de brincos e tetéias. Ele ganha pouco, mal pode com os gastos mínimos. Economiza um dinheirinho, lá se foi com a asma do guri, um dente de ouro da mulher. Ela não menos trabalhadeira: faz todo o serviço, engoma a roupinha dos meninos, costura as camisas do marido. Inconformada porém da sorte, humilhando o homem na presença da sogra.
Para não discutir ele apanha o chapéu, bate a porta, bebe no boteco. Um dos pequenos lhe agarra a ponta do paletó:
_ Não vá, pai. Por favor, paizinho.
Comove-se de ser chamado de Paizinho. Relutante, volta-se para a fulana: em cada olho um grito castanho de ódio.
_ O paizinho vai dar uma volta.
Tão grande e forte, embriaga-se fácil com alguns cálices. Estado lastimável, atropelando as palavras, é o palhaço do botequim. E, pior que tudo, sente-se desgraçado, quer o conchego do corpo gostoso da mulher.
Mas discutem, mais ele bebe e falta dinheiro em casa. Maria se emboneca, muito pintada e gasta pelos trabalhos caseiros. Desespero de João e escândalo das famílias, a pobre senhora, feia e nariguda, canta no tanque e diante do espelho as mil marchinhas de carnaval. Os filhos largados na rua, ocupada em depilar sobrancelha e encurtar a saia - no braço o riso de pulseiras baratas.
Com uma vizinha de má fama inscreve-se no programa de calouro:
_ Sou artista exclusiva - ufana-se, com sotaque pernóstico. - A féria é gorda!
Aos colegas de rádio oferece salgadinhos e cerveja. João escapole pelos fundos, envergonhado da barba por fazer. Volta bêbado e Maria tranca a porta do quarto, obrigado a dormir no sofá da sala. Noite de inverno, o filho mais velho, ao escutá-lo gemer, traz um cobertor:
_ Durma paizinho.
A cada sucesso de Maria - o quinto prêmio de marchinha, o retrato no jornal, a carta com pedido de autógrafo:
_ Ela ainda recebe uma vaia - é o comentário de João. - Com uma boa vaia ela aprende!
Ó não - essa aí quem é de cabelo oxigenado? Acompanhada a casa, horas mortas, pelo parceiro de vida artística. Ora o cantor de tangos, ora o mágico de ciências ocultas. Demora-se aos beijos na porta e as mães proíbem as crianças de brincar com os dois meninos. João sabe que é o fim - dona de casa que tinge o cabelo não é séria. Vai no puxado da lenha, encolhido na enxerga imunda, a garrafa na mão.
Dois dias fechado (assusta-lhe a própria força e jamais bate nos filhos), urra palavrão e desfere murro na parede. Maria faz as malas e, sem que os pequenos despeçam de João, muda-se para a casa dos pais.
Lá deixa os meninos e amiga-se com um pianista de clube noturno. Mais uma bailarina, que obriga os clientes a beber. O pianista, vicioso e tísico, toma-lhe o dinheiro e, se a féria não é gorda, apanha.
Cansada de surra, volta à casa dos pais. Então a velha sai em busca de João e sugere as pazes.
_ Ela que fique onde está. Não quero Maria nem pintada de prata.
Despedido da fábrica por embriaguez, sobrevive com biscates. Ao vestir o paletó, da manga surge uma cobra e, aos berros, lança-o no fogo. Aranha cabeluda morde-lhe a nuca; inútil esmagá-la com o sapato, de uma nascem duas e três - enrodilha-se medroso a um canto e esconde nos joelhos a cabeça.
Domingo recebe a visita dos filhos, enviados pela sogra. Divertem-se no Passeio Público a espiar macaquinhos. O pai compra amendoim e pipoca, que os três mordiscam deliciados. Afasta-se de mansinho e, atrás de uma árvore, empina a garrafa saliente no bolso traseiro da calça - as mãos cessam de tremer. Os meninos desviam os olhos: sapato furado, calça rasgada, paletó sem botão. Alisando a mão gigantesca:
_ Não, paizinho. Não beba mais, pai.
Lágrimas correm pelo narigão de cogumelo encarnado. Despede-se com sorriso sem dentes. Na esquina, gorgoleja a cachaça até a última gota.
Em delírio na sarjeta, recolhido três vezes ao hospício. A crise medonha da desintoxicação, solto quinze dias mais tarde. Mal cruza o portão, entra no primeiro boteco.
Maria cai nos braços do mágico de ciências ocultas e, proibida de cantar com voz tão horrorosa, consola-se no tanque de roupa. Nem o amante nem os velhos querem saber dos piás, internados no asilo dos órfãos.
Cada um aprende seu ofício e, no último domingo do mês, com a permissão da freira, vão bem penteadinhos à casa do pai. Ainda deitado, curte a ressaca; com alguns goles sente-se melhor. Os pequenos varrem a casa, acendem o fogo, olhinho irritado pela fumaça. No almoço apresentam café com pão e salame rosa. Sentado na cama, o pai continha-se em vê-los comer. Sorri em paz, um deles enxuga-lhe o suor frio da testa. Sem coragem de abandoná-lo, os filhos a seu lado durante a noite: fala bobagem, treme da cabeça aos pés, bolhas de escuma espirram no canto da boca.
Os meninos adormecem, ouvindo o ronco feio do afogado. O maior acorda no meio da noite, vai espiar o pai em sossego, olho branco. Fala com ele, não se mexe. Tem medo e chama o irmão:
_ O paizinho morreu.
Sem chorar, encolhidos na beira da cama, à escuta dos pardais da manhã.

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