quinta-feira, 10 de junho de 2021

Sinais vermelhos. Primo Levi



Seu trabalho era tranquilo: tinha que ficar oito horas por dia num quarto escuro, onde a intervalos regulares se acendiam os sinais vermelhos dos monitores. Não sabia o que eles significavam, não fazia parte de suas atribuições. A cada sinal devia reagir apertando determinados botões, cujo significado também desconhecia; mas não se tratava de uma tarefa mecânica, ele devia escolher os botões, rapidamente, baseando-se em critérios complexos, que variavam de um dia para o outro e dependiam da ordem e do ritmo com que as lâmpadas se acendiam. 
 Em suma, não era um trabalho estúpido: era um trabalho que podia ser bem-feito ou malfeito, às vezes era até interessante, um daqueles trabalhos que dão um certo regozijo com a própria agilidade, com a própria inventividade e capacidade lógica.

 Contudo ele não tinha uma idéia precisa do resultado final de suas ações: só sabia que havia uma centena de quartos escuros, e que todos os dados decisórios provinham de alguma parte, de uma central de distribuição. Também sabia que seu trabalho era avaliado de algum modo, mas não sabia se isoladamente ou em conjunto com os outros trabalhadores: quando soava a sirene, outras lampadinhas vermelhas se acendiam na arquitrave da porta, e o número delas era um julgamento e uma avaliação. Freqüentemente sete ou oito se acendiam; só uma vez dez se acenderam, nunca menos de cinco, por isso tinha o palpite de que sua situação não ia tão mal.
    A sirene tocou, acenderam-se sete lâmpadas. Saiu, parou um minuto no corredor para acostumar os olhos à luz, depois foi para a rua, alcançou o carro e partiu. O tráfego já estava muito intenso, e teve dificuldade de inserir-se na corrente que percorria a avenida. Freio, embreagem, primeira. Acelerador, embreagem, segunda, acelerador, freio, primeira, nova freada, o semáforo está vermelho. Quarenta segundos que parecem quarenta anos, sabe-se lá por quê; não há tempo mais longo que aquele perdido nos semáforos. Não tinha outra esperança nem outro desejo senão chegar em casa.

 Dez semáforos, vinte. Em cada um, uma fila cada vez mais longa, ao longo de três vermelhos, cinco vermelhos; um pouco melhor adiante, tráfego mais livre na perimetral oposta. Olhar no retrovisor, enfrentar a ira rápida e passageira e a pressa maligna de quem está atrás e gostaria que você não existisse, sinal à esquerda, quando você vira à esquerda se sente sempre meio culpado. Girar à esquerda com cuidado: aí está o portão, uma vaga, embreagem, freio, ignição, freio de mão, alarme, por hoje acabou.

 A luz vermelha do elevador brilha: esperar que esteja livre. A luz se apaga: apertar o botão, a luz se reacende, esperar que desça. Esperar por metade do tempo livre: isso é tempo livre? Ao final se acenderam na ordem correta as luzes do terceiro, do segundo e do primeiro andar, o elevador chegou, a porta se abriu. Novamente os sinais luminosos vermelhos, primeiro, segundo, até o nono andar, chegamos. Aperta o botão da campainha, aqui não há o que esperar: de fato esperou pouco, ouviu-se a voz pacata de Maria dizer “estou indo”, os passos dela, a porta se abrindo

Não se espantou ao ver a lampadinha vermelha entre as clavículas de Maria: já estava acesa havia dez dias, e era de esperar que ainda brilhasse com sua luz melancólica por alguns dias. Luigi gostaria que Maria a escondesse, a encapuzasse de algum jeito; Maria dizia que sim, mas freqüentemente se esquecia, especialmente em casa; noutras vezes a escondia mal, e era possível vê-la brilhar sob o foulard, ou à noite, através dos lençóis, que era a coisa mais triste. Talvez, bem no fundo, e sem confessar a si mesma, tivesse medo das inspeções.

  Procurou não olhar a lampadinha; aliás, tentou esquecê-la: na verdade, pedia outra coisa a Maria, completamente outra. Tentou falar do trabalho, de como havia passado o dia; perguntou por ela, sobre suas horas de solidão, mas a conversa não engrenava, brilhava um momento e depois se apagava, como um fogo de lenha úmida. Mas a lampadinha, não: luzia firme e constante, a mais pesada das proibições, porque estava ali, na casa deles e de todos, minúscula e forte como uma muralha, em todos os dias férteis de todos os casais de cônjuges que já tivessem dois filhos. Luigi ficou muito tempo calado e então disse: “Vou... vou pegar a chave de fenda”.

“Não”, disse Maria, “você sabe que não é possível, sempre fica um vestígio. Além disso... e se nascesse um menino? Já temos dois, sabe quanto nos taxariam por isso?”

Era claro que, mais uma vez, não conseguiriam falar de outro assunto. Maria disse: “Conhece a Mancuso? Você se lembra dela, não? A senhora aqui de baixo, aquela elegante, do sétimo andar. Bem, ela pediu para substituir o modelo do Estado pelo novo 520 IBM: disse que é outra coisa”.


“Mas custa os olhos da cara, e o resultado é o mesmo.”

“Certo, mas nem se percebe que está lá, e as pilhas duram um ano. Ela ainda me disse que no Parlamento há uma subcomissão que está discutindo um modelo para homens.”


“Que estupidez! Os homens sempre teriam luz vermelha.”

“Não, não é tão simples. Quem comanda é sempre a mulher, e ela também usa a lampadinha, mas o homem também usa o mecanismo de bloqueio. Há um transmissor, a mulher transmite e o marido recebe, e nos dias vermelhos ele fica bloqueado. No fundo me parece justo: acho muito mais moral.”

  De repente Luigi se sentiu afundar no cansaço. Beijou Maria, deixou-a diante da televisão e foi deitar. Não demorou a pegar no sono, mas acordou de manhã bem cedo, antes que a luz vermelha do despertador silencioso se acendesse. Levantou e só então, no quarto escuro, notou que a lâmpada de Maria se apagara: mas já era muito tarde, e não queria acordá-la. Verificou o sinal vermelho do boiler, o do barbeador elétrico, o da torradeira e o da tranca de segurança; depois saiu para a rua, entrou no carro e esperou que os sinalizadores vermelhos do dínamo e do freio de mão se acendessem. Acionou o pisca-pisca da esquerda, o que significava que outro dia começava. Foi para o trabalho e no caminho calculou que as lâmpadas vermelhas de seu dia eram em média umas duzentas: setenta mil em um ano, três milhões e meio em cinco anos de vida ativa. Então lhe pareceu que a sua calota craniana se endurecia, como se estivesse sendo recoberta por uma enorme calosidade feita para investir contra os muros, quase um chifre de rinoceronte, mas mais chato e mais obtuso.

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